Arte divulgação: Talita Ai Lô | Jubileu Sul Brasil

A trajetória histórica do Brasil é marcada por dívidas sociais agudas ainda longe de serem resolvidas. Durante a pandemia a questão da moradia ganhou contornos ainda mais graves, e já não permite que governos e sociedade civil façam vistas grossas para o escândalo da falta de teto no país que aumenta visivelmente cada vez mais nas grandes cidades. Sem moradia digna não há saúde, não há relações sociais justas. Sem endereço não há acesso à educação, a trabalho e renda, não há dignidade humana.

É impossível fazer uma discussão sobre o acesso à moradia sem tocar na propriedade privada. Não basta colocar dinheiro e investir em programas sociais para habitação, é preciso muito mais. É preciso que o direito à moradia se sobreponha ao direito à propriedade. É preciso colocar o dedo nessa ferida!

De acordo com levantamento realizado pela campanha Despejo Zero, até junho de 2021, mais de 14.301 famílias foram removidas de suas casas; outras 84.092 estão ameaçadas de remoção contrariando orientações internacionais e determinações legais no Brasil que impedem despejos durante a pandemia. Levando em consideração famílias formadas em média por cinco pessoas, o número representa um cenário que coloca em situação de rua ou em moradias ainda mais precárias cerca de 500.000 pessoas.

A insegurança habitacional aponta para um maior agravamento após o prazo estabelecido para a proibição de despejos durante a pandemia, desde março de 2020 até 31 de dezembro de 2021. Dados divulgados pela Fundação João Pinheiro informam que o déficit habitacional em todo o Brasil está em 5,8 milhões de moradias. O estudo também apresenta uma tendência de aumento no déficit. Por outro lado, nos quatro anos considerados pelo estudo, o número de casas desocupadas por conta do valor alto do aluguel saltou de 2,814 milhões em 2016 para 3,035 milhões em 2019. Se temos tantos imóveis desocupados por que tantas famílias sem acesso à moradia?

A luta por moradia em nossa história recente vem carregada de conquistas, surpresas e decepções. Em 2005, movimentos sociais celebraram a aprovação do primeiro Projeto de Lei de iniciativa popular (PL 11.124/2005), que criou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS).

No entanto, passando por cima dessa construção, o governo Lula criou em 2009 o programa Minha Casa Minha Vida, que surge não como uma política social para moradia popular, mas como um programa econômico para enfrentamento da crise, a partir do financiamento às empreiteiras e construtoras que nada tinham a ver com as preocupações de habitação social contempladas no SNHIS e no FNHIS.

Para se ter uma ideia, em 2013, com o programa Minha Casa Minha Vida, a indústria da construção civil chegou a representar 13% do Produto Interno Bruto (PIB) no país.  Em 10 anos de projeto R$ 552 bilhões foram investidos, mas apenas cerca de R$ 115 bilhões foram aplicados para as faixas de renda onde se concentra mais de 90% do déficit habitacional com subsídios de 90%. O maior investimento foi aplicado em financiamentos no mercado imobiliário. Favorecendo desta forma a especulação imobiliária.

Mesmo com alguns avanços, sobretudo, a partir da luta dos movimentos de moradia para a criação do Minha Casa Minha Vida-Entidades e pela melhoria dos projetos, como já era previsível, por seu formato e lógica econômica, o programa não causou grandes impactos capazes de enfrentar a questão do acesso à moradia no Brasil, encarecendo a terra, empurrando cada vez mais a população pobre para as periferias, seguindo a lógica da especulação imobiliária e servindo para realocação de comunidades vítimas dos despejos e remoções promovidas para realização dos megaeventos e megaempreendimentos.

Com as indicações de aprimoramentos sugeridos pelos movimentos sociais não implementadas, a situação do programa no governo Temer ficou pior. Houve o desmonte total da política habitacional e orçamentos reduzidos. Com o governo Bolsonaro o drama se intensificou com cortes drásticos nos investimentos, que somente este ano passaram de 1,5 bilhão para 27 milhões e o lançamento do projeto Casa Verde e Amarela. A iniciativa não atende às necessidades da população mais pobre que recebe até dois salários mínimos e que representa mais de 90% do déficit habitacional. Uma verdadeira asfixia para a organização popular que luta por moradia no Brasil, com obras paralisadas, contratos suspensos e fim dos investimentos.

Os números que revelam a precariedade em saneamento e acesso à água são alarmantes: 35 milhões de brasileiros e brasileiras não têm acesso à água potável e cerca de 100 milhões não têm serviço de coleta de esgotos no país. Desses, 5,5 milhões estão nas 100 maiores cidades brasileiras, o equivalente à população da Noruega. Esses dados estão no ranking de saneamento, apresentado pelo Instituto Trata Brasil.

Não podemos mais aceitar tanto descaso. É preciso exigir uma política habitacional como direito fundamental, pautada na segurança jurídica da posse, disponibilidade de serviços e infraestrutura, custo acessível, habitabilidade, localização  e acessibilidade. Somente desse modo é possível resgatar a dignidade humana. Enquanto morar for um privilégio, seguiremos apoiando as ocupações e resistindo aos despejos. Moradia é um direito.

Despejo zero!

Dívida histórica e social!

Não devemos! Não pagamos!

Somos os povos, os credores!

                                                      Rede Jubileu Sul Brasil, 20 de Julho de 2021

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