Em artigo publicado no portal Capire, integrantes do Jubileu Sul Brasil analisam os desafios para enfrentar a hegemonia do capital financeiro

Organizações na Conferência de Soberania Financeira realizada em 2023, em São Paulo. Foto: Flaviana Serafim/Jubileu Sul Brasil

Por Rosilene Wansetto, Sandra Quintela e Talita Guimarães*
Edição por Tica Moreno
– Capire

Há pelo menos 50 anos, a acumulação capitalista é regida pelo marco político e econômico neoliberal na América Latina. Nesse período, os Estados nacionais passaram por reformas profundas e, sob o discurso da “modernidade”, pavimentaram os pilares estruturantes para a financeirização.

Os países e seus povos foram perdendo as capacidades de gerir sua própria economia e participar da soberania financeira sobre sua moeda, assim como de definir seus orçamentos nacionais e de participar das decisões sobre eles. As políticas de ajuste estrutural impostas desde os anos 1980 fizeram com que os Estados se tornassem, cada vez mais, um excelente pagador de dívidas financeiras, em detrimento ao pagamento das dívidas sociais e históricas com a população empobrecida.

A retomada do poder de decidir sobre a soberania financeira dos países vai além de um debate do Banco Central ou de um Ministério da Fazenda e Economia: trata-se da recuperação do poder do povo de decidir sobre onde aplicará recursos públicos e quais as prioridades dos orçamentos. Esses foram os marcos da Conferência de Soberania Financeira realizada pelo Jubileu Sul Américas em parceria com CEAAL e CADTM, que contou com a presença de representantes de 20 países da América Latina e do Caribe.

Desde as grandes revoluções industriais do século XVIII, o capitalismo tem sido um corpo vivo em constante modificação e adaptação – metamorfose –, com a finalidade única de garantir um excedente maior do que quando começou, expelindo os entraves para a criação do mais-valor. O capital, seja em forma de dinheiro ou mercadoria, de capital constante, industrial ou fictício, se modifica visando a valorização. O mais-valor é a ordem, como lembram Rosa Marques e Paulo Nakatani, “o  movimento do capital deve ser compreendido como uma espécie de espírito, ou um fantasma, que muda de uma forma para outra e, nesse movimento, o capital vai submetendo as pessoas, as coisas e toda a sociedade aos seus desejos ou à sua lógica, como fosse um espírito fantasmagórico com vontade própria”. 

O sistema de dívida pública cumpriu um papel fundamental na gênese desse movimento, desde a acumulação primitiva do capital até a constituição do capital fictício. Esse é o núcleo primário de um mercado de títulos públicos e privados, que se estabeleceu como um dos principais mecanismos de controle da propriedade social no capitalismo. Hoje, os sistemas de dívidas garantem a reprodução do capital e asseguram a manutenção da queda da taxa de lucro. Esse sistema alimenta a dependência, sendo um obstáculo para que os países alcancem soberania financeira.

A dominância financeira se caracteriza pela centralidade do capital financeiro em comandar as relações de reprodução e expressa a escalada mundial neoliberal dos anos 1990. Essa lógica imprime nas políticas econômicas o modus operandi segundo o qual a austeridade é a “chave de eficácia” e é usada para justificar os cortes sociais. No Brasil, isso aconteceu com as reformas da previdência e trabalhista, investidas contra a seguridade social. Essas são formas que o capital encontra para seguir lucrando em detrimento do direito dos povos de decidir. Esse direito é capturado e colocado sob a égide da financeirização.

Entre muitas condicionantes, o atual modelo de acumulação sob a égide das finanças tem necessitado cada vez mais da apropriação dos recursos públicos na forma de dividendos. No caso brasileiro, o sistema de dívida pública tem transferido, ou melhor “drenado” recursos públicos de muitos para o bolso de alguns poucos rentistas, como diz o professor Dowbor. Essa é uma transferência sem custos aos rentistas, são só lucros. Até 1994, a distribuição de lucros e dividendos era tributada em 15%, e passou a ser isenta até os dias de hoje.

Ao longo das últimas três décadas, estima-se que cerca de 5% do PIB brasileiro tenha sido transferido aos ricos credores da dívida estatal, o equivalente a 1,6 vezes o PIB acumulado desde os anos de 1990. Conforme indicam Marques e Nakatani, “a expansão dos ativos financeiros no mundo, embora se mantenha forte, cresceu particularmente de forma vertiginosa nos anos de 1990. Em 2000, seu estoque era 111,8% maior do que em 1990; em 2010, apontava um crescimento de 91, 7% com relação a 2000 e, em 2014, já havia aumentado 42% frente a 2010”.

As dívidas financeiras e sociais são resultados de um passado de extorsão, exploração e aniquilamento de povos originários, negros, mulheres e outros grupos que sofrem os impactos de um modo de produção que executa a necropolítica, ou seja, a eliminação de vidas descartáveis para o capital. Nesse sistema, nenhum povo alcançará sua soberania financeira, pois seguirá dependente.

A competitividade imposta pela corrida tecnológica comanda as mudanças no tecido tecnológico e acarreta ganhos de escala constantes. No mesmo sentido estão os ativos do mercado de carbono, títulos verdes que chegam como solução, mas nada mais são do que uma forma de financeirizar a vida, a natureza e o clima. Não geram nem soberania nem cuidado com a vida.

Há um aprofundamento de crises sistêmicas deflagradas pelo colapso climático, pelo aumento das desigualdades sociais e pela concentração de renda. O capitalismo, ao contrário do que defendiam seus entusiastas, não se mostrou um modo de produção altruísta. Os “sentimentos morais cultivados nos princípios do mercado oferecem apenas a insegurança social e econômica, deixando a maioria das novas gerações sem possibilidade de sonhar.

Mesmo com tantas tragédias, a hegemonia do capital e seu poder preponderante podem ser explicados por elementos objetivos e subjetivos que vão além dessa nossa reflexão. A linha mestra do conceito de hegemonia de Antonio Gramsci contribui para a compreensão deste presente conjuntural. A hegemonia é obtida em embates que comportam não apenas questões vinculadas à estrutura econômica e à organização política, mas envolvem também, no plano ético-cultural, a expressão de saberes e práticas, modos de representação e modelos de autoridade que buscam se legitimar e se universalizar. Portanto, hegemonia não deve ser entendida nos limites de uma coerção simples, pois inclui a direção cultural e o consentimento social a um universo de convicções, normas morais e regras de conduta, assim como a destruição e a superação de outras crenças e sentimentos diante da vida e do mundo.

A constituição de hegemonia é um processo historicamente longo, que ocupa diversos espaços, e suas formas variam de acordo com os atores sociais envolvidos. Por fim, hegemonia se expressa por uma classe que lidera a constituição de um bloco histórico, que articula e dá coesão a diferentes grupos sociais em torno da criação de uma vontade coletiva – definida por “consciência operosa da necessidade histórica”.

Caminhos para a soberania financeira

Diferente da supremacia e hegemonia financeira atual, a soberania financeira parte da solidariedade, identidade e criatividade dos povos originários, quilombolas; da liderança e firmeza das mulheres em seus territórios, garantindo a participação popular e referendando outros espaços de decisão que garanta a participação popular.

A soberania financeira está presente na luta povo Awá Guarani pelo reconhecimento de seu território em Foz do Iguaçu (Hidrelétrica de Itaipu), na solidariedade na luta contra a militarização sofrida a décadas pelo povo haitiano, na solidariedade com o povo palestino brutalmente massacrado, na resistência contra a imposição das mais variadas austeridades fiscais das agências internacionais.

A soberania financeira está intrinsecamente ligada à soberania dos povos, à soberania alimentar, soberania hídrica e dos territórios. Como mencionado na declaração da Conferência: “Precisamos descolonizar o poder e construir um contrapoder de baixo para cima, dos povos e dos territórios, enraizado no respeito pelos processos históricos, na memória, na ancestralidade e no trabalho político de cada território, bem como construir e posicionar uma narrativa contra-hegemônica baseada em reciprocidade, complementaridade, coletividade e consciência de ser natureza”.

O fortalecimento de alternativas contra-hegemônicas concretas, forjadas na cultura popular e na criatividade dos povos, vitaliza a possibilidade de uma outra forma de organização da vida. Avancemos na constituição da soberania dos povos e na força das organizações populares que carregam nos seus corpos o caldo cultural do paradigma do Bem Viver e a imanência ancestral de Abya Ayala.

*Rosilene Wansetto, Sandra Quintela e Talita Guimarães integram a Rede Jubileu Sul Brasil.

Artigo publicado originalmente no portal Capire

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