Sobre a torcida verde-amarela e em meio ao mundial que tem o esporte mais popular do país como foco, muitos questionamentos continuam latentes sobre gastos públicos, violações de direitos e legados impulsionados pela Copa do Mundo da FIFA.

No país do futebol, a Copa, até então, só realça seu caráter excludente. De um lado, um público seleto com alto poder aquisitivo; de outro, comunidades e periferias afastadas daquilo que poderia ser sim uma grande festa popular. Mas a rua resiste. As manifestações acontecem. Estamos em ano eleitoral e o que poderá vir das ruas neste período?

É sobre este cenário que entrevistamos o filósofo e assessor de pastorais e movimentos sociais, Ivo Poletto, que nos deixou várias reflexões. “Entendo a mídia, tanto a que se orienta por critérios de extrema direita, que vê em qualquer reivindicação simples de direitos uma ameaça comunista aos seus interesses, como a que, em nome de uma pretensa esquerda, teme que as mobilizações sociais sejam instrumentalizadas pela direita e coloquem em risco a continuidade do governo atual. Ambas fazem tudo para desvalorizar e criminalizar os movimentos sociais, especialmente os que estão se articulando com novas metodologias”, disse. Confira a entrevista.

Há muitos questionamentos acerca dos gastos com a realização da Copa no país. Enquanto o governo sustenta que pouco investiu no mundial, outras fontes indicam que os gastos públicos são uma realidade. Como o senhor vê essa questão?

ivo_polettoIvo Poletto – É mais do que claro que o financiamento das grandes obras foi e continua sendo feito com recursos públicos, via BNDES, e para obras que tiveram aumentos sucessivos sem maiores avaliações e, muito provavelmente, sem garantias. Como algumas das obras são de responsabilidade de governos estaduais e prefeituras, e outras são de clubes ou empresas, a grande dúvida é essa: o BNDES verá a cor dos bilhões que emprestou?

Muitos dados já dão conta do endividamento das cidades-sede. Como a realização do mundial implicará no aumento da dívida pública brasileira?

Ivo Poletto – O que foi realizado em termos de obras de mobilidade urbana, é de responsabilidade dos municípios e/ou estados. Por isso, os empréstimos federais, via BNDES e outras fontes, deverão ser pagos, e com os juros acordados. É evidente, então, o aumento do endividamento das prefeituras e governos estaduais – e estes, mais ainda, se os estádios forem de sua responsabilidade. Diante do aumento da dívida, como no Brasil existe a Lei de Responsabilidade Fiscal e falta a Lei de Responsabilidade Social, é praticamente certo que haverá aumento de dificuldades para os municípios cumprirem suas obrigações em relação aos direitos sociais, como a saúde, a educação, os transportes, a moradia, o lazer…

O megaevento esportivo é considerado um dos mais caros da história das Copas. Em contrapartida, fala-se muito na oferta de legados que serão deixados para o país. Afinal, é possível saber que legados serão esses?

Ivo Poletto – Há insistências de que um dos legados será o aumento da vinda de turistas para o país, a partir do estímulo que será feito pelos torcedores que vieram para a Copa. Pode ser, mas qual a diferença entre essa expectativa e os títulos de crédito vendidos pelo ex-campeão da mineração Eike Batista? Por outro lado, as obras de mobilidade urbana, que poderiam ser elencados entre os legados permanentes, foram abandonadas em muitas das capitais, e quando realizadas ou em implantação, têm provocado muitos dos deslocamentos de famílias e comunidades inteiras, sem que seus direitos tenham sido garantidos com diálogo e respeito.

A afirmação de que os novos estádios serão um legado positivo só poderá ser confirmada depois da Copa. Durante a Copa, eles andam quase sempre lotados, apesar dos custos dos ingressos, que afastaram os mais apaixonados e praticantes do futebol como esporte: as comunidades populares das periferias. Mas depois dela, a partir de meados de julho, quantos deles terão utilidade para a prática do futebol? Quantos deles estarão abertos e acessíveis para o esporte mais popular do país? Em Manaus, por exemplo, já ouvi comentários de que poderá ser negociado ou alugado para uma empresa que o transformará em Shopping-Center… E em Cuiabá e em outras capitais, o que será realizado neles? Se forem shows com grandes artistas, uma vez mais a certeza de que os preços das entradas negarão qualquer sentido de democratização do esporte e da cultura…

Cartilha, dossiês, documentários têm levantado várias situações de violações aos direitos decorrentes da realização da Copa. Há muitas denúncias sendo feitas e expostas paralelamente à mídia tradicional. Que força tem esses materiais?

Ivo Poletto – Essas informações têm a força da verdade, por mais que um ambiente de comunicação de massa público e privado tenha agido no sentido de negar a realidade. Passada a Copa, desmontado o sistema de repressão quase ditatorial montado para manter a ordem favorável à FIFA e às empresas a ela associadas, a dura realidade da vida retomará seu ritmo, e os afetados pelas obras da Copa terão necessidade e, espero, mais apoios, para exigir que não faltem recursos para garantir seus direitos. Não será fácil, porque prefeituras e governos estaduais e federal alegarão já não poderem endividar-se mais para não serem enquadrados na Lei de Responsabilidade Fiscal, mas é provável que a metade ou mais da população que se declarou contrária à forma em que foi organizada a Copa no país se manifeste em favor dos afetados.

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Por outro lado, estes materiais que documentam a verdade dos fatos serão base para exigir que governantes e empresários da Copa demonstrem pública e judicialmente que fizeram bom uso dos recursos públicos, ou para que respondam diante da Justiça pelos seus crimes, tendo presente que suas negociatas terão tudo a ver com a queda da qualidade das políticas sociais e da qualidade de vida, o que, em muitos casos, implica em aumento de mortes por fome e abandono.

Como o senhor avalia a importância dos movimentos sociais neste contexto de Copa e Eleições 2014, haja vista que existe uma orquestração da mídia em desqualificar as manifestações?

Ivo Poletto – Entendo a mídia, tanto a que se orienta por critérios de extrema direita, que vê em qualquer reivindicação simples de direitos uma ameaça comunista aos seus interesses fundados na concepção sagrada da propriedade privada sem limites e na livre iniciativa dos que têm poder de capital, como a que, em nome de uma pretensa esquerda, teme que as mobilizações sociais sejam instrumentalizadas pela direita e coloquem em risco a continuidade do governo atual. Ambas fazem tudo para desvalorizar e criminalizar os movimentos sociais, especialmente os que estão se articulando com novas metodologias.

Mas isso não evitará a contribuição destes movimentos para que a história se mantenha aberta em relação ao futuro da humanidade. Eles estão gerando novas manifestações contrárias à imposição do mercado capitalista como verdade absoluta, e são afirmação concreta de que é possível e absolutamente necessário reconstruir a sociedade humana na perspectiva da cooperação, da justiça, da distribuição da riqueza coletivamente construída e dos bens naturais, da reconstrução das cidades em favor do direito coletivo das pessoas ao que ela oferece para viver com qualidade…

Movimentos organizados voltaram às ruas pedindo por educação, saúde, transporte público de qualidades, entre outros. Há como vislumbrar um cenário pós-Copa no que diz respeito à atuação dos movimentos sociais?

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Ivo Poletto – Já respondi, em parte, esta questão nas reflexões anteriores. Mas quero destacar que seria muito bom se esses denominados “novos” movimentos sociais, “de rua”, com características de multidão mobilizada, voltassem às ruas no período pré-eleitoral, recolocando suas propostas em favor dos direitos sociais de todas as pessoas. Com isso, as e os eleitos para cargos públicos legislativos e executivos – e que pena não podermos ainda eleger pessoas para cargos do judiciário – terão as mobilizações de rua como um novo ator político, e um ator que desestabiliza as formas ortodoxas e hierárquicas de organizar o poder político em nossas sociedades precariamente democráticas, já que pressionará com as mobilizações efetivamente realizadas e até mesmo apenas com o anúncio de novas e mais massivas mobilizações… Os governantes, acostumados a tomar decisões com os “dirigentes” de organizações formalizadas, se sentirão provocados por massas humanas que, aos poucos, se descobrem constituídas por cidadãs e cidadãos que desejam agir sem chefias, sem submissões, exigindo o que julgam melhor e mais justo para todas as pessoas…

 Por Ana Rogéria, Rede Jubileu Sul Brasil.

 

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