Quatro mulheres da Rede falam sobre políticas públicas, luta por direitos fundamentais e superação das múltiplas violências que afetam a vida das mulheres.
Por Isabela Vieira e Jucelene Rocha
De acordo com dados da pesquisa Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, todas as formas de violência contra a mulher apresentaram crescimento acentuado em 2022, entre elas física, psicológica, sexual ou patrimonial.
Todas as pesquisas mais recentes revelam que a mulher não corre perigo apenas na rua. De acordo com essa pesquisa encomendada pelo Fórum junto ao Instituto Datafolha, mais de 18 milhões de mulheres sofreram alguma forma de violência em 2022. Em comparação com as pesquisas anteriores, todas as formas de violência contra a mulher apresentaram crescimento acentuado.
De acordo com os dados de 2022, cerca 73,7% dos casos o autor da violência é conhecido da vítima. Além disso, 53,8% das entrevistadas relataram que foram agredidas dentro de casa, dado que comprova que o que deveria ser um lar se torna o lugar menos seguro para as vítimas.
Apesar de serem submetidas ao medo constante, cada vez mais mulheres têm reagido à agressão como mostram os dados: em pesquisas anteriores, de 2017 e 2019, cerca de 52% das vítimas disseram não terem feito nada, em 2022 este número caiu para 45%.
A Rede Jubileu Sul Brasil (JSB) atua diretamente para fortalecer ações de proteção e prevenção da violência contra as mulheres e tem como prioridade a luta para garantir as reparações das dívidas sociais históricas que geram desigualdades escandalosas e colocam a vida das mulheres em perigo ou submetida a condições subhumanos. Por que as mulheres não estão priorizadas no orçamento público se representam 51,8% da população brasileira e são as principais vítimas das desigualdades sociais?
Em entrevista, quatro mulheres da Rede falam sobre políticas públicas, luta por direitos fundamentais e superação das múltiplas violências que afetam a vida das mulheres. Rosilene Wansetto, secretária executiva do Jubileu Sul Brasil; Magnólia Said, assessora de programas e projetos no Esplar – Centro de Pesquisa e Assessoria; Dirlene Marques, da Rede Nacional Feminista de Saúde e Aline Lima, educadora popular e coordenadora do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs).
O que a Rede Jubileu Sul entende ser central para a superação das dívidas sociais históricas com as mulheres na conjuntura que temos e pautar um caminho de fortalecimento das políticas públicas?
Rosilene Wansetto: Pensar na superação e na centralidade das dívidas sociais e históricas com as mulheres, primeiro é pensar no sentido de que o Estado brasileiro precisa reconhecer essa dívida, que tem a ver com jornada de trabalho tripla, ausência de políticas públicas como escola, creche para o cuidado dos filhos, negligência com a saúde preventiva, segurança e assistência social.
No momento atual, em que o tema das violências, racismo, misoginia e feminicídio têm sido cada vez mais evidentes, o Estado tem que pautar políticas públicas para superar essas situações inaceitáveis.
O feminicídio tem aumentado enormemente, os dados revelam a quantidade de mulheres sendo assassinadas por seus companheiros. A questão do direito ao corpo, o corpo como um território, todo o debate que envolve a questão do aborto porque menina não é mãe! São elementos que demonstram que pautar e fortalecer políticas públicas é fundamental, assim como fortalecer a voz das mulheres. Essas são questões fundamentais, estruturantes para pensar o fortalecimento de políticas públicas para mulheres, assim como o cuidado da saúde mental. As mulheres estão adoecendo vítimas de toda essa sobrecarga, tanto do trabalho, do cuidado da casa, da família e dos filhos, enfim, as exigências que a própria sociedade vai impondo sobre a vida das mulheres.
É importante destacar o lugar de fala dessas mulheres e o quanto é importante que os seus companheiros, os homens, não apoiem, mas dividam tarefas! Essa coisa de “eu ajudo” não, não é ajudar, é dividir! É assumir as tarefas do dia a dia, do cotidiano e também assumir o cuidado dos filhos, o cuidado da casa para que as mulheres se sintam menos sobrecarregadas.
Então, a agenda que o Jubileu tem se proposto no debate e na reflexão com as mulheres, perpassa essas temáticas, que pra nós são dívidas sociais e históricas que precisam de reparações, precisam estar em evidência para discutirmos na sociedade de hoje.
O Esplar acompanha de perto a questão das mulheres indígenas e das mulheres na agroecologia no Ceará. Como podemos situar as mulheres nesses contextos?
Magnólia Said: Para situar as mulheres agricultoras familiares e as mulheres indígenas nesse contexto é preciso voltar um pouco ao passado. Porque houve uma mudança radical dos últimos governos para o governo atual, em especial no governo Bolsonaro, houve uma perda de direitos no campo da agroecologia. Por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento Agrário foi extinto, o Ministério das Mulheres foi extinto, a política nacional de agroecologia também, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que é diretamente ligado à luta das mulheres que fazem agroecologia igualmente foi extinto, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) chegou a quase zero, além de muito reduzido em termos de dificuldade de acesso.
Então, hoje nós temos o começo de uma reconstrução. Por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) está de volta e mais fortalecido porque já no seu nome carrega a agricultura familiar, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) agora vai estar ligada ao MDA, que antes era ligada ao agronegócio.
O Consea, onde o Esplar esteve na presidência no estado do Ceará durante seis anos, voltou! Foi recriado o Ministério das Mulheres, houve um acordo com o governo e os movimentos para retomada do Programa de Construção de Cisternas de Primeira e Segunda Água, água para beber e água para produção, onde o Esplar ao longo de décadas construiu cerca de 10 mil cisternas. Houve um acordo também com esse novo governo para a construção de mais equipamentos de assistência, como a Casa da Mulher Brasileira.
Tudo isso são conquistas, aos poucos, mas pelo menos estamos diante de um novo tempo, eu espero que não voltemos a um passado tão nefasto como tivemos recentemente.
Agora, o que é que falta? Falta uma educação contextualizada com a nossa realidade e com as necessidades do local, por exemplo, que trabalhe ações de enfrentamento à violência contra a mulher desde a infância, isso é fundamental! Não se muda um comportamento, uma construção social de violência, de machismo, de homofobia se não começar pela escola, desde criança. Essa questão da educação contextualizada também serve para as indígenas, mas no movimento indígena também houve uma mudança radical! Primeiro que foi criado o Ministério dos Povos Originários tendo à frente uma indígena, foi criado o Ministério da Igualdade Racial, foi criada a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Cesae), ligada ao Ministério da Saúde, que também tem como secretária executiva uma indígena, inclusive da etnia Tapeba, do estado do Ceará. Tem outros indígenas daqui do estado em lugares que vão, principalmente, favorecer os povos indígenas.
Tudo isso aponta para uma mudança em termos de luta pelo território, acho que vai começar a ter uma chamada de atenção maior para a necessidade de demarcar as terras indígenas. Por exemplo, no estado do Ceará nós só temos uma terra indígena demarcada! Aqui nós temos mais de 33 mil indígenas, o Esplar atua com esses povos, em especial com as mulheres indígenas que têm se articulado em um movimento de pressão, de articulação e de reivindicação junto ao governo federal, para que haja de fato uma mudança que beneficie o território, mas que beneficie também o corpo das mulheres.
Diante da atuação da Rede Nacional Feminista de Saúde, como estamos no cenário de lutas pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres?
Dirlene Marques: A Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, desde a sua constituição em 1993, tem lutado muito para o reconhecimento dos direitos sexuais e direitos reprodutivos como direitos humanos. Isso foi atingido a partir de todo um processo de luta latinoamericana e internacional. Hoje isso já é um dado. É claro que se trata de uma luta permanente, porque o concreto é que o capitalismo necessita e tenta sempre fortalecer o controle do corpo da mulher, é a partir dessa estratégia que controla também toda a forma de reprodução e toda forma de atuação da mulher na sociedade.
Para ter o trabalho gratuito das mulheres dentro de casa é importante ter o corpo controlado e é por isso que o único ser humano que é controlado é a mulher, por que não se controla o homem, mas se controla o corpo da mulher. Então nós temos lutado muito pelo direito da mulher de decidir. É a radicalização da democracia. Só com uma democracia ampla, em que também a mulher possa ter os seus direitos garantidos, é que a sociedade efetivamente vai ser livre, então ela tem que ter controle sobre o seu próprio corpo! Daí a nossa luta permanente pela legalização do aborto. Essa é uma luta que dificilmente o capitalismo permite porque ele precisa controlar quando é preciso ter mais ou menos filhos, aí ele tem que controlar as mulheres e também colocar limites à sua liberdade para que ela possa ficar dentro das quatro paredes de casa guardando a continuidade desse processo de vida familiar.
Além disso, uma parte integrante fundamental é a discussão e a luta pela saúde integral das mulheres. Desde quando estávamos buscando construir o Sistema Único de Saúde nós também lutamos para ter um atendimento integral à saúde da mulher, a mulher como um todo e não a mulher apenas como mãe, porque é muito visto o atendimento à maternidade. Nós queríamos atender a mulher em todas as fases da sua vida e agora, com toda a diversidade presente, as mulheres precisam ainda mais serem entendidas nas diferentes etapas da sua vida. E é claro que tudo isso vem junto com toda uma discussão da luta pela igualdade de gênero. Se nós não tivermos isso dificilmente vão ser reconhecidos os direitos humanos das mulheres.
A luta pela igualdade de gênero faz parte da nossa luta permanente e por isso a gente procura influenciar em diversos níveis. Nós estamos tanto nas ruas, nas organizações de base, quanto estamos procurando intervir nas políticas públicas, fazendo incidência política permanente, junto aos diferentes órgãos que possam interferir, possam legislar e regular os direitos das mulheres, como políticas humanas. A discussão de toda a igualdade de gênero passa por aí.
Uma parte importante da nossa luta, além de estar nas ruas, de estar interferindo nas políticas públicas é a produção de material pedagógico e de conhecimento que possam contribuir para os diferentes movimentos sociais, para a compreensão e para a utilização desse material nas suas diferentes lutas. A Rede Jubileu Sul Brasil teve um papel fundamental na difusão dessas ideias com produção de conteúdo mais aprofundado. Atualmente a gente tem cartilhas, várias publicações online e impressas para poder contribuir nesse processo de divulgação e de agitação nas lutas das mulheres, em especial a luta pela igualdade de gênero.
O Pacs tem acompanhado os impactos dos megaprojetos, como hidrelétricas e portos. O que as mulheres testemunham a respeito dessas iniciativas, a partir das consequências vividas em seus corpos?
Aline Lima: Para falar do impacto de megaprojetos, acho importante ter em vista duas coisas, a partir desse olhar interseccional. A primeira é que os megaprojetos, a depender da sua tipologia, vão ter singularidades nos impactos e nos danos produzidos. Por exemplo, quando a gente fala de siderúrgicas, a gente fala diretamente do aumento da emissão de partículas no ar, e esse tipo de poluição afeta diretamente o aumento do trabalho reprodutivo que fica sob concentração da responsabilidade das mulheres. Ao mesmo tempo, quando falamos de hidrelétricas, de portos, depende se o porto é marítimo ou num rio, estamos falando de alteração na dinâmica das águas. Então, dependendo da tipologia temos uma qualidade, uma variação de impactos.
Quando falamos de megaprojetos, também podemos olhar para impactos que são comuns a todos eles e eu acho que o primeiro que se destaca nessa leitura interseccional é de fato o processo de repatriarcalização que essas diferentes empresas, com seus diferentes empreendimentos, geram quando se instalam e quando operam nos territórios. Em geral, eu acho que podemos usar uma regra bem absoluta em relação a isso, porque ainda não entramos em contato com nenhum caso que apresentou uma diferença em relação a esse tratamento. Então, o que essas empresas fazem é: o seu modo de produção desconsidera as mulheres. Dentro dessas rotinas, dessas operações, a gente tem uma dinâmica em que as empresas contribuem para que as mulheres sejam mais dependentes dos homens e das suas famílias, sejam eles seus maridos, seus irmãos, seus filhos, seus pais. Essas mulheres não são colocadas em posições de destaque dentro dos postos de trabalho, o trabalho que é feito por elas não é considerado.
Podemos perceber essa dinâmica em todas as etapas da produção, seja no período da instalação, quando temos grandes obras acontecendo, sendo que via de regra não contratam a mão de obra feminina, a não ser para ações ligadas à reprodução, então temos aí espaço na cozinha, na limpeza, mas essas mulheres não são pensadas dentro da cadeia produtiva.
No momento de um desastre ou de um crime, como vimos no caso de Brumadinho e Mariana (MG), as mulheres foram desconsideradas do seu trabalho. O trabalho reprodutivo feito pelas mulheres não foi considerado como um trabalho a ser indenizado. As produções que as mulheres tinham em seus quintais, as suas pequenas criações não foram consideradas como trabalho para serem indenizadas, então em toda a sua cadeia, em todo o seu tempo de vida, essas empresas operam desconsiderando as mulheres na sua autonomia, no seu trabalho!
Somado a isso, eu acho importante destacar que sempre que tivermos um contexto de adoecimento, as mulheres vão ser sobrecarregadas e vão estar em maior condição de vulnerabilidade. Sobretudo em uma leitura racializada desse processo, vemos que mulheres não brancas, mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres de povos e comunidades tradicionais, ficam ainda mais vulnerabilizadas economicamente por não serem reconhecidas como sujeitos de direito econômico. São vulnerabilizadas na sua saúde porque, além de serem sujeitadas e impactadas pelo mesmo conjunto que afeta as outras pessoas na comunidade, elas também são responsáveis pelo cuidado, por fazer o grande trabalho de redução de danos daquela atividade produtiva, atividade essa que não é absorvida em geral pelo Estado, porque o sistema público e privado de saúde não dão conta.
Nesse contexto, as mulheres também são penalizadas e vulnerabilizadas no que diz respeito à violência direta porque, em processos de adoecimento, é comum vermos o aumento do consumo de álcool e de outros entorpecentes e o desdobramento disso no aumento de violência doméstica e sexual contra mulheres e crianças.