No contexto da pandemia de Covid-19, o Grito dos Excluídos Continental iniciou a ação “Solidariedade na Cidade Invisível”, com foco no apoio às populações em situação de vulnerabilidade na cidade de São Paulo .

Paulo Victor Melo | Especial para JSB

Em casa de menino de rua, o último a dormir apaga a lua. A triste e poética frase do escritor Giovani Baffô é – no Brasil de pandemia e de governo que tem a morte como projeto de poder – lamentavelmente bastante atual.

E não apenas sobre “meninos de rua”. Também meninas, idosos, idosas, mulheres e homens de todas as idades são, cada vez mais, vítimas de um modelo socioeconômico e político sustentado na produção de desigualdades e violências em larga escala.

Neste cenário, agravado por uma doença que é alimentada e fortalecida pelo discurso e ação negacionista do Governo Federal, algumas perguntas insistem em se fazer: como manter o isolamento quando se vive na rua? Como manter o distanciamento social quando famílias inteiras dividem um único cômodo? Como não sair na labuta diária por alimento, quando a fome está instaurada em sua vida?

Refletindo sobre este contexto, Luciane Udovic, da coordenação do Grito dos Excluídos Continental, aponta que “o cenário da desigualdade já vinha aumentando desde 2019, resultado da falta de políticas públicas, da omissão diante das desigualdades e de um processo lento de vacinação contra a Covid-19, provocando milhares de mortes que poderiam ser evitadas”.

Ao criticar também as “políticas privatistas presente na esfera federal e em muitos estados”, Luciane enfatiza que “o cenário da pandemia só agravou e acelerou o desmonte das políticas sociais do país”.

Os dados oficiais confirmam o dito por Luciane: apenas durante o governo Bolsonaro, pelo menos 2 milhões de famílias tiveram a renda reduzida e entraram na extrema pobreza. Em dezembro de 2018, eram 12,7 milhões de famílias nesta situação. Agora, dois anos e meio após o início do atual Governo, já são mais de 14,7 milhões de famílias com uma renda mensal média de até R$ 89 reais por pessoa.

Como se estes números não fossem suficientes para evidenciar a gravidade do momento que atravessa o país, mais de 2,3 milhões de brasileiras e brasileiros que estão inseridos no Cadastro Único (CadÚnico) do Governo Federal ainda não conseguiram ter acesso ao Bolsa Família, de acordo com um levantamento sobre a fila de espera para o programa, realizado pela Câmara Temática da Assistência Social do Consórcio Nordeste.

Solidariedade na Cidade Invisível

Foi visando alterar esta realidade que o Grito dos Excluídos Continental desenvolveu o projeto “Solidariedade na Cidade Invisível”, que tem como foco o apoio às populações em situação de vulnerabilidade na cidade de São Paulo durante a pandemia de Covid-19, a partir de três eixos principais: sobrevivência; proteção e recuperação dos meios de subsistência; e advocacy.

No que diz respeito ao eixo sobrevivência, o projeto beneficiou 16.210 pessoas, entre agosto de 2020 e fevereiro de 2021, com distribuição gratuita de kits de higiene, limpeza, lanche, cesta de natal, barracas e sacos de dormir para a população em situação de rua.

“As medidas de isolamento social impostas pelo início da pandemia reduziram a quantidade de transeuntes pelas ruas no centro da cidade, diminuindo drasticamente o acesso das pessoas em situação de rua a doações de gêneros alimentícios e mesmo de dinheiro.  Soma-se a esta redução de doações, o fechamento de equipamento público municipal que realizava atendimento socioassistencial para estas populações, agravando sua situação de vulnerabilidade social e de riscos à saúde pessoal e coletiva”, enfatiza Luciane Udovic, sobre a relevância deste tipo de iniciativa.

Entre agosto de 2020 e fevereiro de 2021 a ação “Solidariedade na Cidade Invisível” beneficiou 16.210 pessoas

A coordenadora do Grito dos Excluídos Continental lembra ainda que “ter ações como essas neste projeto emergencial é de grande importância, pois, por viverem nas ruas, estão expostos e propensos a se contaminarem com o vírus da Covid-19 mais facilmente. Também importante esse cuidado que o Grito teve com essas pessoas que são vulneráveis e que de forma simples mostra que não são invisíveis e, assim, demostram a sua luta por políticas públicas de qualidade”.

Dentre outras ações, ainda no eixo “sobrevivência” foram entregues 575 sacos de dormir e 435 barracas para a população em situação de rua na região central da cidade São Paulo, como também para a Casa de Oração do Povo da Rua, coordenada pelo Pe. Júlio Lancellotti.

Outra frente de trabalho do projeto teve como objetivo a proteção e recuperação de meios de subsistência, na perspectiva de relação intrínseca entre a proteção socioambiental e a dignidade humana.

A principal medida neste sentido foi aconstrução do Ponto de Entrega Recircular, com a participação de 175 famílias de três favelas – Vila Prudente, Viela Sabesp e Estação – e tendo como resultados a recuperação de sua subsistência por 450 famílias e o descarte correto de 13,5 toneladas de materiais recicláveis.

Luciane Udovic ressalta que “o Recircular não é só a construção de um ponto de entrega na favela, mas sim todo o conceito de descarte correto, valorizando o material com valores justos, onde todos ganham, moradores, catadores avulsos, cooperativas (e seus cooperadas e cooperados) e as cooperadas e cooperados do Recircular, com uma geração de renda mais justa”, ressalta Luciane.

Nós por nós

Em todo o seu período de execução, o projeto “Solidariedade na Cidade Invisível” estabeleceu parcerias com organizações que atuam diretamente com os segmentos vulnerabilizados da população de São Paulo.

Numa dessas articulações, com o Movimento de Defesa do Favelado (MDF), foi possível beneficiar 1.550 famílias moradoras de favelas das periferias paulistanas com cestas básicas, kits de higiene e limpeza.

“Foram pessoas moradoras de favelas que perderam seu emprego e/ou sua renda.  Muitas destas famílias estavam em situação precária e essas cestas básicas, os kits de higiene e de limpeza realmente foram um alívio para elas. A coordenação do projeto junto com os educadores do MDF tiveram contato com a Universidade Uninove para distribuir folhetos e outros informativos sobre orientação ao combate à violência doméstica com endereços e telefones de denúncia e acolhimento. A distribuição foi realizada junto com as cestas básicas e os kits”, explica Luciane.

Outra parceria, esta com a Associação de Auxilio Mútuo (APOIO), possibilitou destinar cestas básicas para 2.306 famílias em 13 comunidades e garantir cuidados de saúde para 636 pessoas.

“Para planejar a execução das ações, o Grito dos Excluídos/as Continental convocou reuniões com a participação de representantes dos coletivos que atuam nas áreas de execução do projeto e desenvolvem atividades socioculturais, geração de renda, informação e orientações para a redução de danos”, conta Luciane, demonstrando que o diálogo com organizações da sociedade civil foi uma constante em todo o projeto.

Algumas das instituições que participaram destas construções prévias foram: Coletivo Tem Sentimento, Companhia Pessoal do Faroeste, Craco Resiste, É de Lei, Rede Rua, Movimento Nacional de População de Rua,  Ação da Cidadania, Movimento de Defesa dos Favelado e APOIO.

“Com a pandemia do Covid-19, os coletivos concentraram suas ações em atividades para apoiar a população local no acesso a cuidados e atenção necessária para evitar a contaminação. Nas reuniões foram identificadas as principais necessidades da população, as iniciativas já realizadas por outros atores e quais as ações complementares possíveis de serem oferecidas, considerando os recursos disponíveis. Este processo participativo possibilitou focar a aquisição de itens para doação atendendo lacunas de ofertas realizadas pelo poder público e/ou iniciativas solidárias da sociedade civil, bem como o exercício de atuação em rede dos coletivos com histórico de atuação junto à população local. Realizamos com estas redes debates sobre estratégias de advocacy. Também promovemos ações para informar as famílias sobre o auxílio emergencial do Governo Federal e os benefícios sobre cartão alimentação, kit educação e livros didáticos dos Governos Municipal e Estadual para os alunos nos mesmo dia de entrega das cestas básicas e os kits de higiene e limpeza”, conta Luciane.

A iniciativa “Solidariedade na Cidade Invisível” é uma ação executada pelo Grito dos Excluídos Continental e integra o projeto  Fortalecimiento de la Red Jubileo Sur / Americas en el logro del desarrollo y de la soberanía de los pueblos latinoamericanos y caribeños, confinanciado pela União Europeia*. A iniciativa também integra o conjunto de ações da Rede Jubileu Sul, no contexto de combate à pandemia de Covid-19.

* Esta matéria foi produzida com a participação exclusiva da Rede Jubileu Sul Brasil, não podendo, em caso algum, considerar-se que reflete a posição da União Europeia (UE) sobre o tema.

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