Seminário “Transição ou transação energética: agenda internacional, financiamento e repercussões” reuniu mais de 200 pessoas na Assembleia Legislativa do Ceará. Programação contou com visitas de campo em comunidades afetadas por megaempreendimentos em Aracati, Fortaleza e Santa Quitéria

Debate teve início com partilha dos relatos de experiências das visitas de campo aos territórios afetados. Foto: Flaviana Serafim

Por Flaviana Serafim – Jubileu Sul Brasil 

O Seminário “Transição ou transação energética: agenda internacional, financiamento e repercussões” debateu os impactos socioambientais causados pela exploração de energia renovável, os modelos de transição energética, suas políticas e financiamentos, e as alternativas para uma transição justa, popular e inclusiva frente à crise climática.

O encontro reuniu mais de 200 pessoas na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), nos dias 3 e 4 de abril, com representantes de organizações, movimentos populares, comunidades e ativistas, nos dias 3 e 4 de abril. A íntegra dos debates está disponível em vídeos no YouTube do Jubileu Sul Brasil (os trechos de cada mesa temática estão linkados ao longo do texto). 

Para troca de experiências, outras dezenas participaram em uma das três visitas de campo realizadas simultaneamente em 2 de abril, como parte da programação do seminário, em comunidades atingidas por megaempreendimentos, sobretudo relacionados à energia: o Assentamento Queimadas, em Santa Quitéria, afetado pela exploração de urânio; o Quilombo do Cumbe, em Aracati, impactado pela invasão de um parque eólico e pela carcinicultura, as “fazendas” de criação de camarões em cativeiro (leia mais sobre a visita ao Cumbe e assista o vídeo nesta reportagem); e o Conjunto Palmeiras, em Fortaleza, afetado pela especulação imobiliária que destruição uma área de preservação.  

Foi a partilha do relato das visitas que abriu os debates na Alece, na manhã da quinta-feira (03/04), numa análise de conjuntura que partiu dos territórios para refletir sobre o contexto nacional e internacional que têm caracterizado a mudança da matriz energética: uma transição pautada em transações comerciais que, distantes de qualquer “sustentabilidade” socioambiental, violam direitos humanos e da natureza para favorecer grandes corporações privadas. 

Acesse as apresentações das/dos painelistas do seminário.
Confira pasta de imagens das visitas de campo e do seminário (em alta resolução). 
Leia mais sobre o 2º dia do seminário: Racismo ambiental naturaliza precarização do povo e dos territórios negros

“A transição é urgente na nossa sociedade, mas ao dizer isso não podemos deixar de analisar que, para o governo brasileiro, ela é muito mais uma estratégia discursiva porque, analisando o Novo PAC, 62% dos recursos para aceleração do crescimento vai para as energias fósseis. Enquanto voltávamos da COP, no final de 2023, vimos um dos maiores leilões de fósseis, que coloca não só a foz do Rio Amazonas à disposição desses leilões como outras regiões que são muito caras à sociobiodiversidade brasileira”, afirma em sua análise Soraya Tupinambá, do Instituto Terramar (confira o vídeo da 1ª mesa).

Na análise internacional, a economista Sandra Quintela, do Jubileu Sul Brasil, falou sobre o processo histórico que resultou no grande poder e concentração de renda do capital financeiro, sobretudo nos últimos 20 anos, chamando atenção para a financeirização da natureza que transforma os bens comuns em mercadoria. 

“Abriram flancos para uma liberalização total, para privatização e perda de direitos com cortes sociais para garantir a remuneração do capital financeiro sem produção real da vida. Todo esse processo em nome do ‘clima’, das relações de cooperação, dos acordos comerciais, mas para garantir o quê? A supremacia do capital financeiro sobre os interesses dos povos”, criticou. 

Transição energética como estratégia para legitimar mineração

O contexto atual sobre transição energética” foi tema da segunda mesa, iniciada pelo professor Bruno Milanez, do Comitê em Defesa dos Territórios frente à Mineração. Alvo de críticas, especialmente por conta do rompimento de barragens, o setor mineral tem usado o discurso de combate às mudanças climáticas como estratégia de legitimação da mineração no Brasil e no mundo. 

“Eles conseguiram dar um ‘cavalinho de pau’ na história, com o argumento  simplesmente de que têm um papel vital, são essenciais – segundo eles mesmos –  para garantir a transição. São ‘peças fundamentais’, são ‘sustentáveis’, são parte da solução porque os minérios são necessários às tecnologias [renováveis] para gerar, armazenar e fazer a transmissão de energia”, disse Milanez. Segundo os dados apresentados na exposição, a expectativa de demanda para transição energética representa um aumento de mais de 8.845% na produção de lítio, de 1.788% no caso do cobalto e de 25% a 50% de cobre, gálio, índio, manganês e prata.  

“Qual vai ser o tamanho do impacto de tudo isso? Qual vai ser o tempo e onde vai acontecer? E o terceiro problema: não há esse material suficiente no mundo”, observou. Além da incorporação da questão mineral na discussão sobre o combate da crise climática, Milanez considera que é preciso criticar a construção dessa “legitimidade” da mineração e avaliar o papel do Brasil como exportador de commodities minerais e energéticas. 

Debatedores na mesa sobre o contexto atual da transição energética. Foto: Claudia Pereira

Transição justa, popular e inclusiva

O engenheiro eletricista Joilson Costa, da Frente por uma Nova Política Energética para o Brasil, fez um panorama da geração de energia no mundo na atualidade, sobre a posição do país na transição energética e debateu os desafios frente à petrodependência. Como caminhos de superação, destacou a importância de que a transição energética seja justa, popular e inclusiva: 

“Uma transição que aconteça com aumento das renováveis na matriz energética mundial, mas respeitando os direitos das pessoas e comunidades. Nossa visão é de uma transição que ocorra ao alcance das pessoas, com a possibilidade de que cada um possa gerar, em sua casa ou onde for, toda ou parte da energia que precisa para seu suprimento. O problema não é exatamente a fonte, mas a forma como é implementada”, explica o engenheiro, utilizando como exemplo uma micro eólica ou painéis fotovoltaicos nas residências. Para quem busca mais informações sobre o tema, Costa indicou a leitura do livro “Sociedade e energia: construindo a transição energética de e para pessoas e comunidades”, de iniciativa do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental. 

No período da tarde, a última mesa do dia abordou a “Atuação das instituições de financiamento na atualidade e a interface com temas como energia e clima”. A advogada feminista Magnólia Said, do Esplar Centro de Pesquisa e Assessoria, discorreu sobre as políticas prejudiciais impostas às populações nos países que contraem empréstimos de instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) que financeiro projetos do setor de energia no Sul global.  

Banco Mundial e FMI: financiadores internacionais de empreendimentos de energia impõem políticas restritivas aos países. Foto: Flaviana Serafim

“Se formos ver as recomendações do Banco Mundial nos seus documentos de estratégia de assistência ao país, ou nos estudos temáticos que eles fazem a pedido dos governos, percebemos que ali não são sugestões, são condicionalidades. Porque se os governos não cumprirem essas iniciativas nem as reformas que o banco propõe, vão perder tanto aval do BM como o aval para questões mais da macroeconomia do irmão gêmeo dele, o FMI”, pontua. 

Após a terceira mesa do dia, o público participante se dividiu em grupos de trabalho que  refletiram sobre como enfrentar as diferentes expressões do capitalismo, concluindo os debates com uma plenária no final da tarde.

Momento cultural

A programação cultural do seminário foi na noite de 3 de abril, com lançamento de publicações e apresentações artísticas na noite do 3 de abril, na sede do Esplar Centro de Pesquisa e Assessoria. A noite começou com a performance “Balaio”, com o ator e poeta Chicão Oliveira, seguida da apresentação do “Não insistas, rapariga!”, grupo de chorinho formado por mulheres musicistas – o nome inspirado numa canção de 1877, da compositora e instrumentista Chiquinha Gonzaga. 

Musicistas do grupo de chorinho “Não insistas, rapariga”. Foto: Flaviana Serafim

Foi lançado ainda o e-book “Da transição energética à transição ecológica: a contribuição da justiça ambiental e um convite ao debate”, de autoria de Cecília Campello A. Mello, Julianna Malerba e Soraya Tupinambá. A publicação traz questões como a relação entre as desigualdades sociais, as mudanças climáticas e a necessidade de transições energéticas mais sustentáveis. Acesse e baixe gratuitamente clicando aqui.

A realização do seminário é resultado de uma articulação organizadora integrada pela Adelco – Associação para Desenvolvimento Local Co-produzido, AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, Cáritas Brasileira Regional Ceará, Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), De Mãos Dadas Criamos Correnteza, ESPLAR Centro de Pesquisa e Assessoria, Frente por uma Nova Política Energética, Instituto PACS, Instituto Terramar, Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, Movimento de Atingidos por Renováveis – MAR, Movimento Pela Soberania Popular na Mineração – MAM, Observatório da Cultura e Meio Ambiente – Unilab, Rede Brasileira de Justiça Ambiental e Rede Jubileu Sul Brasil, Grupo Seridó Vivo, além da parceria com a Associação Fórum Suape, Marcha Mundial de Mulheres e  Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST Ceará.

O evento em Fortaleza contou ainda com apoio da Cese, Misereor, Fondo de Mujeres del Sur, Fundação Ford, Fundação Rosa Luxemburgo, Fundo Casa Socioambiental, União Europeia, do mandato dos deputados estaduais Luizianne e Renato Roseno, do vereador Gabriel Aguiar e das covereadoras da Mandata Nossa Cara.

Seminário “Transição ou transação energética?" - 03/04/24

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