Com a presença de mais de 60 articuladores e articuladores de todas as regiões do Brasil, no dia 02 de abril, via online, aconteceu o 1º Encontro Nacional de Articuladores e Articuladoras do 28º Grito 2022

Redação | Assessoria de comunicação do Grito dos/as Excluidos/as

Alfredo José Gonçalves, padre scalabriniano e vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM), uma das entidades que integram a Coordenação Nacional do Grito, falou sobre o Lema do 28º Grito: BRASIL: 200 anos de (in)dependência. Para quem? (Veja a íntegra da apresentação no final da matéria).

Os participantes apresentaram a realidade local, com a agravamento da violência, dos despejos, das invasões aos territórios quilombolas e indígenas, do desmatamento, da exploração por parte de mineradoras e empresas de energia eólica, de assassinatos de lideranças, do crescimento da fome e desemprego, das tragédias “naturais” provocadas pelo descaso de políticos e empresários, entre outras mazelas.

Como sinal de resistência e esperança, os/as articuladores/as trouxeram as iniciativas e ações que já estão sendo realizadas e programadas para 2022, na construção do 28º Grito, e que reúne os diversos movimentos e organizações locais.

O Dia D do Grito de março foi marcado por ações presenciais e online em várias localidades, como em Manaus/AM, Cuiabá/MT, Rondonópolis/MS, Alto Tietê/SP, Baixada Santista/SP, NE 2 (Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas). Para o Dia D abril já estão programadas atividades Recife/PE, Mato Grosso, NE2.

200 anos de (in) dependência do Brasil

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM

São Paulo, 02 de abril de 2022

Neste bicentenário da independência do Brasil (1822 – 2022), nada melhor que conhecer os clássicos da historiografia científica, no sentido de entender os nós, entraves e impasses de nosso atraso e de um desenvolvimento bem aquém das potencialidades deste “gigante adormecido”. Por que um país tão rico quanto o Brasil tem abrigado uma população majoritariamente pobre, especialmente entre os indígenas, negros e trabalhadores/as em geral? Por que, após anos de abertura e experiência democrática, tornou-se possível a ascensão da extrema-direita, do autoritarismo e do negacionismo?

Para responder a essas perguntas, não basta a matéria de história oficial ensinada nas salas de aula. Ao contrário, torna-se necessário percorrer as páginas de alguns cientistas sociais que se debruçaram sobre o passado de um país invadido e saqueado. Também não basta uma análise de conjuntura, temos de buscar elementos de nossa trajetória histórico-estrutural para entender o fio condutor que nos trouxe até a situação em que nos encontramos. Combinando os escritos do poeta e escritor uruguaio Eduardo Galeano com as obras do escritor guatemalteco Miguel Ángel Astúrias, vê-se que, na América Latina e Caribe, onde a terra foi mais rica e pujante, a população acabou permanecendo mais pobre e abandonada.

Prova disso são, por exemplo, a região de Potosí, na Bolívia, onde a prata, após saqueada e convertida em moeda no velho continente europeu, deu origem a uma população hoje estagnada; o vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, Brasil, onde o diamante e as pérolas preciosas, após extraídos, deixaram a população abandonada ao próprio destino; a região de Manaus, Amazônia, onde a exuberância da floresta e da natureza levaram à superexploração da borracha e dos trabalhadores migrantes que vinham do Nordeste, os quais, após o declínio desse ciclo econômico, acabaram por converter-se nas populações ribeirinhas, lembradas praticamente apenas nos anos de eleição; as civilizações Inca, Maia e Asteca que, após conquistadas e destruídas, legaram um cenário que serve apenas para o turismo.

Numa palavra, a riqueza do solo e/ou subsolo provocou a cobiça e a ambição dos invasores, junto com a miséria da população nativa. De forma paradoxal e em chave colonial, os tesouros da terra engendraram nossa pobreza histórica, como se fossemos “mendigos sentados em montanhas de ouro”, para citar o livro As veias abertas da América Latina.

No Brasil as coisas não foram diferentes. Embora seja um dos maiores produtores de carne, de grãos, de minério, praticamente autônomo em petróleo, rico em água potável e com o grande patrimônio mundial da Amazônia – nada disso serviu para trazer um nível razoável de desenvolvimento à maioria dos cidadãos brasileiros.

Por isso é que os gritos pela independência começaram bem antes de 1822, e se prolongam até os dias de hoje. Que o diga o quilombo dos Palmares e a figura de Zumbi, bem como a atual preocupação dos povos indígenas e das comunidades quilombolas com o avanço da mineração, incentivado justamente pelas autoridades que deveriam proteger suas áreas reservadas.

As encruzilhadas históricas se repetem. Como no passado, atualmente estamos diante do populismo nacionalista, do autoritarismo, do corporativismo, do negacionismo – e de muitos outros “ismos” – que nos obrigam a uma permanente atualização das respostas. Não basta imitar os nossos heróis e ancestrais, é preciso recriar suas intuições para os desafios de cada momento. Imitar pode ser uma forma de trair, uma vez que a história sempre coloca perguntas novas que requem novas respostas.

Hoje, como ontem, seguimos dependentes da política dos países centrais e das regras férreas, inflexíveis e inexoráveis do mercado globalizado. Semelhante situação nos convida a retomar e revisitar as chaves de leitura que herdamos de alguns clássicos que estudaram mais a fundo a nossa história. Em termos etnológicos, antropológicos, sociológicos, políticos e econômicos, certamente alguns deles foram superados pelas pesquisas mais recentes, mas suas metáforas ainda nos ajudam a decifrar os enigmas e fantasmas que dominam nosso passado. Ler e estudar a história pressupõem sempre uma fidelidade criativa. Fidelidade a determinadas vigas mestras que atravessam estruturalmente os séculos e, ao mesmo tempo, criatividade para atualizar e contextualizar tais ensinamentos.

A dinâmica entre ruptura e continuidade marca o estudo da historiografia. O desafio está em discernir, em cada período, onde colocar o acento. De qualquer forma, os estudiosos que nos precederam trazem chaves de leitura que servem não apenas para ressignificar fatos históricos de relevância decisiva, mas também para entender os impasses e incertezas do presente, com seus contrastes, disparidades, injustiças e contradições. Chaves que, ao abrirem as portas do passado, descortinam janelas para os horizontes do futuro.

  1. Dimensão econômica

Primeiramente, do ponto de vista econômico, os estudos de Caio Prado Junior, Celso Furtado, Florestan Fernandes, José de Souza Martins, Octavio Ianni, entre tantos outros, nos remetem ao célebre tripé na economia brasileira. Esta, desde seus primórdios, assenta-se sobre o latifúndio (com origem nas sesmarias), no trabalho escravo (exploração máxima da mão-de-obra) e o cultivo dos produtos de exportação (fornecedor de matérias primas).

Baseada na grande propriedade de terra, na super-exploração do trabalho e no fornecimento de produtos básicos para os países ricos e centrais, nossa economia sempre esteve de braços abertos para a metrópole – seja ela Lisboa, Londres ou New York – e de costas para as necessidades fundamentais de seu próprio povo. Este, impotente diante dos impérios, vê o produto de seu trabalho escorregar por entre os dedos. No país com maior número de cabeças de gado do que cidadãos e cidadãs, qual a porcentagem de brasileiros que pode ter carne na mesa ao menos uma vez por semana?!…

Até os dias de hoje, o tripé revela-se não apenas como uma chave de leitura, mas igualmente como uma metáfora viva e atual de nossa trajetória histórica. Não seria tão absurdo, por exemplo, falar não apenas dos latifúndios históricos do algodão, da cana-de-açúcar, do cacau, dos minérios e do café, mas também, atualmente, do latifúndio das comunicações, do agronegócio, da produção de carne, novamente dos minérios, das reservas de água doce ou da produção econômica em geral. A grande empresa prevalece sobre a pequena e média iniciativa, porque as opções do projeto político e econômico a favorecem.

Da mesma forma que persiste o trabalho escravo, ao lado de outras formas análogas e precárias de trabalho. E persiste igualmente o afã insaciável das exportações, do fornecimento de “commodities” ou produtos in natura para o mercado mundial, ficando em segundo plano a consolidação do mercado interno. Contradição das contradições, a população paga mais caro justamente por aquilo que produz em maior quantidade.

  1. Dimensão política

Em segundo lugar, do ponto de vista político, a obra de Raymundo Faoro não nos permite esquecer que Os donos do poder continuam aferrados com unhas e dentes aos benesses e das classes dominantes. As obras de Florestan Fernandes e de Darcy Ribeiro, por sua vez, também ajudam a ampliar esse cenário. Herdado da Península Ibérica, e encontrando solo fértil em terras de Santa Cruz, o conceito de patrimonialismo explica a apropriação privada da res publica, apropriação que inclui o erário, os privilégios, o tráfico de influência e a projeção pessoal. Tem sido comum na história brasileira administrar os problemas do estado como se fossem negócios familiares.

Essa prática abre brechas para uma crescente promiscuidade entre o público e o privado, a ponto de qualquer obra realizada com o orçamento público ser inaugurada e recebida como se fosse um benefício de Fulano, Beltrano ou Sicrano de Tal, em geral candidatos às próximas eleições, mas sem qualquer compromisso com as próximas gerações.

Não é à toa que grande parte das obras levam o nome e uma placa do administrador de plantão. Neste momento, não seria difícil fazer desfilar aqui os diversos estados da federação, com seus respectivos “donos”! Também neste caso, a noção de “donos do poder” aparece simultaneamente como chave de leitura e como metáfora do “jeito brasileiro de fazer política”. Jeito onde o “toma lá dá cá” é a regra e o motor que faz funcionar os poderes e repartições públicas, desde o Congresso Nacional até os postos de atendimento mais simples e inexpressivos.

O “jeitinho brasileiro” tem aqui uma de suas faces mais perversas, que se traduz concretamente na política do coronelismo e no voto de cabresto, práticas que estão entre os maiores nós de uma verdadeira democracia. Decorre disso, por exemplo, a arrogância e o autoritarismo crônico das classes dominantes brasileiras, as quais se revelam, mais do que propriamente conservados (o que também o são), extremamente obtusas e retrógradas, na contramão dos avanços democráticos da modernidade, além de avessas aos a quaisquer mudanças e aos direitos humanos em geral.

  1. Dimensão sociocultural

Por fim, do ponto de vista sociocultural, lancemos um rápido olhar sobre o estudo de Gilberto Freire: Casa Grande & Senzala para a realidade do campo e Sobrados e Mocambos para o mundo urbano. Também nos ajudam os conceitos cunhados por Roberto da Matta, Câmara Cascudo e Roger Bastide. No Brasil praticamente inexiste uma tradição de direitos adquiridos. A formação da sociedade brasileira desenvolve-se a partir de uma cultura de privilégios para a Casa Grande e favores para a Senzala.

O grande problema é que os favores oscilam em quantidade e qualidade de acordo com o humor ou os lucros do senhor. Quando este está mal-humorado ou quando vão mal os negócios do açúcar, do café, do algodão, da soja ou do gado, os favores são substituídos pelo chicote, pela polícia ou pelo exército. Pior ainda, quando os moradores da senzala se organizam e pretendem transformar os favores em direitos sistematicamente adquiridos, o peso da repressão foi e continua sendo a resposta das classes dominantes.

Os episódios de Canudos, Cabanas, Quebra-quilos, Contestado, Palmares, Eldorado dos Carajás e Felizburgo-MG, entre outros, revelam isso à saciedade. Genocídio, chacina ou massacre são conceitos que explicam o drama de pessoas e famílias sumária e brutalmente eliminadas pelo simples fato de reclamar pelo direito à vida. Mais uma vez, a chave de leitura transforma-se em metáfora das relações sociais mais profundas no Brasil. Do lado da Casa Grande, estão aqueles que, por direito, podem estudar e passar férias em Coimbra, Paris, Disneylândia ou Miami, pois dispõem de amplos recursos e possibilidades; do lado da Senzala, aqueles que, pelos lixões e ruas da cidade, disputam com os cães e abutres os restos de comida podre. De um lado, os senhores da terra, da renda, das riquezas e do poder; do outro, migrantes, sem terra, sem emprego e sem rumo!

O esquema da Casa Grande & Senzala também se revela das profundadas desigualdades sociais que marcam o Brasil, nação que integra o BRICS (chamados países emergentes – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), mas que segue ostentando o título de uma das sociedades mais desiguais do planeta. A distância entre a base e o pico da pirâmide social é abissal e progressiva, tendo sido escancarada e agrava pela pandemia da Covid-19. Daí a coexistência ostensiva de mansões ao lado de favelas, de Iates e carros de luxo ao lado de transportes públicos precários e irregulares; de um sistema de educação privado para os filhos da classe dominante ao lado de outro para os filhos dos trabalhadores e trabalhadores (valendo o mesmo para a saúde, a segurança, o lazer, e assim por diante. “Ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres”, como diria São João Paulo II, em sua viagem à Cidade do México.

Conclusão

Nesse processo de formação em suas três dimensões – econômica, política e sociocultural – não podemos esquecer as “dores de parto” que deram origem à nação brasileira. A expressão “dores de parto” evidentemente não é neutra. Nessa está subentendida a violência sofrida pelas mulheres indígenas e negras, como “matrizes” para o povoamento. Violência que, ao longo do tempo, irá acumular lições de resistência e enfrentamento ao regime colonial, mercantil e capitalista que desde cedo se impôs sobre as terras recém-invadidas.

Tanto que, até os dias atuais, são as mulheres que muitas vezes carregam sobre os ombros a organização vital de movimentos, Comunidades Eclesiais de Base, Pastorais Sociais, organizações não governamentais, redes e campanhas de libertação, para não falar de tantas outras lutas ocultas e não raro desconhecidas e desconsideradas. Inegável que o cuidado com aquilo que hoje chamamos de bem viver passa pela presença feminina na busca de novas soluções diante da devastação e destruição do solo, da vida e das relações.

O panorama apresentado aqui pelas/os representantes do Grito dos Excluídos e Excluídas ilustra essa presença feminina na resiliência e nas lutas sociais. Talvez venha daí o salto qualitativo para superar expectativas prontas e imediatas pela esperança. Enquanto aquelas se regem e se nutrem pelos estridentes apelos do mercado, esta última tem suas raízes no lento e laborioso processo de cuidado com a geração e a preservação da vida em todas as suas dimensões (biodiversidade). Por outro lado, são essas sementes espalhadas por todo território nacional que nos levam ao verbo esperançar, protagonista central deste e de tantos outros encontros. Se há certa razão em dizer que não é tempo de colheita, a semeadura segue com firmeza e teimosia. E isso fará germinar brotos vivos e vicejantes para as gerações que nos seguirão.

O desafio está lançado. O bicentenário da independência constitui um marco, sem dúvida, mas, vale insistir, a luta começou muito antes de 1822 e segue sem tréguas. Quanta violência, massacres, feminicídios, miséria e fome teremos ainda de presenciar até que as coisas mudem! E quantos “governos da mudança” terão de ser eleitos! Felizmente, os trabalhadores e trabalhadoras não se deixam intimidar. Para além da retórica estéril do governo e da insensibilidade de alguns setores da sociedade, a marcha pelos direitos e a dignidade humana não se detém diante das cercas e das balas assassinas.

No dizer do poeta, “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Como se pode verificar no cenário apresentado, as mobilizações do Grito dos Excluídos e Excluídas, multiplicadas por tantas lideranças presentes na tela de nossa reunião, constituem sinais claros de que os frutos da organização e da luta lentamente amadurecem em todos os estados da União. Para quem haverá de ser colheita? Talvez não para nós, mas não faltará quem se beneficie com os esforços de hoje. Gritos silenciosos e silenciados, gritos abafados e sufocados, mas também gritos conscientes de um patriotismo vivo e ativo, e que, por isso mesmo, ocupam as ruas e praças com a bandeira e as atividades da “vida em primeiro lugar”, em vista do Brasil que queremos.

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