Indígena e testemunha dos últimos momentos de vida do indigenista e do jornalista britânico assassinados no Vale do Javari é fundamental para o processo, mas alega falta de informações, de instruções e de segurança. “O que vai acontecer depois desse júri?”, pergunta sobre o julgamento dos réus. Defesa alega “nulidade processual” do caso. Na imagem acima, a comunidade São Rafael, última parada de Bruno e Dom antes de serem emboscados

Por Cícero Pedrosa Neto – Amazônia Real

Belém (PA) – “A gente aqui no Javari não sabe de nada do que está acontecendo. O que eu sei é que podem me matar a qualquer momento. Eu me sinto abandonado”, conta, desesperada, uma das principais testemunhas dos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Philips, ocorridos em junho do ano passado, na cidade de Atalaia do Norte, no Amazonas, fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia. 

Contatada pela Amazônia Real e falando sob a condição de anonimato, a fonte, que é indígena e viveu de perto os dias que antecederam a emboscada que vitimou a dupla no rio Itacoaí, nas proximidades da Terra Indígena Vale do Javari, afirma não ter conhecimento sobre o andamento do processo judicial. Também não tem informações sobre as garantias de segurança às testemunhas. Alega ainda que não recebeu orientações da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) ou dos advogados contratados pelas famílias das vítimas para atuarem na assistência de acusação junto ao Ministério Público Federal (MPF). 

“O que vai acontecer depois desse júri? Eu vou continuar convivendo com esse pessoal [familiares dos réus]? Como vai ser minha vida aqui? Quem me garante que eles não vão mandar me acertar também? Eu também estava na mira deles”, questiona o indígena, dizendo temer ficar frente a frente, em um provável júri popular, com os três réus: Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado”; Jefferson da Silva, o “Pelado da Dinha” e Oseney da Costa Oliveira, o “Dos Santos”. 

Os réus foram ouvidos, de forma virtual, no dia 8 de maio – último dia das audiências de instrução do caso. Os três são acusados de duplo-homicídio qualificado, ocultação de cadáver e associação criminosa para pesca ilegal dentro da Terra Indígena (TI) Vale do Javari.

A testemunha em questão também foi ouvida no decorrer das audiências, que começaram no dia 20 de março e foram marcadas por problemas técnicos, adiamentos e falhas nos presídios federais onde estão os presos, nos estados do Paraná e Mato Grosso do Sul. No total, 12 pessoas, entre testemunhas e acusados, foram ouvidas nas audiências de instrução do caso. O prazo para as alegações finais ainda não foi aberto pelo juiz Fabiano Verli, responsável pelo caso. Somente após isso é que o juiz decidirá se os réus irão a júri popular.

Na noite desta terça-feira (16), o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) decidiu, por unanimidade, anular o processo do julgamento dos acusados pelos crimes. Segundo o jornal Correio Braziliense, a decisão atendeu um pedido de habeas corpus (HC) ingressado pelo advogado Lucas Sá. Ele argumentou ser necessário ouvir as testemunhas dos pescadores porque o juiz do caso, Fabiano Verli, as ignorou durante os depoimentos.

“A defesa está caminhando às cegas e com mordaça nesse processo. A gente afirma isso pelo seguinte: essa testemunha citada, que era prima do Amarildo e que estava esperando ele na porta do cais e viu seu tio caminhando com as pernas machucadas, não foi ouvida. O Ministério Público anexou só agora, após os interrogatórios, o laudo pericial que prova que o Amarildo foi torturado. O MP tinha esse laudo há 11 meses e a tortura é denunciada desde o início, essa testemunha falaria sobre isso”, afirmou Lucas Sá, advogado que esteve presente na audiência.

Risco e medo

Atalaia do Norte, no Amazonas. Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real

A fonte ouvida pela reportagem foi uma das pessoas que presenciou as ameaças de “Pelado” nos dois dias que antecederam a emboscada e os assassinatos. A primeira vez, na tarde do dia 3 de junho de 2022 (sexta-feira), foi quando Bruno avistou o pescador ilegal e o alertou que a pesca ali não era permitida. A testemunha estava entre os indígenas da Equipe de Vigilância da União dos Povos do Vale do Javari (EVU),  ameaçados por “Pelado” e “Pelado da Dinha” quando acompanhavam Bruno até uma das bases da Funai, na TI Vale do Javari. 

Na ocasião, Bruno ia justamente denunciar que ambos estavam pescando nos limites do território indígena, solicitando a presença da Força Nacional no local. No dia 4 de junho, o indigenista e o jornalista foram surpreendidos pelos pescadores, que levantaram armas em direção ao grupo. No dia seguinte (5 de junho), logo após o sol raiar, Bruno e Dom partiram tendo como destino o porto de Atalaia do Norte, de onde seguiriam até a sede da Polícia Federal, na cidade de Tabatinga. 

Antes, porém, Bruno aportou na comunidade ribeirinha de São Rafael, onde deveria encontrar “Churrasco” (Manoel Vitor Sabino da Costa), tio de “Pelado”. Mas ele havia saído cedo para pescar, como explicou sua esposa, Alzenira Gomes, à Amazônia Real, que esteve na comunidade antes da confirmação das mortes das vítimas. Antes de sair, Bruno trocou algumas palavras com Jânio Freitas de Souza – hoje preso por associação criminosa para a pesca ilegal. “Churrasco” chegou a ser preso e continua sob investigação. Para ler em detalhes o que aconteceu naquele dia, clique aqui.

“Se eu estivesse com eles naquela balieira [embarcação], eu também teria morrido. Eu lembro disso todo santo dia e nunca mais soube o que é ter paz. A gente encontra os familiares deles na cidade e eles sabem que eu sou uma das principais testemunhas”, pontua. A fonte também revela que, assim como ele, outra pessoa vive sob clima de constante ameaça e medo por ter fornecido elementos à polícia que levaram à prisão de “Pelado” e “Pelado da Dinha”. 

“Nunca apareceu ninguém para me dar uma satisfação, para saber como a gente está vivendo aqui. Ninguém sabe o que a gente está passando. A minha vida nunca mais vai ser a mesma, eu vivo com medo, me escondendo, só ando depressa na rua, não tenho trabalho e nem fonte de renda. E quem protege nós?”, reclama.

O indígena conta que no dia da audiência de instrução, ele e outras pessoas não sabiam exatamente o que aconteceria, o que poderiam falar e a quem deveriam responder na condição de testemunhas de acusação. A fonte disse ainda que chegou a ser interpelada e tratada “com grosseria por um barbudo”, que mais tarde saberia se tratar do advogado criminalista Américo Leal, que compõe a defesa dos réus. “Eu não sabia nem quem era aquele homem”, acrescenta. 

A testemunha também se queixou de que a Polícia Federal só a acompanhou até a audiência de instrução após ela própria acionar o Programa de Proteção a Testemunhas no qual está inserida. “Por eles eu teria ido sozinho daqui. Talvez eu nem tivesse chegado lá”, diz, referindo-se aos advogados que atuam no caso em favor das famílias das vítimas. Sobre o programa de proteção, lamenta a falta de eficácia. “Eles dizem que não têm como estar comigo todo dia me protegendo”.

Os potenciais riscos às testemunhas têm levantado discussões sobre o desaforamento do processo [mudança de comarca]. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que acompanha os desdobramentos do caso pelo “Projeto Tim Lopes”, que se dedica a apurar assassinatos de jornalistas no exercício da profissão, analisa a situação como preocupante. “O ideal seria a mudança de foro”, disse em nota a Abraji. “Temos insistido na continuação das investigações sobre esses crimes terríveis”, pontua também a nota.

Artigo 19, organização internacional de defesa à liberdade de expressão, também manifestou preocupação com a situação de insegurança que permanece no Vale do Javari – tema que tem sido amplamente reportado pela Amazônia Real desde a ocorrência dos crimes bárbaros cometidos contra Bruno e Dom na região. 

“A insuficiência das ações de investigação e a continuidade do contexto de ameaças contra indígenas e defensores de direitos humanos no Vale do Javari, particularmente contra os integrantes da Univaja que se envolveram nas buscas por Bruno e Dom, são sintomáticas da ausência de políticas concretas que busquem evitar a continuidade das mortes de pessoas que defendem territórios indígenas”, disse em nota a Artigo 19.  

A organização, acompanha de perto os desdobramentos do caso e cobra as autoridades brasileiras, também criticou as investigações dos assassinatos, que “se concentraram nos indivíduos mais diretamente envolvidos na execução do crime e não buscaram esclarecer todos os possíveis mandantes e interessados nos assassinatos”. 

Outro ponto destacado pela Artigo 19 é o tratamento dado a Dom Phillips, assassinado no exercício de sua profissão como jornalista. “A morte de Dom Philips tem sido sistematicamente tratada como mero ‘efeito colateral’ da morte de Bruno Araújo, desconsiderando que o assassinato de um jornalista no exercício da sua profissão é um crime que afeta o exercício da liberdade de expressão e que gera um efeito amedrontador no sentido de dissuadir o trabalho de outros comunicadores”

Amazônia Real contatou o advogado que atua na assistência de acusação do caso sobre a falta de orientação e assistência às testemunhas, mas não houve resposta. Sobre o possível desaforamento do processo, logo que a possibilidade foi suscitada, o advogado João Calmon afirmou: “Não vemos motivos para pedir o desaforamento do processo”. Sobre os riscos às testemunhas, ele disse: “Também não vejo risco e acredito que o MPF e as forças policiais tenham mais meios de analisar esta questão especificamente”.

Já Américo Leal, advogado de defesa dos réus, afirmou à reportagem que o processo deve ser transferido para outra comarca. “Tabatinga não tem condições para suportar um julgamento assim.  Acredito que o MP pedirá o desaforamento”. 

A reportagem também procurou o assessor jurídico da  Univaja, o advogado indígena Eliésio Marubo, para saber quais assistências estão sendo dadas aos indígenas e aos seus funcionários arrolados como testemunhas de acusação. Eliésio respondeu que a Univaja não faz parte do processo e, portanto, não acompanha o desenrolar dos procedimentos. 

Testemunha desmente “Pelado”

Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado”, durante oitiva no dia 8 de maio . Foto: Reprodução/TRF1

Até ser contatada pela reportagem, a testemunha não sabia da tese apresentada por Amarildo da Costa Oliveira e por Jefferson da Silva Lima, de que teriam agido em “legítima defesa”, conforme contaram em seus depoimentos no dia 8 deste mês. Ao saber dos argumentos dos réus, de que Bruno teria iniciado o conflito na manhã do dia 5 de junho, a testemunha não escondeu sua revolta: “É mentira! Já fazia meses que eles estavam planejando matar o Bruno, eu e o […] pelo trabalho de fiscalização que a gente vinha fazendo aqui”, afirma, mencionando o nome de outro indígena ameaçado. Os nomes não serão revelados nesta reportagem por questões de segurança.

Ela afirma que o crime foi premeditado e que os assassinos de Bruno e Dom estavam “atocaiados” [de tocaia] esperando que eles passassem em frente ao local onde as vítimas sofreram a emboscada, após os desentendimentos ocorridos nos dias anteriores. Bruno e Dom foram mortos próximos à comunidade Cachoeira, às margens do rio Itacoaí – única rota possível até o acesso aos canais que levam à cidade de Atalaia do Norte.

As versões contadas por “Pelado” e “Pelado da Dinha”, que confessaram os crimes, apontam que Bruno teria, inicialmente, efetuado disparos em direção aos pescadores e que estes revidaram para se proteger. Ambos alegaram a inocência de Oseney da Costa Oliveira, o “Dos Santos”, irmão de “Pelado”, que teria encontrado os assassinos à deriva no rio Itacoaí. Ao tomar conhecimento do que tinha ocorrido, Oseney teria voltado para a comunidade São Gabriel, onde vive sua família, e pedido um calmante à sua esposa. A tese, no entanto, difere dos depoimentos dados por eles à Polícia Federal, quando foram detidos, bem como destoam das provas apresentadas pelo MPF em denúncia à Justiça Federal, apresentada no dia 22 de julho.

“A versão apresentada pelos réus durante os interrogatórios não é compatível com as provas técnicas da perícia […] destacamos que há investigações ainda em curso tramitando sob sigilo para identificar possíveis mandantes do crime”, afirmou o MPF um dia após o fim das oitivas.

No início de 2023, a Polícia Federal apontou Ruben da Silva Villar, mais conhecido como “Colômbia”, como mandante do crime. “Colômbia”, que está preso após descumprir as medidas cautelares da Justiça para responder em liberdade, não faz parte do processo que demandou as audiências de instrução que começaram no dia 20 de março. A confirmação de sua participação nos crimes foi dada pelo delegado da PF, Eduardo Fontes, em coletiva de imprensa realizada no dia 23 de janeiro deste ano, em Manaus. 

A tese defendida por Amarildo e Jefferson foi rechaçada também pelo Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI). “Os interrogatórios foram marcados pela promoção, por parte da defesa e dos réus, de uma fantasiosa versão dos fatos que não encontra respaldo em absolutamente nenhuma das provas produzidas até o momento”, disse o observatório em nota. 

Já a Abraji, em nota enviada à reportagem, afirmou que “a versão de legítima defesa dos réus é indecorosa”. Esperamos que os três acusados sejam levados a júri popular”.

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