No último dia 22 de março, ela completou 91 anos de idade. Desses, quase metade dedicados à luta por memória, verdade e justiça, iniciada quando teve o seu filho, com apenas 24 anos, sequestrado, torturado e morto pela ditadura militar argentina. São quase cinco décadas de um compromisso com a democracia e os direitos humanos que continua inspirando a atuação de organizações populares de toda a América Latina e Caribe.

Essa é Nora Cortiñas, fundadora das Madres de la Plaza de Mayo e da Red Jubileo Sur Américas. Com mãos que combinam leveza e força de quem já ajudou a protagonizar diversas mobilizações em nível continental, Nora amarrou o seu pañuelo blanco ao vivo e, mais uma vez, nos ensinou: “temos que resistir de forma permanente, devemos seguir trabalhando com muita paciência porque nós, os povos, somos os verdadeiros credores da dívida. Devemos dizer ‘não devemos, não pagamos’ e pedir a anulação da dívida pública nos nossos países que serve a um modelo que segue destruindo a natureza e segue nos violando nessa pandemia”.

As palavras de esperança de Norita foram ditas no final da tarde desta segunda-feira, (05/04), durante a abertura do Ciclo de Debates sobre lutas e desafios atuais do Cone Sul, realizado pela Rede Jubileu Sul/Américas que, sob uma perspectiva crítica aborda temáticas como dívidas, privatizações e livre comércio (saiba mais e participe do 2º painel)

O que temos em comum no Cone Sul? O que aprendemos com nossas lutas? Quais possibilidades temos? Quais as agenda atuais que temos na região? Como traçamos perspectivas futuras de maior integração entre os povos?

Esses são algumas das perguntas que movem a realização do ciclo de debates e que foram feitas pela economista Sandra Quintela, articuladora da Rede Jubileu Sul Brasil, mediadora da atividade deste 5 de abril. Conforme dito pela própria Quintela, “o objetivo do ciclo é olhar para o Cone Sul e analisar as experiências de organizações e movimentos sociais da região para a construção de uma agenda articulada”.

Buscando fazer apontamentos sobre essas questões, a socióloga Martha Flores, secretária geral da Rede Jubileo Sul/Américas, ressaltou que “na última década, as estratégias de financeirização da vida e da natureza através de mecanismos corporativos de acumulação, de expropriação, de violação dos direitos humanos e da natureza se reconfiguram em função de seguir garantindo o controle de matérias primas, o controle dos espaços de coletivos vivos e o controle da vida e dos corpos”.

Para Flores, esse cenário dos últimos anos foi agravado pela Covid-19, que atinge de modo mais perverso os territórios em situação de vulnerabilidade. “A pandemia recrudesceu as condições socio-sanitárias, políticas e de falta de vontade dos Estados”, frisou.

Na América Latina e Caribe, o contexto de aprofundamento das vulnerabilidades é marcado também, na visão de Flores, “pela judicialização, criminalização e violação de direitos de quem exerce a defesa dos defensores de direitos humanos e pelas violências contra os territórios, que expressam a manifestação de um modelo de acumulação que foi criado justamente para seguir se recriando”.

E na engrenagem desse modelo, entende Flores, as dívidas – no plural – cumprem função essencial. “Digo dívidas porque não podemos falar de uma única forma de expressão da dívida. Além da perspectiva financeira de acumulação de capital, que segue vigente, temos também as dívidas contra os nossos corpos, a nossa história e a nossa ancestralidade”, criticou.

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Um território formado sob diversas violências

Esse papel das dívidas na produção das diversas violências tem, segundo Ana Agostino, professora da Universidade Centro Latinoamericano de Economia Humana, raiz na formação da América Latina e Caribe, visto que “o Cone Sul em particular foi se constituindo como uma região que percebe a si mesma como branca e europeia, sendo necessária a construção de um projeto de ‘pureza racial’”.

Fazendo referência a documentos jurídicos uruguaios de finais do século 19 que limitavam ou proibiam a migração asiática e africana, Agostino demonstrou como o ideal de branquitude como projeto político foi normatizado e legitimado ao longo do tempo, tendo reflexos ainda hoje. “Nossos países se moldaram sobre a sistemática negação da diversidade dos povos que estavam aqui ou que chegavam aqui”, disse.

Dialogando com os questionamentos do evento, a socióloga Graciela Rodriguez destacou a mesquinhez das elites latino-americanas e caribenhas como um ponto de aproximação entre os países da região. De acordo com ela, “temos as mesmas elites gananciosas que não têm qualquer projeto para o desenvolvimento real dos países, mas apenas para o aumento a curto prazo dos seus lucros”.

Rodriguez, que integra a Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (REBRIP), disse ainda que outra semelhança histórica entre os países do Cone Sul “é a alternância entre processos medianamente democráticos, tentativas de criar democracias e a sua derrubada por golpes e ditaduras militares”.

Analisando a conjuntura político-econômica regional, Rodriguez denunciou a situação brasileira, qualificando o que se passa no país como um “neogolpe, um golpe feito com cara democrática, como se Legislativo e Judiciário estivessem funcionando com autonomia” e alertando que “o projeto econômico que dá sustentação ao neogolpe não avança sem repressão”.

Protagonismo dos povos na resistência

Lembrando os 30 anos da assinatura do Tratado de Assunção, que representou a criação do Mercosul, Rodriguez enfatizou a importância da integração regional e da mobilização social articulada como alternativa de enfrentamento ao avanço do neoliberalismo e às imposições dos acordos de livre comércio.

A centralidade da resistência popular foi evidenciada também por Ricardo Canese, membro paraguaio do Parlamento do Mercosul. Ao citar o exemplo dos atos de rua que têm acontecido em seu país, Canese afirmou que “as pessoas perderam o medo e estão dispostas a lutar pela soberania, pela saúde pública e pelos direitos humanos”.

Para Canese, esse processo ocorre pelas próprias condições de negligência do Estado com direitos fundamentais da sociedade. “Não há vacinas, não há insumos, estamos atrasados na imunização e isso tudo indignou a população. O que nos dá esperança é mesmo essa participação e esse protagonismo dos povos”, expressou.

Na mesma perspectiva, Ana Agostino acredita ser preciso “abordar nossas histórias a partir da multiplicidade de vozes, ouvindo as vozes das mulheres, das organizações afrodescendentes, dos indígenas, e garantir a reparação integral”. “A reparação, sim, é uma dívida que o nosso continente tem com os seus povos”, concluiu.

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