Módulo 4 | Conteúdo do Curso Teto: Direito à Cidade e Segurança Alimentar; com tema: Formação das Ocupações e Favelas

Por Ilanyr Felipe | 6ªSSB Cursos

No dia 30 de setembro ocorreu o módulo 4 do curso Teto: Direito à Cidade e Segurança Alimentar. Com o tema, Formação das Ocupações e Favelas, que ficou por conta do advogado militante na área do Direito Urbanístico, Edmilson Mineiro, mestre na FAU/USP[1]. Edilson com um sorriso largo conseguiu desenvolver um tema árduo, instigante, complexo, com clareza e provocar os participantes no debate do chat e na vida. Segundo Edilson, hoje o problema da moradia não acontece somente nas grandes cidades, mas em todas as cidades e tem sua feição de forma diferente. A seguir, a transcrição da aula de Edilson:

A urbanização é um fenômeno que vem acontecendo em todo mundo, portanto, os índices de pessoas que vivem em cidades oscilam de acordo com o continente, país e áreas internas, uma vez que a África possui 38% de seus habitantes vivendo em cidades, na Ásia são 39,8%, na América Latina 77,4%, na América do Norte 80,7%, na Europa 72,2% e na Oceania 70,8%. em outra abordagem, tomando como princípio os países ricos e pobres, existe uma enorme disparidade quanto ao percentual de população urbana e rural. Na Bélgica, por exemplo, 97% das pessoas vivem em centros urbanos enquanto em Ruanda esse índice cai para 17%. Já o Brasil enfrenta uma realidade do crescimento das cidades, as pessoas foram sendo expulsas do campo, e até hoje não foi feito uma reforma agrária. O problema é estar na cidade, mas sendo exploradas e alienadas das suas capacidades.  Como que separadas por um muro invisível que impede que a maior parte das pessoas possam viver e usufruir da cidade. As pessoas têm direito à cidade, quando falamos de ocupação estamos falando de uma forma de reação de exclusão a que todos estão submetidos.

Nós temos um capitalismo que chamamos de subdesenvolvido que nessa questão da terra se traduz nessa transição incompleta, ou seja, não permitiu as pessoas acesso aos bens que são próprias do capitalismo. E citando Roberto Smith, afirma: “esse período de transição da propriedade semipública para a propriedade privada da terra, põe em evidência um processo de amplo apossamento de terras, que caracterizará a forma de apropriação das terras no país no qual a formação de latifúndios avançará sobre as pequenas posses, expulsando o pequeno posseiro em algumas áreas, num deslocamento constante em direção à novas fronteiras abertas.” O que temos no final do período colonial no Brasil é um apossamento das terras públicas que eram administradas pelo Brasil Colônia por quem detinha recursos. É uma propriedade que já nasce viciada pela violência, formas de exploração, que excluía os pequenos posseiros e o povo negro que já era escravizado, isso está na marca da formação da nossa sociedade que permite a gente dizer que essas grandes propriedades antes de tudo tem uma origem escória, a propriedade no Brasil sempre foi vinculada a esses processos de exploração desmedida que marcam as nossas relações econômicas. E em geral quem faz a violência para conseguir a terra não são os sem-terra, são os coronéis que se apropriaram dessas terras como exercício de poder e não como uma condição de gerar desenvolvimento. No Brasil a apropriação da terra nasce no sistema Sesmarias, que é o sistema que a coroa atribuía a determinados grupos econômicos e ao mesmo tempo essa concessão de terras que era feita convivia com a grilagem de terra, que é a ação do proprietário que fraudava o documento da terra que ele tinha se apropriado. É muito comum ver alguém que aparece com um documento que a terra é muito maior do que ele apresenta. E as vezes ninguém sabe de quem é a terra, na verdade a terra era do país e foi sendo apropriado por um grupo pequeno de forma ilegal. O movimento por moradia foi amadurecendo a ideia de que a terra é de quem trabalha e que faz um ativo para gerar desenvolvimento. Evidentemente que existe as leis do país a própria noção da propriedade também foi mudando e hoje a propriedade significa que você tem responsabilidade não só para si mesmo, mas também para o conjunto da coletividade. Não é porque existe um título que não possa se discutir a terra.

É importante entender que as coisas não acontecem aleatoriamente na cidade, até existe planejamentos. Porém, os planejamentos feitos nas cidades são feitos para gerar desigualdade, os interesses dos ricos sempre são preservados e dos pobres sempre deixados de lado, nem sempre é falta de planejamento, é o que o professor Flávio Vilaça, chamou de “a segregação é a mais importante manifestação espacial-urbana da desigualdade que impera em nossa sociedade”. As pessoas vivem sem acesso aos bens na cidade porque a cidade é pensada para fazer o “muro invisível”. Precisamos conhecer esses fenômenos para lutar contra. A segregação se manifesta como? Quando os empregos estão situados somente em uma região, as pessoas levam horas para chegar ao trabalho. Se manifesta também naqueles condôminos fechados onde ninguém se aproxima.  A ocupação é somente de um grupo que vive na prosperidade. Lutar por direitos na cidade é lutar contra essa segregação dos pobres nos benefícios da cidade. Mas o que é a propriedade e a posse?

O direito a propriedade, do ponto de vista subjetivo é o direito de usar, usufruir e dispor de um bem. Mas, do ponto de vista da sociedade, também incide nos aspectos pessoais e patrimoniais. Em geral, a propriedade se materializa pela criação de uma matrícula imobiliária individual registrada junto ao cartório de registro de imóveis[…]. Já a posse o código civil de 2002 não conceituou o que é posse, apenas diz o que é possuidor em seu art. 1.196: “considerasse possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Da interpretação desse artigo, extrai-se que o importante para a sistemática do direito civil brasileiro é a posse ser apresentada como uma relação entre a pessoa e a coisa, em virtude da sua função socioeconômica. O regime capitalista entende que é um direito natural da pessoa se apropriar da terra e ali exercer um poder absoluto sobre ela, assim mura, cerca a propriedade, e ali pode fazer o que bem entender. Dom Angélico Sandalo Bernardino chama de “regime capitalista”.

O presidente da república Jair Bolsonaro quando fala para armar a população, é também para defender esse direito de propriedade, mas é um modelo que só causa desajuste, injustiça e desigualdade. A propriedade não é mais um modelo absoluto, essa discussão já vem sendo feito no mundo todo, de que a propriedade não é só da pessoa que detém um título e muito poder, ela dever ser exercida cumprindo uma função social, ou seja, aquilo que for combinado coletivamente pelo conjunto de pessoas daquela região. Ex: a função daquele terreno pode ser a produção agrícola familiar ou orgânica, pode ser a função da água, reflorestar, cuidar das nascentes, pode ser que seja a moradia, de modo que todos possam morar com qualidade. Portanto, todo uso da propriedade se torna um bem coletivo, e esse jeito de ser função social está na constituição do país, ela é instrumento de luta que justifica o direito da moradia de quem está na cidade, quanto do poder público de fazer com que se cumpra o valor social. O Estatuto da Cidade (ver aula anterior sobre Habitação e Políticas Públicas) cria alguns instrumentos que concede ao poder público pressionar o dono para que ele coloque aquela terra para trabalhar e faça com que o uso seja equitativo.

Favela: do teto e do chão não se abre mão

As favelas nascem pela absoluta falta do estado em políticas de habitação, do liberalismo irresponsável. Tivemos no Brasil políticas ausentes, uma incapacidade muito grande de regular e fazer leis dos territórios em nossas cidades, ou ainda uma moradia para especulação do que fazer um teto para as pessoas. Um estado elitista, um conjunto de ações excludentes conduzido pelas elites econômicas. Importante retomar a aula 3 sobre Habitação e Políticas Pública para entender a história de como essas situações de moradia foram se formando, por exemplo morro da providência no Rio de Janeiro, do morro da Faviera, que são os escravos, os pobres que são mandados para lutar em Canudos com a promessa que ao voltar da guerra de Canudos teriam benefícios, e quando voltam o que recebem é a possibilidade de ocupar um morro fora da cidade, hoje está bem localizado, mas na época esses escravos constitui o que é considerado a primeira favela do Brasil, que tem esse nome por conta das faveiras, eles trouxeram essas mudas de plantas da região de Canudos.

Como estão as favelas hoje? Temos dificuldade em dizer quantas pessoas vivem na favela, mas é uma quantidade muito significativa, o senso dá conta em dizer que entre 10 e 15 milhões de pessoas vivendo em situações de insegurança da posse. Mas se multiplicar por 4 daria 60 milhões de pessoas, ou sejam 1/4 da população. É preciso que o senso faça uma análise bastante melhorada para produzir política públicas. Quando as favelas se consolidaram na década de 50 do século passado, as pessoas que estudavam essa realidade consideravam que as favelas era uma situação transitória e que logo as pessoas iam melhorar e mudar de vida, ou seja, logo conseguiria uma renda para ter uma casa em um loteamento, pois naquela época as favelas eram em topografias muito difíceis.  Essa interpretação trouxe a ideia da desfavelização, ou seja, tirar a favela/pessoas dali. Hoje em dia as pessoas que estudam esse assunto acreditam que quem mora na favela vai continuar morando na favela porque a terra está cada vez mais disputada e concretamente não existe mais terra suficiente para atender as pessoas fora dos lugares onde elas já estão. A ideia de que a favela precisa ser removida já não “cola” mais entre qualquer pessoa séria que está estudando o tema da habitação. O desafio é pensar como as pessoas permanecem nesses lugares em condições adequadas de moradia, ou seja, que a pessoa tenha segurança de que ela não terá despejo, assim ela pode reformar a casa, abrir um comércio, garantindo uma melhoria de vida nas áreas que são favilizadas, pois as favelas já são aquele mar de precariedade, que em geral eram pessoas migrantes e com muitas dificuldades. Hoje as favelas já reúnem diversas realidades entre si, tem muita gente trabalhando no comercio, na área de serviço. Em São Paulo, na favela de Paraisópolis tem pessoas com quatro pontos de alvenaria e construções muito bem-feitas e estáveis, embora tenha muita exclusão, existe também inclusão, as pessoas já conseguem comprar bens que melhoram suas vidas e nós não podemos condenar o fato das pessoas terem bens que vão melhorar sua qualidade de vida. Por outro lado ela acaba construindo um individualismo de como se vive nas cidades, separando do coletivo e não lutando para resolver os problemas básicos que se tem numa favela, pois há muita luta a se fazer por rede de esgoto, por escola, rede de água, transporte… é preciso organizar a vida comunitária pra se ter rede de solidariedade, o desafio é que se tenha políticas que respeite a identidade cultural que foi construída dentro da favela, que respeite o fato de que as pessoas colocaram a vida ali e que não querem muitas vezes sair dali, precisa de casas que sejam ventiladas e que não sejam levadas pelo deslizamento. É um desafio para quem está trabalhando com as favelas.

Como não havia espaço para construir conjuntos habitacionais para todas as pessoas a forma mais comum nos anos 60-70 foi por meio dos loteamentos. O loteador não tinha muitas obrigações, então praticamente era abrir ruas e vender o lote a prestação para as pessoas, mas com o tempo isso foi gerando áreas de risco e o legislador foi tentando criar regras para construir uma escola, praça etc. Esse loteador recebeu regras para que o estado depois viesse e oferecesse políticas de melhorias as pessoas, porém o loteador deixava as piores áreas, terrenos com declinações, córregos e nascentes. O poder público fazia de conta que não via e aprovava aquele loteamento. Então o povo que não tinha condições de comprar um lote, ao chegar no terreno via aquele espaço livre mesmo com dificuldades, era justamente ali que se ocupava para fazer as favelas, por isso muitas vezes a favela ganha o nome do bairro “favela da vila rica, favela da boa união”, é como se elas fosse uma extensão do próprio bairro, as favelas são ocupações que vão se consolidando em áreas públicas, e que se caracteriza como áreas que não tem viários dentro delas, são becos, escadas, uma casa em cima da outra, que agora tem direito de laje pra regulamentar quem é dono de tal pedaço e etc. Não é que existe riqueza em uma das áreas e pobreza nas favelas, há uma mistura entre as pessoas que tem condições e as outras em extrema pobreza, isso é o que caracteriza nossas favelas. Pior ainda é que há muitas tentativas por parte do setor imobiliário de colocar as favelas no chão.

Outro ponto a ser discutido são as ocupações, pois como disse Dito Barbosa “enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito”. O movimento de moradia não chama de invasão, mas ocupação. Quem invadiu foi Pedro Alvares Cabral, foram os coronéis. A colônia dizia mede aí o seu terreno “o cara tinha 100 mil metros e aparecia com cinco milhões de metros”, esses foram os invasores que estão na origem da apropriação da terra no Brasil. Certo dia um jornalista me perguntou se ocupar a terra é legal. Há legalidade nas ocupações de terra? Bem, se criminalizar a luta pela terra, você vai dizer que é crime, pois o direito penal diz que é crime. Mas se formos olhar do ponto de vista urbanístico que é o que estamos fazendo neste curso, nós temos que entender que toda terra tem que ter uma função social e que é dever de qualquer cidadão pressionar e usar as formas possíveis de pressão pra garantir que a terra cumpra a sua função social, então as ocupações são antes de tudo uma forma de questionar a estrutura injusta do sistema fundiário que existe no Brasil, e uma forma de fazer valer o Estatuto da Cidade, que afirma que toda terra deve ter uma serventia.

Existem vários tipos de ocupação: existe ocupação para que a pessoa more ali definitivamente; eu costumo dizer o seguinte: agora está na moda algumas pessoas fazerem a defesa do período da ditadura militar, mas as pessoas esquecem porque a ditadura caiu. A ditadura militar caiu no Brasil por vários fatores, mas um deles foi por conta da carestia, a situação de fome, a situação de pobreza que o povo estava submetido no final da década de 70 e início da década de 80. O modelo econômico da ditadura militar gerou um crescimento gigantesco na década de 70 e faliu no começo dos anos 80. Os trabalhadores não tinham condições de morar nas cidades e, por isso, foram fazer as ocupações nas periferias. Essa ocupação significa que cada um cercava o seu lote e depois ia lutar por água, asfalto, esgoto, escola, posto de saúde, ou seja, primeiro o povo chegou nessas áreas e depois chegaram os serviços, se é que chegaram esses serviços. Esse é um tipo de ocupação que até hoje infelizmente continua existindo em nossas cidades, pois não temos uma política de habitação adequada. Outro tipo de ocupação são aquelas para pressionar o poder político para tomar alguma iniciativa e investir em causas que seja prioritária, e citando novamente Dom Angélico “política é igual feijão, só vai bem na pressão”. Esse tipo de ocupação teve grande êxito, pois a elite expulsou o povo, mas o MST (Movimento dos Trabalhadores sem Terra) com sua organização conseguiu fazer com que a empresa estadual de habitação desapropriasse outro terreno e construísse. Cito como exemplo a cidade de São Bernardo do Campo, uma cidade com grande poder aquisitivo por conta da indústria automobilística. Ali foi desapropriado outro terreno para garantir moradia as pessoas que lutaram por direito.

As ocupações evidenciam duas questões: existe uma cidade para os ricos e outra cidade para os pobres, a cidade dos ricos é sustentada pelo poder público e a cidade dos pobres é sustentada pela própria iniciativa das pessoas. Outro tipo de ocupação são as que chamamos de ocupações nas áreas centrais: temos ocupações em todas as grandes capitais. Cito novamente a cidade de São Paulo, por me sentir mais seguro, é o ambiente onde estou envolvido, temos prédios que foram construídos na década de 40-50 pelo mercado imobiliários e muitas vezes pelos barões do café. Eu brinco que o pessoal do mercado imobiliário parece aquelas revoadas de gafanhoto, pois chegam em um determinado lugar, consome toda energia que tem e vão para outro lugar. Em São Paulo, essa região foi muito pungente no país na época da República Café com Leite, depois os donos abandonaram e o movimento de moradia ocupou esse terreno, pois ele fica do lado da estação do metrô, a cindo minutos da Catedral da Sé, numa região onde sobra vaga de creche, escola, tem teatro, biblioteca, cinema, e dez empregos para cada pessoa, nesse bairro onde esse prédio está vazio há tanto tempo. Então a partir dos anos 80-90 o movimento já havia ocupado a experiência anterior das periferias, começaram a pensar diferente “nós queremos morar, mas onde tenha toda infraestrutura”. E essas ações dos movimentos de fazer as ocupações em áreas centrais abre um processo de resistência, as pessoas estão morando nesse edifício, ao morar eles consertam os problemas do prédio, consertam elevador (quando possível), e toda estrutura e vão forçando o poder público a fazer uma coisa que ele não quer: forçar o dono desse terreno a alguma negociação para o atendimento coletivo dessas pessoas. Temos inclusive o exemplo do hotel Hotel Cambridge” que virou filme recentemente, e temos vários exemplos de prédios ocupados que forçaram o poder público pela força dos movimentos por moradia.

As ocupações nas áreas periféricas sempre foram motivos de muito embate e disputa que se dava muitas vezes entre os ocupantes e os proprietários. As ocupações nas áreas centrais trouxeram um outro ator que foi o estado, que pode ser chamado de prefeitura, governo do estado ou federal, porém o estado aqui entrou pra reprimir, criminalizar, especialmente criminalizar as lideranças dessas ocupações e, muitas vezes, com os argumentos de que essas lideranças estavam colocando as pessoas em risco, colocando as pessoas em prédios sem condições de habitação, a verdade é que os prédios há muito tempo não estavam em condições razoáveis. Teve lideranças que até foram presas, algumas até revogadas por entender que foi injusta. Em São Paulo, foi realizado um estudo com cem prédios ocupados e o estudo mostrou que as condições desses prédios eram muito parecidas com os prédios que não estavam ocupados. Houve outras políticas para resolver essas questões como o programa Minha Casa Minha Vida, dos governos Lula e Dilma, mas hoje o governo não tem nenhuma política de habitação, seja para reformar os prédios, ou mesmo trazer as pessoas para mais perto do trabalho.

Outra forma de ocupação são os Conjuntos Habitacionais, que muitas leva o nome de quem construiu, em São Paulo, se chama COHAB, que são empresas que se associaram ao antigo BNH, Banco Nacional de Habitação e construiu grande conjuntos habitacionais inspirados em modelos já superados de produção habitacional, modelos dos Estados Unidos, da Alemanha, União Soviética (confira modelos atuais na aula 3 de Políticas de Habitação, com Evaniza Rodrigues, mestre em arquitetura e urbanismo), no Brasil serviu para investir em grandes construtoras para receberem verbas públicas, essas construtoras pegavam o dinheiro público e abriam novas fronteiras nos extremos das cidades. Eu costumo brincar que se você quer saber se chegou numa cidade e vai entrar em outra, é quando você avista o primeiro conjunto habitacional, ali é a divisa, o lugar mais longe onde se podia colocar os pobres são os conjuntos habitacionais feitos pelo Brasil a fora, esse padrão de construção foi iniciado pela ditadura militar em 1964, assim que se deu o golpe logo se construiu o Banco Nacional de habitação – BNH e o FSH, Sistema Financeiro de Habitação com ideologias muitos fortes de transformar o trabalhador em proprietário que não participasse de arruaça/lutas e passasse a defender o sistema. A verdade é que ninguém defende ditadura, ditadura é um regime de poucos, a casa aqui foi um mecanismo de apoio ao governo militar.

O BNH saiu distribuindo dinheiro “a torto e a direito” sem pensar no planejamento da cidade, esses conjuntos foram feitos com muita corrupção, desvio, que não significa só pegar o dinheiro, mas por exemplo, pegar a pior área para construir, muitas vezes precisa cortar o morro, fazer grandes obras de pavimentação, levar redes de água, esgoto, então um conjunto habitacional que podia custar 10 caba custando 100 a 150 milhões ou bilhões por conta do terreno que se escolhe. Outra crítica que se faz aos conjuntos habitacionais é que eles foram construindo guetos, as pessoas não tinham outras oportunidades, se tornou um lugar só de morar, bairros dormitórios, apartamentos todos iguais, ruas iguais, tudo igual, resumindo é isso, são modelos superados nas ocupações das cidades. Hoje não se concebe um lugar onde não se pode combinar moraria com comércio, cultura, equipamentos públicos, ainda que o Minha Casa Minha Vida tenha cometido muitas vezes o mesmo erro desses conjuntos. Esse modelo dever ser combatido, pois não favorece a convivência comunitária dos valores mais humanísticas.

Deus, olhai pelo povo das periferias

Essa frase do rap Ndee Naldinho, há 20 anos atrás se tinha índices de violência nas favelas parecidos ou superiores comparados aos índices de guerra. Morrem mais gente nas periferias vítimas da polícia corrupta, dos traficantes e da violência institucionalizada no país do que nas guerras, isso coloca um desafio para os movimentos populares, inclusive a ideia da teologia da prosperidade que reforça o individualismo, que valoriza apenas a competição individual, o empreendedorismo individual insensível a qualquer forma de solidariedade que também caracteriza a periferia. Fazer ocupações hoje precisa ser levado em conta tudo isso, o território da periferia já é muito disputado até pelo mercado imobiliário, por um lado pela ausência de políticas públicas, mas também por outros atores que podem transformar um processo que seria coletivo passa a contribuir para uma segregação social. Hoje, o Brasil é um país de periferias que a gente tá chamando de processo genocídio, de racismo estrutural, violência estrutural e a solução dos problemas vão vir quando a gente entender que as periferias tem uma potencialidade enorme e que não e só uma potencialidade comercial da inclusão pelo consumo.

Os loteamentos foram formas que o mercado encontrou de conseguir levantar dinheiro em terras onde não tinha tanto valor. Existe processo de parcelamento do solo com regulamentação desde a década de 30, como já disse, o loteador não tinha obrigação nenhuma, vendia a prestação, pois as pessoas não tinham condições e falava “se vira aí e constrói” a esse processo chamamos de auto construção, simplesmente dividia os lotes, o pessoal foi se ajudando, no final de semana um ajudava a construir ou a cobrir a laje do outro, fazia um churrasquinho, uma feijoada, e assim foi se construindo moradia no país, por um lado isso ajudou a pessoa a sair do aluguel e conseguir cuidar melhor da sua família, por outro lado o estado deixou sua obrigação de cuidar da infraestrutura, ou seja,  o esgoto, a água, a iluminação. Os loteamentos ainda trouxeram a política da troca de favores, associação de moradores ou amigos de bairro, que chegavam para o político e dizia “se você levar água para nosso bairro nós votamos em você”, isso acabou gerando o clientelismo e fazendo com que nossa cidadania não seja exercida de forma plena nos bairros, porque se tem ali uma troca de votos por serviços que são direito do povo.

O que evoluiu na luta dos loteamentos?

Cada vez mais a justiça foi reconhecendo que quando se faz um loteamento existe umas obrigações que devem ser cobradas do loteador, mas quando não localizar essa pessoa e é muito comum não localizar se torna uma obrigação do município/poder público. Então quem mora em um loteamento e não tem asfalto, luz, pode-se valer dos mecanismos que estão à disposição via ministério ou defensoria pública para obrigar o poder público a garantir a documentação e os serviços básicos necessários. Há ainda outra forma muito precária de morar nas cidades que á as chamadas área de risco, existe hoje um esforço para prevenir a ocupação de novas áreas de risco, pois lutar por uma ocupação não é viver em risco como vemos todo início de ano noticiados nos jornais. “A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”.

Existe também a lei do USUCAPIÃO, concessão de uso especial para fins de moradia, um instrumento que pode ser usado pelos movimentos, temos ainda a Concessão de Direito real de uso, onde a pessoa tem direito a uma concessão de moradia. Temos a zona especial de Zeis ou Aeis. É muito importante olhar os planos diretores de cada município para poder cobrar os direitos. Sugiro acessar a aula para entender parte por parte de cada lei e o que ela pode fazer a nosso favor.  Temos ainda a situação dos moradores em situação de rua, estão ali porque falta políticas adequadas de habitação/alojamento. Com a pandemia os aluguéis ficam impossíveis de serem pagos e o Judiciário continuou funcionando na pandemia para tirar a moradia das pessoas. Essa é uma face muito grave dos problemas da cidade. Outra face é o patrimônio da União Federal. • 700 mil imóveis (61% dos imóveis do país), além dos bens comuns de uso de todos (como praias e parques); bens usados pela própria administração no serviço público;  bens que não estão vinculados a um uso público específico e podem ser destinados tal qual um bem particular. São os terrenos de marinha e seus acrescidos, os terrenos marginais dos rios federais, as ilhas marítimas (quando não forem sede de município), os imóveis recebidos em pagamento de dívidas e os imóveis que pertenciam a órgãos extintos da administração federal (como rede ferroviária federal, lBA, IBC etc.), entre outros.

Por fim, temos as políticas de locação social, serviço social da moradia, que vão na contramão das parcerias públicas privadas que são uma forma disfarçada com que uma tecnocracia atrasada e comprometida com os interesses empresariais resolveu lapidar o patrimônio público, portanto, são políticas públicas contra a mercantilização da moradia e da vida.


[1] Atua desde 1994 na fiscalização, formulação e execução de políticas de habitação de interesse social. Foi assessor do vereador Henrique Pacheco, assessor da Presidência da COHAB/SP (2001-2004), Coordenador de Habitação da Prefeitura Municipal de Suzano (2005-2012) e assessor do vereador Nabil Bonduki (2012-2016). Atualmente é assessor jurídico da União dos Movimento de Moradia – UMM/SP e do Deputado Federal Paulo Teixeira.

Deixe um comentário