Arte: Talita Ai lô | Jubileu Sul Brasil

Por Paulo Victor Melo | Especial para Jubileu Sul Brasil

O ano era 1988. Ainda com as feridas abertas da “longa noite de 21 anos” e aspirando uma qualidade democrática que ainda não havíamos experimentado enquanto país, o Brasil discutia a sua nova Carta Magna. Um Assembleia Nacional Constituinte, formada por parlamentares escolhidos para tal, coordenava a elaboração do novo texto constitucional, mas não sem a pressão cotidiana de movimentos sociais e organizações populares que almejavam a construção de um país com maior garantia de direitos.

Nesse processo, em sua 267ª sessão, a Assembleia Nacional Constituinte aprovou, em 17 de maio daquele ano, a criação do Sistema Único de Saúde. No “DNA” do SUS, porém, está a participação popular. Um marco neste sentido foi a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, que apontou a necessidade de inclusão da população na formatação e funcionamento do sistema de saúde.

“O SUS é uma escola de participação, especialmente através dos Conselhos paritários que a Constituição de 1988 estabeleceu, com o envolvimento direto de organizações da sociedade, entidades profissionais e vários outros grupos”, disse dom Roberto Paz, Bispo Referencial Nacional da Pastoral da Saúde.

E, apesar das constantes tentativas de sua fragilização, o SUS segue sendo construído com o mesmo DNA da participação. “É importante lembrarmos que o SUS se faz através dos esforços das trabalhadoras e trabalhadores em todo o Brasil, atuando através das gestões municipais, estaduais e federais. Ainda o nosso SUS é feito com participação e mobilização popular e social”, destacou José Alexandre Buso Weiller, gestor no SUS e integrante da Escola Tamuya de Formação Popular.

O subfinanciamento crônico e as desigualdades

Uma das principais ações nesse intento de fragilizar o SUS é o cada vez menor investimento público no sistema. De acordo com a Associação Brasileira de Economia da Saúde, desde 2018, o SUS perdeu R$ 22,5 bilhões, conforme valores que constam na Lei Orçamentária Anual de 2020.

O principal instrumento para esse objetivo de minimizar o papel do SUS é a Emenda Constitucional 95, aprovada em 2016, que congelou por vinte anos os recursos de financiamento de uma série de políticas públicas e sociais, dentre as quais as de saúde.

Atualmente, o financiamento do SUS representa um investimento médio de R$ 3,79/pessoa/dia. Em 2036, após 20 anos da EC 95, a previsão é de redução para R$ 1,10/pessoa/dia.

“Se hoje é quase um milagre que o SUS ostente os números positivos que registra, sendo um sistema eficiente, bem ao contrário do que afirma o ministro Guedes, nem um milagre será capaz de manter este desempenho sob os efeitos da EC-95. É urgente revogar essa EC de 2016, pois, a cada dia, ampliam-se seus efeitos destrutivos do SUS”, escreveu Paulo Capel Narvai, professor de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

Para Ionara Magalhães, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdades em Saúde, é essencial defender os princípios que baseiam o SUS, a exemplo da integralidade e da universidade, inclusive como superação de uma lógica do “sistema feito para pobres”, que sustenta o baixo financiamento. “Se reforçarmos a ideia de que o SUS é para pobres, aí vamos reforçar que ele deve ser mesmo precarizado e marginalizado”, alerta.

Integrante do Grupo de Trabalho Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Ionara acredita que uma das bases do subfinanciamento crônico do SUS é o racismo estrutural e o preconceito contra pobres. “Entre 75% e 80% da população que utiliza exclusivamente o SUS para serviços de saúde é negra, o que faz que esse sistema seja alvo de precariedade, ou que não deve ser financiado ou que ‘qualquer coisa serve’”.

Além do subfinanciamento crônico, Ionara cita outros problemas enfrentados pelo SUS que refletem as históricas dívidas sociais do Estado brasileiro com segmentos mais vulnerabilizados da população. “Muitas políticas não foram implementadas, sobretudo as políticas que preconizam igualdade de direitos, como as voltadas à saúde da população negra, indígena, LGBTI, mulheres, além dos impactos do subfinanciamento na saúde do trabalhador, na vigilância epidemiológica, na assistência farmacêutica, dentre outras áreas”, critica.

O SUS diante de um governo genocida

Como aliada da EC 95 no objetivo de destruição do SUS, José Alexandre enfatiza a “falta de coordenação e responsabilidade do Governo Federal” frente à pandemia de covid-19, que coloca uma série de desafios para os serviços do SUS.

“Os pontos mais urgentes são o processo de vacinação contra a Covid-19; a corrida para atendimento adequado para as “filas do SUS” que foram ampliadas pelo processo de suspensão dos atendimentos eletivos no SUS; os efeitos sobre o processo de saúde-doença que os contaminados pelo Covid-19 têm desencadeado (sintomas e problemas cardiorrespiratórios e outros ainda não investigados/apresentados); e, por fim, a urgente necessidade de incorporar mais leitos de UTI dada à ampliação da demanda em um cenário de insuficiência crônica deste leitos no SUS (leitos/1.000 hab.)”, indica.

José Alexandre, que atua também na Associação Paulista de Saúde Pública, denuncia, por exemplo a deliberada demora no início da vacinação no país. “O processo de vacinação no Brasil se iniciou de forma extremamente tardia considerando as posições do presidente Bolsonaro, juntamente com um Congresso Nacional e demais órgãos federais públicos que ficaram “aguardando” o cenário global e brasileiro mudar com a pandemia. De fato, o atraso na obtenção de doses pelo Ministério da Saúde dificultou o início da imunização, somando-se ainda as dezenas de negativas do próprio Governo Federal para as ofertas de vendas de vacina por empresas estrangeiras”, avalia.

Militante em defesa da saúde pública, José Alexandre chama a atenção ainda para outras duas problemáticas: a suspensão de consultas, procedimentos e exames quando do início da pandemia; e o aparecimento de novas morbidades e sintomas.

A respeito do primeiro aspecto, ele alerta para um possível “agravamento e cronificação de doenças ou morbidades que estavam em processo de tratamento ou que nem chegaram a ser iniciados”. O que poderemos ver com o fim da pandemia, diz Alexandre, “é uma explosão ‘das filas do SUS’ em todo território nacional, como procedimentos clínicos, cirúrgicos ou de diagnóstico em hospitais e ambulatórios, além de transplantes, órteses, próteses, entre outros”.

Sobre morbidades e sintomas que demandam novos tratamentos e procedimentos, ele menciona “casos de perda permanente da capacidade respiratória e casos relacionados ao aumento de sintomas e doenças cardiocirculatórias”.

A indispensável mobilização por um SUS democrático e popular

33 anos após a aprovação de criação do SUS pela Assembleia Nacional Constituinte fica a pergunta: como avançar, em meio a este cenário que vivemos, na defesa de um SUS cada vez mais popular e democrático, que consolide os seus princípios de universalidade, integralidade, equidade, participação social e descentralização?

A resposta, para João Alexandre, passa inicialmente pelo financiamento. “Para falar sobre saídas possíveis e permanentes para o SUS devemos, de saída, corrigir seu financiamento, ou seja, corrigir os erros de décadas de subfinanciamento e desfinanciamento do sistema. Para tanto é necessário reestabelecer as bases da política econômica brasileira principalmente sobre seu tripé – câmbio flutuante, metas de inflação perversas e superávits primários ‘a qualquer custo’. Este tripé deve ficar à serviço do povo brasileiro e não dos grandes e médios capitalistas brasileiros e internacionais”.

Colocar o direito à vida acima da dívida pública é outra ação fundamental, segundo Alexandre, “pressionando uma redução drástica nas taxas de juros (SELIC), que funcionam como um aparelho nacional de expropriação do valor produzido por nós, através da Dívida Pública e do pagamento de seus juros exorbitantes (mais de 3 “SUS” ao ano)”. Ele defende também “uma auditoria popular e pública sobre as receitas e despesas do Orçamento da Seguridade Social que sofre ataques a partir das Desvinculações de Receitas da União, retirando recursos protegidos pela Constituição”.

A professora Ionara Magalhães entende ser imperioso “um amplo debate com a sociedade, no sentido de compreendermos que o SUS é o maior patrimônio que temos e que está salvando muitas vidas na pandemia, revogar a EC 95 e exigir o aumento dos investimentos na saúde”.

No mesmo sentido, dom Roberto Paz julga necessário “o trabalho em rede para a defesa efetiva do SUS e o seu fortalecimento (…) com calendário de atividades para exigir uma dotação orçamentária de maior volume para consolidar e operacionalizar o SUS no combate à pandemia e garantir a vacinação, que está num ritmo ainda não satisfatório”.

Para o bispo, um caminho pode ser a articulação via 6ª Semana Social Brasileira, “que pode trabalhar o eixo economia, trabalho e saúde, colocando o SUS dentro de um projeto democrático e popular de nação, nos marcos do SUS defendido em 1988, que seja um sistema único, cidadão, inclusivo, equitativo e universal”.

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