Há 20 anos, milhares de pessoas participaram do plebiscito popular que entrou para a história do país como uma das maiores mobilizações populares a reunir forças sociais e políticas no Brasil depois das “Diretas Já!”: o Plebiscito Popular da Dívida Externa, realizado entre os dias 2 e 7 de setembro do ano 2000, com mais de 50 mil urnas em cerca de 3 mil municípios e o apoio de 100 mil voluntários. Foram 5 milhões 666 mil e 857 votantes – 5,38% dos eleitores oficiais da época – dos quais mais de 90% dizendo “NÃO” ao pagamento das dívidas.

Em 2000, o pagamento de dívidas para satisfazer credores internacionais comprometia 65% do Orçamento do país, cerca de 500 bilhões de dólares somando a dívida interna e externa. As reservas do Brasil eram inferiores a 35 bilhões de dólares, levando à bola de neve de mais endividamento para pagar a dívida e, ao mesmo tempo, os serviços públicos eram destroçados com corte de gastos e o patrimônio do povo entregue às privatizações no governo Fernando Henrique Cardoso. 

Além da votação de Norte ao Sul do Brasil, a força do plebiscito ecoou além do país, ganhando apoio e visibilidade internacional com o engajamento de nomes como o Papa João Paulo II, o cantor Bono Vox e o fotógrafo Sebastião Salgado, entre outros. 

Na campanha Jubileu 2000, a mensagem central do Papa João Paulo II foi a defesa do perdão de todas as dívidas, a crítica à multiplicação de desigualdades que acompanhava a globalização e ressaltando que era preciso tirar “o peso da dívida para restabelecer um relacionamento de maior justiça entre as nações, que permita aos países pobres um justo acesso a todos as riquezas materiais e espirituais que pertencem à família das nações”.

Vocalista da banda irlandesa U2, Bono Vox enviou mensagem de apoio ao plebiscito, dizendo que sabia do sofrimento vivido no país com a dívida externa desde a década de 80:

“É certo que o povo está lutando contra a perda desses recursos valiosos para os países ricos do Norte. Eu sei que a Campanha Jubileu 2000 no Brasil tem liderado um movimento criativo, desde o Tribunal da Dívida Externa, em 1999, até sua iniciativa atual para um Plebiscito em setembro. Tomara que cada brasileiro e brasileira vote e mostre seu apoio por um futuro melhor”, afirmou o cantor na mensagem à coordenação do plebiscito.

Meses antes, em junho de 2000, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) recebia e exposição “Êxodos”, ensaio-reportagem do fotógrafo Sebastião Salgado mostrando o mundo polarizado da “humanidade em trânsito”, dos migrantes obrigados a abandonar a terra natal para buscar outras alternativas para sobreviver.

As imagens em preto e branco impactavam ainda mais ao tratar dos subtemas da exposição – a luta pela terra, África, refugiados e migrados, megacidades e megalópoles, e retratos de crianças -, onde a ausência da cor reforça as consequências das dívidas com a pobreza, a guerra, a fome e outras inúmeras violências.

A realização do plebiscito também coincidiu com o ano de eleições municipais e pautou debates de candidatos e candidatas à prefeitura de todas as regiões do país.

Em Manaus (AM), a Pastoral do Menor promoveu seminário no anfiteatro do colégio Dom Bosco para que os candidatos do campo progressista debatessem a dívida externa com os estudantes. Na capital amazonense e em mais 24 municípios, quase 63 mil pessoas votaram no plebiscito que chegou a rincões como Maués, Parintins e Coari, com 90% escolhendo “não” à manutenção dos acordos para pagamento da dívida externa.

Então candidato à capital fluminense, Leonel Brizola votou em 3 de setembro numa urna em Botafogo, e em entrevista à BBC de Londres afirmou que o ministro da Fazenda de FHC, Pedro Malan devia “passar uma temporada numa favela ou acampando entre os sem-terra para verificar a realidade brasileira’.

Crítico do plebiscito, Malan dizia que se a consulta “tiver algum efeito, não será um efeito positivo” e que propor calote era contrário ao “interesse de milhões de brasileiros”. Ele errou, como demonstraram os resultados das três perguntas do Plebiscito da Dívida:

Sobre o FMI: o governo brasileiro deve manter o atual acordo com o Fundo Monetário Internacional FMI?
Não: 93,81% – Sim: 4,56% – Brancos/nulos: 1.63%

Sobre a Dívida Externa: o Brasil deve continuar pagando a dívida externa, sem realizar uma Auditoria Pública desta dívida, como previa a Constituição de 1988?
Não: 98,4% – Sim: 0,23% – Brancos/nulos: 1,37%

Sobre a Dívida Interna: os governos federal, estaduais e municipais devem continuar usando grande parte do orçamento público para pagar a dívida interna aos especuladores?
Não: 95,86% – Sim: 2,47% – Brancos/nulos: 1,67%

Confira no final do texto matérias da época destacando o Plebiscito da Dívida

Construção coletiva


A Campanha Jubileu 2000 Por Um Milênio Sem Dívidas foi lançada pelo Setor Social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no Estado de São Paulo com sessão solene na Assembleia Legislativa.  

 A iniciativa do Plebiscito Popular da Dívida Externa foi anunciada formalmente um ano antes de sua realização, em 7 de setembro de 1999, por Dom Luiz Demétrio Valentini, bispo emérito de Jales, durante a 5ª edição do Grito dos Excluídos, num palanque montado em frente à Basílica em Aparecida, no Vale do Paraíba paulista.

Dom Demétrio votou no plebiscito popular sobre a Dívida um ano depois neste mesmo palanque, em Aparecida do Norte. O Grito faz eco a esta denuncia com o lema “Progresso e Vida, Pátria sem Dívidas”.

Contudo, as discussões em torno da problemática da dívida ocorriam e foram ganhando força uma década antes, em 1991, com a realização 1ª Semana Social Brasileira com o tema “Mundo do Trabalho e Novas Tecnologias”. Mais dois eventos foram realizados até 1998, ano que marca a realização do Simpósio Nacional sobre a Dívida Externa

Em abril de 1999, ocorreu o Tribunal da Dívida Externa, no Rio de Janeiro, com inspiração na discussão do Vaticano lançada pelo Papa João Paulo II pelo perdão da dívida de dezenas de países pobres altamente endividados. Os mais de 1.200 participantes de diversos movimento sociais julgaram a dívida injusta e imoral, e constataram que era preciso promover um plebiscito nacional para que toda a população pudesse se manifestar sobre a questão das dívidas externa e interna.

A previsão inicial era realizar o pleito em abril de 2000, mas a votação ocorreu em setembro conectada com as mobilizações em torno do Grito dos Excluídos e marcando as mobilizações em torno da Semana da Pátria. As 50 mil urnas foram espalhadas em igrejas, escolas, sindicatos, fábricas, praças públicas, associações comunitárias, entre outros espaços.

O preço da dívida

Em setembro de 2000, o pagamento de dívidas credores internacionais chegou a 65% do Orçamento do Brasil. Um ano antes, o governo brasileiro pagou R$ 90 bilhões aos credores estrangeiros (US$ 51 bi de amortizações e outros US$ 15 bi em juros), enquanto os gastos federais com a saúde pública foram de R$ 19 bilhões.

Até agosto de 2000, o desembolso foi de R$ 78 bilhões, montante que permitiria uma renda mínima de quase R$ 500 aos 167 milhões de brasileiros da população à época.

De 1991 a 1998, o governo federal privatizou 63 empresas, entregando o patrimônio da população para arrecadar US$ 85 bilhões. Entre 1994 e 98, juros e amortizações chegaram a US$ 126 bilhões que, convertidos pelo câmbio de duas décadas atrás, representavam R$ 230 bilhões.

Se esses valores ficassem no país, permitiriam:
– pagar uma cota de R$ 1.474 a cada brasileiro, ou mais de R$ 44 mil a cada família com renda de até um salário;
– construir 15 milhões de casas populares de 35 m², ou 948 mil postos de saúde, ou ainda assentar mais de 5,8 milhões agricultores familiares;
– criar 10,5 milhões de empregos diretos na indústria têxtil ou 15,7 milhões de empregos diretos na construção civil;
– duplicar os investimentos na educação pública e construir 6 milhões de escolas.

Confira algumas matérias da época destacando a realização do plebiscito e os debates em torno do pagamento dívida no Brasil:

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