Por Leandro Demori, do Intercept Brasil
A organização quer que os jornalistas tenham um padrão de comportamento na internet que não coloque em risco o que sempre foi muito caro ao discurso histórico do grupo: a isenção. As palavras “isenção” e “isento” foram escritas 16 vezes no editorial de página inteira assinado por João Roberto Marinho, presidente do Conselho Editorial. A medida afeta todos os que trabalham em lugares como TV Globo, jornais O Globo e Extra, rádio CBN, revistas da Editora Globo (como a Época), e G1.
A ideia, segundo texto assinado por Marinho ao qual eu tivemos acesso na noite de ontem, é “tentar ao máximo nos despir de tudo aquilo que possa pôr em dúvida a nossa isenção”. Segundo o documento, o grupo considera toda rede social potencialmente pública – mesmo que postagens estejam restritas apenas aos amigos em grupos fechados como o WhatsApp. O medo é o vazamento de prints que possam comprometer o repórter e, assim, “inabilitá-lo” a exercer o jornalismo.
“Isso não é admissível, uma vez que a isenção é o principal pilar do jornalismo. Perder a reputação de que é isento inabilita o jornalista que se dedica a reportagens a desempenhar o seu trabalho”, diz o texto.
Compartilhar opiniões privadas entre amigos no WhatsApp? Só se o jornalista tiver uma vaga “confiança absoluta” no interlocutor. Ele passa a ser responsável pelas atitudes de terceiros. No texto de apresentação às novas regras, Marinho diz que está apenas fazendo “recomendações”. É a única vez que a palavra aparece na página. Já a palavra “deve” aparece 26 vezes, na maior parte das vezes em caráter impositivo.
“Sei que não é preciso, mas dou aqui um ou dois exemplos”, escreve Marinho. “Todos os jornalistas que cobrem economia (e aqueles que compõem a chefia da redação), por exemplo, se privam da liberdade de aplicar em papéis de empresas específicas para que jamais levantem a suspeita no público de que determinada notícia sobre esta ou aquela empresa tem por trás um interesse pessoal.”
O curioso é que esse posicionamento é contrário em relação ao Projeto Credibilidade, um consórcio que reúne veículos de imprensa de vários países em torno de técnicas para “promover um jornalismo digital confiável e de qualidade” e do qual O Globo e Época fazem parte. O que diz o consórcio em casos como esse? Não que o jornalista deva se abster de investir em bolsa (uma atividade privada), mas que ele deve declarar em seu perfil público em quais companhias investe. Melhor do que bloquear comportamentos que interferem na vida pessoal do jornalista, o projeto quer apostar em transparência.
Marinho diz que os jornalistas não podem “defender ideologias” ou tomar partido em “questões controversas e polêmicas que estão sendo cobertas jornalisticamente pelo Grupo Globo.” A dúvida é se existe alguma questão controversa ou polêmica no mundo que NÃO seja coberta pelo grupo Globo. Com TVs, rádios, jornais, revistas e com o maior portal de notícias do Brasil, a empresa fala de praticamente todos os assuntos.
O texto mistura apoiar um candidato político com apoiar uma ideia ou uma tese, e quer controlar até mesmo os likes dos funcionários. “Esses jornalistas não devem nunca se pôr como parte do debate político e ideológico, muito menos com o intuito de contribuir para a vitória ou a derrota de uma tese, uma medida que divida opiniões, um objetivo em disputa. Isso inclui endossar ou, na linguagem das redes sociais, “curtir” publicações ou eventos de terceiros que participem da luta político-partidária ou de ideias.” O jornalista é contra a pena de morte? Não pode curtir um post sobre o assunto. Deseja o fim da guerra às drogas? Silêncio. É contra a corrupção? Acredita em aquecimento global? Quer mais cotas nas universidades? Shhh.
O comunicado diferencia reportagem de colunas, e permite aos colunistas que continuem emitindo opinião. Como vai funcionar em casos como o de Alexandre Garcia, por exemplo, que frequentemente senta na bancada do Jornal Nacional, não como comentarista, mas como apresentador? Ele poderá seguir no Twitter debochando da morte de mulheres, dizendo “Eu eu com isso?” ao comentar um estupro, ironizando uma mãe brasileira que foi separada do filho pela imigração dos Estados Unidos ou escrevendo que o fim da contribuição sindical obrigatória é pra acabar com os “pelegos”? Sem entrar no mérito de suas opiniões, todos esses assuntos são cobertos pelo Grupo Globo.
Duas frases podem sintetizar o norte filosófico por trás da carta: “O jornalista do Grupo Globo, sem exceção, não pode, por óbvio, criticar colegas de suas redações ou de redações de competidores nas redes sociais. O crítico acaba sempre por se diminuir diante do público.” É a interdição do debate de ideias e, sobretudo, a percepção de que ser um jornalista crítico – e poder criticar republicanamente os colegas – é ser um jornalista menor. Bom mesmo é treinar a domesticação.
As regras também abarcam assuntos prosaicos. “O jornalista deve evitar criticar hotéis, marcas, empresas, restaurantes, produtos, companhias aéreas etc., mesmo que tenha tido uma má experiência”. Em caso de dúvida sobre postar ou não postar, o Grupo Globo é taxativo: “A única solução é consultar a chefia”. Se o cidadão foi sacaneado por uma empresa de telefonia ou de plano de saúde, é de bom tom consultar o chefe pra saber se pode ficar publicamente indignado.
Jornalistas do grupo que conversaram conosco durante o Congresso da Abraji, que acontece neste final de semana em São Paulo, se mostraram, em geral, indignados. “Ainda que eu não poste mais nada nas redes, eles (militantes políticos que caçam informações de jornalistas para expô-los online) ainda vão cavar uma postagem minha de 2010 e enxergar viés político”, disse um funcionário. “A empresa está incentivando que esses caras revirem a nossa vida”.
É compreensível que num ambiente de polarização os veículos jornalísticos tentem vender a imagem de isentos – mas, em primeiro lugar, por definição, não há neutralidade em redes sociais. Todo o histórico construído por uma pessoa em sua vida online é suficiente para traçar um perfil ideológico, quer ela controle seus likes ou não.
Ao transferir o ônus da prova de isenção para seus funcionários, o Grupo Globo se esquiva de um debate mais urgente, o da transparência. A isenção é uma falsa auto-imagem dos veículos em um país em que 28% das pessoas não confiam em nada do que sai na imprensa. É pior entre os jovens, que são o público do amanhã: só 10% deles confiam muito no que jornalistas publicam, enquanto 41% não confiam em nada. O acordo de confiança foi quebrado há muito tempo, e o jogo da isenção perdeu a guerra. O que pode reatar essa confiança é a honestidade e a transparência. As pessoas sabem que jornalistas têm opiniões e que estão apenas as escondendo no bolso.
É claro que repórteres precisam ter bom senso. Que jornalistas são pessoas públicas. No Congresso da Abraji, o chefe de segurança do BuzzFeed, Jason Reich, recomendou diretrizes mais realistas: separar a vida pessoal da profissional e não fechar suas redes profissionais. “Calar o jornalista é exatamente o que o hater quer”, disse.
Tentando esconder o posicionamento político de seus repórteres, o Grupo Globo está jogando exatamente o jogo irrealista dos trolls. Em vez de estimular a transparência e a pluralidade, pede que se escondam.
Columbia Journalism Review, publicação sobre estudos de jornalismo da Universidade de Columbia, foi taxativa sobre esse tipo de diretriz: o tiro sairá pela culatra. Por dois motivos: o primeiro é que isso não convenceria os leitores de que as publicações são realmente isentas; o segundo é que a medida evitaria que os veículos usassem as redes sociais em todo o seu potencial (gente: tretas são importantes. O mundo não é Alice no País das Maravilhas). Repórteres são seres humanos e seres humanos não são neutros, ainda que os empregadores tentem esconder isso

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