Em nota, o Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental (FMCJS), membro da Rede Jubileu Sul Brasil, manifesta solidariedade às famílias afetadas, retoma o histórico de desastres ocorridos na cidade e denuncia: “Não se pode consentir que casos como o de Petrópolis sejam usados como justificativa para um novo período de remoções indiscriminadas de favelas e áreas de habitação popular”.

Foto: Arquivo Sefras

O Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental (FMCJS), por meio do trabalho do Núcleo Rio de Janeiro, se solidariza com todas famílias atingidas pelo desastre de Petrópolis, ocorrido no último dia 15 de fevereiro de 2022, e manifesta profundo pesar pelas mais de 200 vítimas desse desastre que já está entre as maiores tragédias do país.

Localizada na Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro, a cidade possui uma população de 307 mil pessoas (2021) e uma densidade demográfica de 371,85 hab/km² (2010) segundo o IBGE. Ao longo de sua história a cidade já passou por outros desastres em 2011, quando morreram aproximadamente 73 pessoas, em 1988 quando morreram 171 pessoas e em 1979 quando morreram 87 pessoas1. Portanto, desastres não são eventos inéditos ou imprevisíveis, tão pouco o número de mortes é capaz de expressar a escala dos problemas decorrentes. A avaliação dos impactos de um desastre envolve questões da ordem da saúde, do ambiente, da economia e do patrimônio cultural que, em geral, não são mensuráveis num curto espaço de tempo e exigem investimentos públicos de longo prazo.

O conceito de “desastre natural” vem sendo utilizado de forma recorrente por autoridades públicas e pela mídia hegemônica para justificar a tragédia, no entanto, esse conceito desconsidera os impactos da ação humana sobre a natureza bem como omite as responsabilidades públicas, principalmente no que se refere a implantação de políticas para adaptação e mitigação às mudanças climáticas. Para o FMCJS a noção de “desnaturalização dos desastres” é mais pertinente para interpretar fenômenos como o de Petrópolis. Tal noção propõe que desastres não são eventos isolados nem se relacionam exclusivamente aos fatores do clima e do relevo de uma região, mas resultam de um longo processo de desigualdades socioespaciais, de falta de investimentos públicos em infraestrutura urbana, de descumprimento de legislações e da insistência dos gestores de não envolverem ativamente os cidadãos e suas organizações representativas valorizando seus saberes e capacidades territoriais. Assim, a tragédia de Petrópolis expõe as desigualdades sociais já tão “normalizadas” por todos nós e o desprezo dos governos à adoção de medidas para prevenção dos desastres em união com sua comunidade representada.

As mudanças climáticas não são um problema do futuro distante. De acordo com o Relatório sobre o Clima do Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (IPCC), publicado em agosto de 2021, a temperatura do planeta alcançará o limite de +1,5ºC, em relação à era pré-industrial, no início da década de 2030, dez anos antes do previsto nas estimativas de 2018. Ainda de acordo com o painel do IPCC, eventos extremos como a chuva de Petrópolis devem ocorrer em maior intensidade e frequência nos próximos anos, afirmam que os intervalos entre um evento extremo e outro evento extremo que era de 100 anos podem passar a ocorrer até mesmo anualmente. A questão é que o aumento da frequência de eventos extremos é diretamente proporcional à diminuição da nossa capacidade de resposta a eles.. Assim, mesmo que uma parte da sociedade ainda negue a existência das mudanças climáticas e nada faça para mudar o modelo de desenvolvimento predatório que sustenta a sociedade capitalista, o colapso climático se tornará cada dia mais palpável. Lembramos que as mudanças climáticas oferecem um impacto particular nas condições de vida dos grupos e indivíduos vulnerabilizados, reforçando as desigualdades existentes. No entanto, todos serão atingidos a médio prazo.

No caso do desastre de Petrópolis, as chuvas foram provocadas pelo deslocamento da Zona de Convergência do Atlântico Sul que trouxe a umidade da Amazônia para o Sudeste. A chegada dessa massa de ar fria somada à massa de ar quente que já estava sobre a região fez com que em apenas seis horas chovesse 259 milímetros, volume maior que o esperado para o mês todo, 238 milímetros. Se uma das consequências das mudanças climáticas são chuvas extremas como essa, o desflorestamento da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal é a principal causa das emissões de gases do efeito estufa no Brasil. O aumento da devastação destes biomas nos últimos anos está diretamente relacionado à demanda por novas terras agricultáveis para cadeias produtivas de commodities agrícolas e pecuárias, em sua maior parte voltadas para exportação. No caso específico da Floresta Amazônica sabemos que se aproxima de seu “ponto de não retorno”, o que significa que não conseguirá mais se regenerar devido aos impactos do aquecimento global.

E o que vem depois do desastre?

Não se pode consentir que casos como o de Petrópolis sejam usados como justificativa para um novo período de remoções indiscriminadas de favelas e áreas de habitação popular. De tempos em tempos na nossa história, “autoridades públicas” apresentam novas e velhas justificativas para legitimar as remoções: em boa parte do século XX, o discurso era sanitário; nas últimas décadas, é o “risco ambiental”. Evidente que em determinadas situações, o deslocamento de famílias de áreas inadequadas à moradia é necessário. Não é admissível, no entanto, que se mantenha a lógica dos episódicos programas habitacionais que tivemos, responsáveis pelo deslocamento de famílias para lugares distantes do local de trabalho, sem infraestrutura urbana, longe de bens e serviços públicos e que esfacelam as redes de vizinhança2.

Não é admissível que políticos de plantão utilizem-se da situação para barganhar benesses eleitoreiras ou para impor a lógica da militarização da cidade, nem que a mídia hegemônica faça uso espúrio do sofrimento humano para aumentar sua audiência.

Não podemos seguir legitimando governos que priorizam as políticas neoliberais de austeridade fiscal na gestão pública. Conforme reportagem do Jornal Brasil de Fato3, a previsão de gastos em gestão ambiental para 2022 no estado do Rio de Janeiro diminuiu 54% em comparação com 2021. Em relação à execução do “Programa Prevenção de Risco e Recuperação das Áreas Atingidas” em 2021, apenas 40,4% do valor previsto em orçamento foi desembolsado. Dentro deste Programa, também houve redução de orçamento voltado para “Recuperação em Emergências e Desastres” e “Gestão e Prevenção de Risco Geológico”. A redução foi de 28% e 99,95%, respectivamente.

Enquanto isso, o Estado do Rio de Janeiro negocia o novo licenciamento da siderúrgica Ternium, antiga Thyssenkrupp (TKCSA), na Zona Oeste da capital que, sozinha, é responsável por mais da metade das emissões de CO2e do município (em 2017: 11,63 MtCO2e de 20,56 MtCO2e)4. Além dessas emissões, que representam uma decaída grave na política municipal sobre mudanças climáticas, o complexo siderúrgico criou no local um cenário de violações de direitos humanos e ambientais, em que prevalece o caos urbano e altos índices de poluição atmosférica. Observam-se graves prejuízos para os mesmos diante da poluição da água, que destrói a atividade econômica dos pescadores, danos às estruturas das casas bem como adoecimentos devido às frequentes chuvas de prata, entre outros.

É preciso combater a lógica do estado mínimo para as políticas e estado máximo para os interesses do capital. Só assim será possível começarmos a fazer frente aos enormes desafios postos pela crise climática.

Não falta saber técnico e popular para enfrentarmos os desastres e as mudanças climáticas. É preciso unir esforços entre os diversos segmentos do Estado e da sociedade para garantir, a curto prazo, o mínimo de dignidade para os atingidos pelo desastre de Petrópolis e, a longo prazo, para superarmos o modelo capitalocentrico que está internalizado não só nos estados mas nas nas nossas práticas mais cotidianas e certamente dificulta a construção de uma outra sociedade.

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