Parem o Acordo de Livre Comércio UE-Mercosul, este é o grito que ecoa e se fortalece nas articulações internacionais e nacionais, desde organizações sociais e populares do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.
Por Jucelene Rocha | JSB
O debate com transmissão ao vivo, na terça-feira (22), discutiu as implicações do Acordo União Europeia- Mercosul para os países do Sul global. A iniciativa denuncia a falta de transparência flagrante no processo de elaboração e assinatura do Acordo, ao mesmo tempo em que fortalece a mobilização popular articulada entre os países, para impedir que seja ratificado, em outras palavras, que tenha efeito legal vinculativo para as entidades signatárias.
A UE (sigla para União Europeia) é composta por 28 países membros. Representa o maior bloco econômico do mundo e inclui potências como a Alemanha e a França. O Mercosul (sigla para Mercado Comum do Sul) foi criado em 1991 e atualmente tem como membros efetivos Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.
O momento de debate na noite de terça-feira (22) teve como convidada a economista e educadora popular Sandra Quintela, que também integra a coordenação da Rede Jubileu Sul Brasil e como convidados Ricardo Canese, engenheiro industrial, professor da Facultad de Ingeniería de la Universidad Nacional de Asunción – Fiuna, ex-parlamentar do Mercosul, especialista em energia e membro da Campaña Itaipú 2023 Causa Nacional; Oscar Rivas, arquiteto, ex-ministro do meio ambiente do Paraguai, especialista em desenvolvimento do território e sustentabilidade, membro da Sobrevivencia Amigos de la Tierra; Giuliana Alderete, licenciada em gestão ambiental urbana, especialista em comunidades sustentáveis, resilientes e inclusivas, membro da Amigos de la Tierra Argentina. A mediação foi realizada por Mercedes Canese, membro da Campaña Itaipu 2023 Causa Nacional e Francisco Vladimir, articulador da Rede Jubileu Sul/Américas para o Cone Sul e membro da coordenação da Rede Jubileu Sul Brasil.
Na abertura do debate, Sandra Quintela chamou atenção para o processo histórico que sempre marcou a relação dos países do Norte com os países do Sul. “As independências na América do Sul estiveram muito atreladas à continuidade de um processo colonial, seja pelo modelo de desenvolvimento voltado para a exportação de produtos primários, seja pela negociação das dívidas externas com bancos ingleses. Fazendo um recorte mais recente, o Acordo UE-Mercosul vem sendo ensaiado desde a Comissão Econômica Europeia – 1984, ou seja, com outro nome, com outra perspectiva há 40 anos, por meio do ‘Diálogo de San José’, já haviam tentativas de acordos comerciais com a região, quando ainda nem existia o Mercosul. Em 1992, logo após a sua criação, veio a assinatura de um primeiro acordo”, destacou a economista.
“Um acordo de livre comércio nunca é sobre liberdade, nem sobre comércio. Na prática esse tipo de acordo visa novos processos de colonização, com perdas significativas do ponto de vista da soberania nacional, dos direitos humanos e da perspectiva dos direitos da natureza. Temos os exemplos do Chile e do México que nos permitem avaliar as consequências”, reflete Sandra.
Disputas estratégicas e geopolíticas em questão
A América Latina e o Caribe são responsáveis por mais de 50% da biodiversidade do planeta e por mais de um quarto das florestas. “A imensa gama de recursos naturais da região constitui um laboratório singular para produtos e processos que poderiam incubar soluções medicinais para as gerações presentes e futuras. Crescem mercados para remédios da biodiversidade, nos quais a região poderia se posicionar como líder, se houver mais investimento na pesquisa e no desenvolvimento de tecnologias”, afirma a publicação “América latina e o Caribe: uma superpotência de biodiversidade”. De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) a região é também uma das principais produtoras e exportadoras de alimentos do mundo — cerca de 14% de toda a produção mundial e 45% do comércio agroalimentar internacional.
Na geopolítica das energias renováveis, a região também se destaca como uma das principais produtoras de energia renovável no mundo. De acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a capacidade instalada de usinas solares controladas por empresas chinesas na América Latina e Caribe quadruplicou no intervalo de três anos, entre 2019 e 2022, “subindo de 363 Megawatts (MW) para cerca de 1,4 Gigawatt (GW). Apesar de terem crescido menos, as usinas eólicas controladas por empresas do país asiático duplicaram a capacidade de geração de energia no mesmo período, passando de 1,6 GW para 3,2 GWs. Os países que receberam investimentos chineses em projetos de energia eólica e solar são: Brasil, Chile, México, Colômbia e Argentina.
Aprofundamento das dívidas
Para Ricardo Canese não é possível pensar um Acordo que não considere a superação das desigualdades entre o Norte e o Sul global, que historicamente marcam o aprofundamento das dívidas sociais.
“O Acordo não parte do princípio de que temos uma desigualdade econômica, financeira, tecnológica, científica, industrial e ambiental enorme! Essa é uma primeira questão fundamental que deveria ser levada em consideração. Há outras questões fundamentais também como o colonialismo, a dependência que sempre nos foi imposta e precisa ser superada. Trata-se de um acordo que não contempla nada no que diz respeito às dívidas histórica colonial, econômica, social e socioambiental, garante apenas que a Europa mantenha um lugar de dominação e nós o lugar de dominados. É preciso que haja uma compensação de todas as dívidas já acumuladas, é preciso que haja equidade de direitos entre eles e nós”, destaca Canese.
“Sabemos que a relação entre a União Europeia e os países integrantes da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) é caracterizada por desigualdades e neocolonialismo. Estamos aqui hoje porque apostamos em um direito internacional com perspectiva popular, considerando que os direitos humanos devem ter prioridade jurídica diante de outras normas como as de livre comércio ou investimentos. Sabemos que os acordos de livre comércio têm beneficiado as grandes corporações transnacionais, em prejuízo da nossa soberania nacional”, afirma Giuliana Alderete.
A militante especialista em comunidades sustentáveis, resilientes e inclusivas também denunciou a situação de pobreza e miséria em que vive grande parte da população. “Particularmente na Argentina temos várias situações de violações de direitos humanos vinculadas aos países do Norte. Para citar uma com relação à água, na Argentina temos mais de seis mil bairros populares, similares às favelas do Brasil, onde 91% das pessoas não tem acesso à água potável, no entanto, as empresas transnacionais utilizam dois milhões de litros de água doce para cada tonelada de lítio que extraem”, denuncia Giuliana.
Argentina, Bolívia e Chile constituem o denominado triângulo do lítio, juntas possuem mais de 85% das reservas descobertas no mundo. Em relação a água doce, a Argentina é um dos quatro países, junto com Brasil, Paraguai e Uruguai, sobre o qual se estende o aquífero Guarani, a terceira maior reserva de água doce conhecido no mundo.
Questão ambiental: graves imposições e restrições
Para o ex-ministro do meio ambiente do Paraguai, Oscar Rivas, o Acordo é a face revelada do neocolonialismo e das violências a ele acopladas. “O acordo claramente vai elevar as ameaças que sofrem organizações e movimentos sociais, defensores e defensoras dos direitos humanos e da natureza na região. Assim como o enfraquecimento da fantástica agenda potencial de uma integração regional. Basicamente, nossa agricultura está em risco, aquela que nos oferece soberania e que oferece soberania para o desenvolvimento dos povos, nossos bens comuns e nossa alimentação estão em risco iminente. Temos mostra disso, recentemente no Brasil tivemos o assassinato de Mãe Bernadete, líder quilombola na Bahia, esse tipo de situação acontece permanentemente”, alerta o especialista em desenvolvimento do território e sustentabilidade.
Rivas também denuncia a forma das negociações para o Acordo. “O Acordo está sendo negociado de maneira secreta, sem consultar as nossas sociedades, parlamentos, nem organizações populares e diferentes setores que serão afetados, tão pouco houve consulta ao setor acadêmico. Os únicos documentos que se tornaram públicos não são definitivos e não dão conta de revelar o processo das negociações. Além do que surgiram a partir de vazamentos que foram compartilhados entre organizações parceiras. Esse Acordo busca beneficiar claramente às grandes empresas do Norte global e aos grupos de poder de agroexportadores do Mercosul”, destaca.
Oscar Rivas também denuncia o potencial de agravamento do envenenamento da terra, das águas, das pessoas. “Buscam fortalecer a mega agro-exportação de commodities, especialmente a soja. O Acordo vai aprofundar os problemas que o agronegócio já está produzindo e estão evidentes em nossa região: a expulsão de famílias agricultoras e indígenas de seus territórios tradicionais, o envenenamento por agrotóxicos das águas, da terra, a destruição das economias, a perda da soberania alimentar e uma crescente vulnerabilidade em nossos territórios”.
“Algo fundamental e que quase não falamos é o fato de que nossas sementes serão privatizadas, estarão proibidos a troca e a livre circulação e isso ocorrerá porque em matéria de propriedade intelectual estão negociando todos os aspectos dessa regulação”, alerta Rivas. A preocupação com a questão ambiental é uma simples declaração de princípios, o famoso Pacto Verde.
Caráter neoliberal
Há pontos no Acordo que trazem determinações injustas também relacionadas a restrições de medicamentos genéricos, o que claramente cerceará o direito à saúde já bastante deficiente nos países envolvidos, assim como seguirá enfraquecendo o avanço da ciência e da tecnologia na região.
“Queremos ressaltar que a política comercial da União Europeia é pesada, é de caráter neoliberal e, portanto, não pode oferecer soluções para as graves crises socioecológicas que enfrentamos. Ao contrário, consideramos que a agenda de livre comércio contribui para aumentar essas crises ao permitir uma maior concentração e controle dos sistemas de produção e consumo insustentáveis, que estão nas mãos das grandes empresas transnacionais. O neoliberalismo não tem como objetivo proteger a vida e os direitos, ao contrário, tem demonstrado atentar contra eles”, conclui Rivas ao ler um trecho da declaração divulgada pela Federação Amigos de la Tierra na América Latina e Caribe em maio de 2023.
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