Por Paulo Victor Melo | Especial para o JSB

No último sábado (10), o Estatuto da Cidade completou duas décadas de vigência. Gestado a partir de intensas lutas populares por cidades democráticas, para todas e todos, o Estatuto prevê o Plano Diretor como o principal instrumento para o planejamento urbano municipal.

20 anos depois, o que significa o Estatuto da Cidade para as mulheres brasileiras? Como a revisão do Plano Diretor tem sido conduzida em algumas cidades brasileiras e como as discussões em torno do Plano afetam as mulheres? Quais os principais desafios do nosso país na garantia do direito à cidade para as mulheres?

Para compreendermos essas e outras questões, dialogamos com cinco mulheres que vivem em territórios que lutam por habitação digna ou atuam em movimentos sociais que têm a reivindicação pelo direito à moradia como pauta prioritária.

Nancy Aguiar, moradora da ocupação Vito Giannotti (RJ). Foto: Arquivo Pessoal

E a cidade que tem braços abertos num cartão postal…

Bairro do Santo Cristo. Zona Portuária do Rio de Janeiro, região central da cidade. Num prédio que já abrigou o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e ficou abandonado por 15 anos, teve início em 16 de janeiro de 2016 a Ocupação Vito Giannotti, onde vivem atualmente 28 famílias.

Uma das moradoras da Ocupação é Nancy Aguiar, que frisa: “sempre batalhamos para ficar aqui no Centro, onde nós nos criamos e temos nossas vidas”.

Nancy relembra que, especialmente a partir de 2009, com o lançamento do Porto Maravilha, um megaprojeto de pretensa revitalização urbana do Rio de Janeiro, centenas de famílias foram retiradas dos locais em que viviam.

“O Porto Maravilha deixou um monte de obra para trás, muita coisa inacabada, mal feita, galpões abandonados. Foram prometidos apartamentos do Minha Casa, Minha Vida a pessoas que foram removidas do Morro da Providência e até hoje não foram garantidos. Famílias tiveram que tirar seus filhos da escola, interrompendo suas vidas, parando tratamentos, consultas médicas…”, expõe.

Em revisão, o Plano Diretor da cidade é também criticado por Nancy. “Esse Plano vem para beneficiar os empresários. Não é dito quantas casas vão ser destinadas a famílias pobres, com renda de até três salários mínimos”, relata.

Jurema Constâncio, da União Nacional por Moradia Popular. Foto: Arquivo Pessoal

Os depoimentos de Nancy expressam um contexto mais amplo de negação do direito à moradia em todo o Rio de Janeiro. Segundo Jurema Constâncio, da União Nacional por Moradia Popular, “os moradores dos bairros da periferia, as favelas, os loteamentos irregulares, os cortiços continuam com todos os problemas que os impedem de gozar do direito à cidade”.

Se, por um lado, o Estatuto da Cidade “mudou a lógica de atuação nas cidades por meio dos municípios e pelo sistema jurídico”, por outro, Jurema compreende que “no Rio de Janeiro, ainda não conseguimos que os planos diretores pudessem diminuir a grande desigualdade que existe”.

Sobre os caminhos necessários para a reversão deste cenário, ela menciona que os municípios precisam “em primeiro lugar reconhecer e demarcar as áreas de interesse social das favelas e loteamentos irregulares para serem urbanizadas e regularizadas”.

Além da demarcação das Zeis, aponta Jurema, “a luta é para que a prefeitura aplique o imposto territorial progressivo para que as áreas que não cumprem a função social da propriedade possam ser destinadas a moradia popular e outros instrumentos que podem contribuir para melhoria das condições do povo sofrido”.

Do Rio a Fortaleza

Do Centro do Rio de Janeiro, sigamos para a periferia de Fortaleza, onde existe, desde a década de 1970, a Ocupação Planalto Pici.

Moradora há 27 anos da Planalto Pici, Cícera Martins declara ficar “muito triste e indignada pela falta de respeito das gestões públicas não terem feito ou tentado pelo menos realizar as demandas do Plano Diretor”.

Cícera descreve que, em 2009, “com muitas articulações e pressões dos movimentos socias, a população conseguiu participar da discussão do Plano Diretor, garantindo algumas medidas para o direito à moradia digna, a exemplo das zonas especiais de interesse social, as Zeis”.

Cícera Martins, moradora há 27 anos da Planalto Pici, em Fortaleza (CE). Foto: Priscilla Sousa

Mais de dez anos depois, Cícera conta que, porém, “o que conseguimos em relação às Zeis, através de muita pressão, lágrimas e empurrões da Guarda Municipal, foi a realização dos planos integrados de regularização fundiária (PIRF), que está na Câmara para aprovação”.

A respeito do processo de revisão do Plano Diretor que, por lei, deveria ter ocorrido em 2019, Cícera diz que os territórios vulnerabilizados “estão lutando para que a revisão seja feita, mas com a participação da comunidade, pois a Prefeitura quer fazer de forma virtual, onde sabemos que a participação popular será mínima”.

Vulnerabilidades que se ampliam

Também moradora de Fortaleza, a pedagoga Nenzinha Ferreira ressalta que “falar de direito à cidade, é falar de direito à moradia como um direito fundamental. E estamos em luta não por qualquer moradia, mas moradia digna”.

Articuladora da ação Sinergia Popular na capital cearense, Nenzinha compreende que a crise sanitária ocasionada pela Covid-19 teve como impacto principal o aprofundamento das desigualdades. “Durante a pandemia quem já não tinha quase nada, ficou totalmente sem assistência básica, sem saúde, sem educação, sem trabalho e renda.  A população que já estava quase sem nada, vivencia despejos, em ações de reintegração de posse violentas em todo o país.  É importante perceber que os principais problemas urbanos estão relacionados à habitação, reflexo de políticas que invisibilizam a população mais pobre”, enfatiza.

Nenzinha Ferreira, articuladora do Sinergia Popular em Fortaleza (CE). Foto: Arquivo Pessoal

Nenzinha destaca que, para a concretização das políticas habitacionais, “é imprescindível a priorização orçamentária, debatida com a população de forma participativa, para que, assim, se possa garantir a execução de instrumentos de proteção jurídica à moradia presentes no Estatuto da Cidade”.

Entendimento semelhante tem Emília de Souza, do Conselho Popular da Cidade do Rio de Janeiro. “Infelizmente vemos o retrocesso avançando

assustadoramente a cada dia. Com a pandemia existem mais famílias sem casa, sem emprego e sem apoio do poder público. E as ameaças e remoções avançam a largos passos, sem ofertas de moradias, sem investimentos públicos em projetos de moradia digna para as famílias afetadas pelas ameaças provocadas pela ganância do capital”, argumenta.

Os dados sistematizados pela Campanha Despejo Zero confirmam o denunciado por Nenzinha e Emília: desde março de 2020, com o início da pandemia de coronavírus no Brasil, mais de 14 mil famílias de 20 estados do país sofreram despejos e reintegrações de posse. Além disso, outras 84 mil famílias, de 25 Unidades da Federação, dormem e acordam todos os dias sob a ameaça de remoção.

Emília de Souza, do Conselho Popular da Cidade do Rio de Janeiro. Foto: Arquivo Pessoal

As mulheres ouvidas integram a ação Sinergia Popular, uma iniciativa coordenada pelo Jubileu Sul Brasil (JSB), 6ª Semana Social Brasileira (SSB) e Central de Movimentos Populares (CMP), em três capitais: Fortaleza (CE), Rio de Janeiro (RJ) e Manaus (AM) . As atividades contam com o apoio da apoio do Ministério das Relações Exteriores Alemão*, que garantiu ao Instituto de Relações Exteriores (IFA) recursos para implementação do Programa de Financiamentos Zivik (Zivik Funding Program) e é cofinanciado pela União Europeia*.

* Esta matéria foi produzida com a participação exclusiva da Rede Jubileu Sul Brasil, não podendo, em caso algum, considerar-se que reflete a posição do Ministério das Relações Exteriores Alemão, Instituto de Relações Exteriores (IFA), e da União Europeia (UE) sobre o tema.

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