Economista e coordenadora da Rede Jubileu Sul Brasil, Sandra Quintela fala sobre dívidas sociais, dívida pública e desigualdades estruturais

Vista da zona portuária no Rio de Janeiro. Foto: Adriana Medeiros.

Por Paulo Victor Melo | Especial para JSB*

“Dos 40 novos bilionários brasileiros, muitos são do setor de saúde. Ou seja, ganharam dinheiro com a morte e a doença”. O alerta-denúncia da economista Sandra Quintela é um exemplo da essência do modo de produção capitalista que, como ela própria diz, “se reproduz sobre a destruição”.

Sandra Quintela. Foto: Arquivo Pessoal

Uma das coordenadoras da Rede Jubileu Sul Brasil, Quintela entende que as desigualdades socioeconômicas escancaradas na pandemia são, em verdade, o aprofundamento das marcas que nos caracterizam desde sempre, “que se projetam no presente e no futuro” e que “são as mesmas que se acumulam há mais de 500 anos de exploração, colonialismo, escravismo”.

Ao defender a anulação do pagamento da dívida pública financeira como um primeiro passo para a reversão das desigualdades, Quintela enfatiza que esses recursos “poderiam ir para a construção de políticas urbanas populares” que dessem conta, por exemplo, de resolver o déficit habitacional do país.

“Apenas em 2020 foram gastos só com juros da dívida pública financeira cerca de R$350 bilhões.  Usando um parâmetro de R$100 mil para a construção de uma casa, daria para construir 3,5 milhões de casa. Em apenas um ano”, exemplifica a economista.

Leia a seguir a íntegra da entrevista, realizada pelo jornalista Paulo Victor Melo.

Sandra, temos mais de 14,7 milhões de famílias brasileiras com uma renda mensal média de até R$ 89 reais por pessoa. Neste mesmo país, apenas em 2021, mais de 40 pessoas se tornaram bilionárias. O quão perversas são as nossas desigualdades socioeconômicas?

Sandra Quintela – Essas desigualdades que se projetam no presente e no futuro são as mesmas que se acumulam há mais de 500 anos de exploração, colonialismo, escravismo.  Em nenhum momento de nossa história rompemos com esse passado,  ele está aqui! 

As 14,7 milhões de famílias com essa renda mensal de R$ 89 são frutos desse processo que agudiza principalmente nesses tempos da pandemia da Covid-19, que apresenta de forma evidente quem ganha com esse sistema desigual.  Dos 40 novos bilionários brasileiros muitos são do setor de saúde. Ou seja, ganharam dinheiro com a morte e a doença. E é assim que funciona o sistema capitalista:  se reproduz sobre a destruição.  E no Brasil, que nasceu de maneira muito violenta nesse sistema-mundo, esse quadro é bem ilustrativo dessas perversidades. 

Como estes números, que são do Brasil de 2021, se relacionam com questões estruturais do nosso país, presentes desde a colonização, e com as dívidas sociais históricas, especialmente contra mulheres, negros/as, indígenas e outros Povos e Comunidades Tradicionais?

Sandra Quintela – Exatamente.  Não se pode não conectar essas desigualdades com um passivo de dividas que se acumulam historicamente. Em 2022, o Brasil fará 200 anos da famosa independência de sete de setembro às margens do rio Ipiranga.  Na contramão de muitas experiências latino-americanas – em que movimentos amplos de independência a conquistaram – ou o caso do Haiti, onde os próprios povos escravizados gritaram sua independência em 1804, no Brasil esse processo foi liderado pelo Príncipe regente, que era escravagista e o próprio colonizador.  Então, são séculos de acúmulos de dividas.

Uma das expressões das desigualdades no Brasil é a negação do direito à moradia digna. Atualmente, cerca de seis milhões de famílias brasileiras não têm casa. Além disso, 34 milhões de moradias não têm acesso a saneamento básico, o que representa 49,2% das casas de todo o país. Como a questão da dívida pública e das dívidas sociais reflete neste cenário?

Sandra Quintela – Cada centavo que vai para o pagamento de divida financeira é um centavo que é tirado para o pagamento das dividas sociais.  Os mesmos recursos, muito que é oriundo do pagamento de impostos, que no Brasil só quem paga praticamente é a classe trabalhadora, poderiam ir para a construção de politicas urbanas populares que dessem conta desse déficit.  

Apenas em 2020 foram gastos só com juros da divida publica financeira cerca de R$350 bilhões.  Usando um parâmetro de R$100 mil para a construção de uma casa, daria para construir 3,5 milhões de casa. Em apenas um ano. Então a conta é essa…

De que forma a anulação do pagamento dos juros da dívida pública poderia ajudar na reversão desta realidade? E quais políticas, em termos econômicos, são fundamentais para a garantia do direito à moradia para todas e todos?

O primeiro passo importante para um recomeço é a anulação da dívida pública, que foi contraída praticamente a base de desvio de dinheiro público para a esfera privada, contração de dívida para pagar dívida, juros sobre juros. E nesse recomeço, é fundamental não reproduzir os modelos econômicos que geraram esse sobre endividamento.  A dívida amarra as formas de viver locais a uma agenda do capitalismo global.  Desde sempre, desde nossa independência formal e, antes, desde a famosa “descoberta”. É por isso que dizemos “somos os povos, os credores” e “não devemos, não pagamos”.

*A entrevista foi publicada originalmente na Revista Sinergia Popular, acesso todo conteúdo no link abaixo:

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