Diante do cenário de entrega do patrimônio publico, de perdas de direitos sociais, de destruição ecológica e da política ambiental, de fome e miséria crescentes, dos cofres públicos sendo delapidados pelas aves de rapina do capital financeiro não podemos deixar de lado a esfera “religiosa” que envolve a vida política no Brasil. Vale nesse momento de nossa história voltar o olhar para a íntima e antiga relação: política e religião.

Como afirma o antropólogo Clifford Geertz , “na verdade a religião nunca desapareceu”. Embora as ciências sociais tenham se afastado dessa reflexão e aprofundado outros fenômenos da modernidade como secularismo, nacionalismo, racionalização e globalização, por entender que vivemos o declínio da hegemonia das religiões sobre os povos, o que vemos, especialmente na América Latina, é o fenômeno crescente das igrejas pentecostais e alianças políticas partidárias fundamentadas no moralismo que se hospeda na comunidade cristã evangélica pentecostal e católica conservadora. 

É nesse ambiente que crescem e se alimentam os fundamentalismos que se aprofundam e podem ser normalizados na cultura de nossos povos. De onde vem o fenômeno do ódio dirigido à população negra, do preconceito violento com as populações LGBTI, da histórica discriminação com as mulheres?

Como não discutir religião e política num país em que a bancada católica autodeclarada da Câmara dos Deputados é de 53% e a evangélica representa 21%? Chama também atenção o fato de que esses números são maiores do que, por exemplo, a presença de mulheres deputadas que representa apenas 15%. Vale lembrar que as mulheres são mais de 51,8% da população brasileira.

O governo brasileiro, liderado por Bolsonaro, vive um momento político pautado no controle dos corpos, no discurso moralista que se protege na cultura religiosa, na defesa do que chamam de bons costumes, na negação da ciência, sempre apostando na fé cega de pessoas que, capitaneadas especialmente por líderes religiosos, acreditam estar do lado do bem, em heroica oposição ao mal.

Desrespeitando normas sanitárias estaduais e municipais para o combate ao coronavírus, acompanhando pelo o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, Bolsonaro voltou a provocar aglomeração neste domingo (23), desta vez no Rio de Janeiro. Sem constrangimento, pudor ou responsabilidade pública, a cena e os discursos revelam que o governo banaliza as quase 450 mil mortes, abomina o uso de máscara, insiste na propaganda de medicamentos sem efeito para o tratamento de Covid-19 e ignora a campanha de vacinação. Nos discursos, Bolsonaro não abre mão de referências a valores relacionados à cultura religiosa. “Temos que agradecer à nossa direita, àqueles que defendem a família, a Pátria e que têm Deus no coração”, disse neste domingo. É ou não é importante falarmos sobre religião e política?

Nesse ambiente sem abertura para diálogos, a religião cumpre um papel social tanto para a elite burguesa quanto para as periferias sofridas: “aguentar”, “suportar”. Paulo Leminski retrata bem essa realidade em sua poesia “Um homem com uma dor”. Os versos dizem que são três os remédios para quem está sofrendo: “Ópios, édens, analgésicos. Não me toquem nessa dor. Ela é tudo o que me sobra sofrer. Vai ser a minha última obra”.

Sonho, paraíso e analgésico é o que procuram as pessoas quando aderem às narrativas com promessas de salvação dos corpos na Terra e no céu, seja na Igreja, seja na hora de escolher seus governantes. Assim testemunhamos a ascensão de um Estado patriarcal, racista, capitalista, patrimonialista (o público é o privado de poucos), monoteísta (Cristo centrista ou Cristo fascista), militarista e grande incentivador da propriedade privada da terra, dos territórios e da natureza.

E se numa roda de conversa escutar a máxima “Política e religião não se discute”? Esse era um modo de nos proteger de enfrentamentos “desnecessários” e manter um ambiente sem confrontos. Diante da ameaça de um sistema político que usa o sentimento religioso do povo para legitimar ações que ferem a democracia, destrói a natureza e mata os pobres de fome, de tiro ou de Covid-19, não há outro caminho possível que não seja abrir esse diálogo e superar enganos históricos que nos fazem acreditar que o confronto de ideias é ruim, que a revolução política é apenas uma utopia que não se aplica mais aos nossos tempos.

Não devemos! Não pagamos!

Somos os povos, os credores!

                                                      Rede Jubileu Sul Brasil, 24 de Maio de 2021

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