A assinatura do acordo Mercosul-União Europeia viola os direitos da população por não levar em conta o debate público em uma questão de suma importância para o nosso povo e economia
Por André Lima* e Francisco Vladimir**
O debate sobre a relação entre livre comércio e privatizações nos remonta a um contexto capitalista-liberal, envolvendo uma série de elementos econômicos, sociais, políticos e culturais. As práticas econômicas que surgem sob justificativa da ideologia liberal-burguesa, exercem um impacto profundo nas economias nacionais e global, e sua defesa se baseia na prevalência do mercado como única forma possível de organização para a reprodução da vida em sociedade. Além disso, a ideologia oficial do capitalismo, o liberalismo econômico, tenta delimitar a um mínimo o papel que o Estado deve exercer na economia, que somente deveria atuar nos setores onde não houvesse interesses de por parte dos capitalistas.
A história do livre comércio, enquanto doutrina econômica liberal, remonta ao período do mercantilismo, que formou as bases para a consolidação do capitalismo, a expansão do comércio internacional, que formou a burguesia comercial que deu origem à industrial. Com a Revolução Industrial, a chamada escola da Economia Política, criaram uma teoria na qual a remoção de barreiras comerciais entre países levaria a uma maior eficiência e crescimento econômico. A visão de mercado do livre comércio tem sido a base da política econômica global.
Após ter suas bases implodidas pelas crises do final do século XIX e pela Grande Depressão econômica de 1929, e passar décadas no “limbo”, as ideias liberais ortodoxas (de um capitalismo idealizado) retornaram em um projeto hegemonista no pós-segunda guerra, impulsionado pelas Instituições Financeiras Multilaterais (IFMs), como o Fundo Monetário Internacional (FMI-1944), o Banco Mundial (BIRD-1944) e a Organização Mundial do Comércio (OMC-1959). Instituições essas que difundiram (impuseram) as novas bases do “retorno” à ortodoxia liberal sobretudo a partir da década de 1970, no Brasil e no mundo. Foi neste momento que se abriu o período neoliberal que vivenciamos até hoje. Esse “novo liberalismo” já renasce sem qualquer compromisso com a democracia.
Na prática, tendo em vista sobretudo a assimetria tecnológica e das relações econômicas entre os diferentes países, o livre comércio é uma péssima alternativa para países subalternizados. Países inteiros e setores econômicos importantes podem entrar em colapso fruto da desindustrialização, que sempre vem com desemprego, desigualdade social, enfraquecimento do mercado interno, resultado de uma competição desigual como a que aconteceu na década de 1990, quando o Brasil realizou a sua abertura econômica sob pressão dos países exportadores, sobretudo os Estados Unidos e países europeus.
Além disso, a imposição das privatizações como uma política de garantias para a realização de novos empréstimos por parte dos países imperialistas, é um elemento indispensável à cartilha neoliberal das IFMs, transferindo propriedades e serviços anteriormente geridos pelo Estado para o setor privado. A privatização leva à concentração de poder, de riqueza e à criação de monopólios privados, além de fazer aumentar a desigualdade, tornando alguns serviços essenciais inacessíveis para as camadas mais pobres da população.
Apesar de ser uma ideologia econômica hegemônica, o livre comércio nunca funcionou na prática. Os países que mais propagam o liberalismo econômico protegem suas economias sempre que se sentem ameaçados. É amplamente conhecida a defesa que o governo dos EUA promove sobre a produção nacional da laranja e, em maio de 2024, o país impôs uma taxação de 100% sobre a importação de carros elétricos chineses, que têm produzido automóveis forma mais eficiente que a Tesla do extremista de direita Elon Musk, por exemplo.
Fica cada vez mais evidente a contradição entre um país que impõe a ideologia liberal há séculos, por intermédio de sua hegemonia política, militar e cultural, mas não a pratica. A medida contra a importação dos carros chineses é histórica, pois escancara tanto o medo do império de perder ainda mais espaço econômico para os chineses, num contexto de emergência climática e necessidade de descarbonização da economia, quanto pode ser considerado mais um forte sintoma destes tempos de decadência dos EUA frente à nova geopolítica internacional, que está sendo redesenhada em especial pelos países do Sul global.
A interseção entre livre comércio e privatizações pode ser trabalhada de diversas formas. No roteiro oficial do linguajar neoliberal, a implementação de políticas de livre comércio e a privatização de empresas estatais seriam uma forma de preparar a economia para competir globalmente. Entretanto, o que vemos são empresas estatais de outros países comprando as nossas empresas públicas, como é o caso do Complexo Industrial do Porto do Pecém (PIPP), no litoral cearense, gerido por uma estatal holandesa, num verdadeiro atestado de incompetência por parte do Estado brasileiro, que abre mão da sua soberania, entregando a gestão de empresas estratégicas (com lucros muitas vezes bilionários!) para empresas estrangeiras e grandes grupos nacionais.
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O liberalismo não combina com nacionalismo nem com soberania
Neste tópico em particular, queremos chamar a atenção para um fato: o liberalismo econômico, o que inclui a fé no livre comércio e uma política privatizante, somente é vantajoso para os países do centro do capitalismo mundial, que se beneficiam de suas vantagens tecnológicas, da dominação financeira, da compra de empresas estatais privatizadas. Contudo, quando estamos falando de países subalternizados, especialmente os da América Latina, Caribe, África e Ásia, a adoção do livre comércio é danosa, pois deixa a economia interna indefesa e o “enxugamento” do Estado, via política de privatizações, os enfraquece fazendo com que tenham cada vez menos capacidade de dar respostas abrangentes para fazer frente à crise estrutural do capital. O resultado disso, do avançado nível tecnológico alcançado pela humanidade e da perpetuação das relações do capital, é a extrema concentração de riqueza como nunca antes visto na história da humanidade.
Apesar de muito desgastado em todo o mundo, no Brasil, o neoliberalismo ainda é uma ideologia forte e hegemônica, propagado cotidianamente pelos grandes meios de comunicação, reforçados pelas chamadas big techs, corporações tecnológicas que exercem um papel estratégico na propagação dessa ideologia, além dos think tanks (cujo objetivo principal é influenciar políticas públicas sob o viés liberal), institutos liberais financiados por capital estrangeiro etc. Se observarmos bem, a política liberal e social-liberal (mas que não questiona concretamente o capitalismo), é a tônica em todos os governos, inclusive os ditos progressistas e de esquerda.
Além disso, a relação entre os dois conceitos é evidenciada na pressão para que países em desenvolvimento adotem políticas de privatização como condição para acordos de livre comércio ou ajuda financeira internacional. Isso pode forçar esses países a privatizar setores críticos, como água, energia, saúde e educação, com a promessa de atrair investimento estrangeiro e estimular o crescimento econômico. No entanto, a realidade frequentemente revela que os benefícios prometidos não se concretizam, e os serviços essenciais podem se tornar mais caros e inacessíveis à população.
A visão liberal frequentemente exige que os países reformem suas empresas estatais para se alinharem às práticas e exigências do mercado global. A privatização, nesse contexto, é vista como uma maneira de aumentar a competitividade e a eficiência, mas na prática resulta na venda de ativos estratégicos a empresas estrangeiras, levantando questões sobre a soberania econômica e a segurança nacional. Além disso, a redução do papel dos estados nacionais com a privatização de empresas públicas, deixa os países ainda mais reféns das IFMs e do imperialismo, pois suas capacidades de resposta frente à crise econômica, que hoje é estrutural, ficam cada vez mais restritas.
Plebiscito Popular da ALCA
Há muitos anos a sociedade civil brasileira constrói processos de resistência social contra os acordos de liberalização comercial. A luta contra a Área de Livre Comércio das Américas – ALCA resultou na rejeição do acordo, considerado deletério tanto no que diz respeito ao desenvolvimento nacional quanto para o cotidiano da vida de cidadãos e cidadãs brasileiros. Com isso, já se denunciava as trocas comerciais e ecológicas desiguais propostas nos termos da ALCA, algo que se repete agora com o caso do Acordo Mercosul-União Europeia; ao mesmo tempo em que se defendia a necessidade de criação de um sistema de governança e participação social transparentes e inclusivos para o caso dos acordos internacionais envolvendo o Brasil.
A realização do Plebiscito Nacional Sobre a ALCA, em setembro de 2002, na semana do Grito dos Excluídos e Excluídas, com uma vasta organização e articulação entre movimentos populares, centrais sindicais, pastorais e igrejas. Em todo o Brasil, o plebiscito contou com a mobilização de mais de 150 mil militantes em um grande esforço para organizar os locais e horários de votação, com cédulas padronizadas, fiscalização, elaboração de atas de votação, segurança e lacre das urnas. O mesmo aconteceu no processo de apuração dos votos, exigindo uma ampla capacidade de mobilização de pessoas para a contagem das cédulas e organização dos resultados.
Com isso tivemos um saldo de um histórico resultado da participação de mais de 10 milhões de votantes em todo o Brasil, onde o nível de rejeição foi considerável, por mais de 90% dos votantes contrários à assinatura do tratado da ALCA, da permanência do país nas negociações da ALCA e da entrega do território de Alcântara, no Maranhão, para os Estados Unidos.
Este acúmulo e o bom resultado do plebiscito nos mostrou (e devemos ter sempre ele como forma de entender que esses espaços de articulações ainda não necessários e não podemos abrir mão deles) que defender os interesses econômicos do país em negociações internacionais é travar batalhas contra os mecanismos perversos do endividamento e contra a submissão das elites ao capital financeiro internacional. Não desassociando as lutas territoriais das mulheres, das comunidades quilombolas, das ribeirinhas e ribeirinhos, das trabalhadoras e trabalhadores, sobretudo as lutas em defesa dos territórios e da soberania nacional, contra a sua entrega ao imperialismo dominante que vem avançando, também, com pautas reacionários e racistas, orquestradas por uma classe dominante de uma extrema-direita.
Qual deve ser o papel do Estado frente à crise estrutural do capital e emergência climática?
Partimos do pressuposto de que somente uma instituição como o Estado poderá fazer frente às mudanças climáticas, coordenando esforços e mobilizando todas as esferas da sociedade para realizar as transformações radicais que o mundo necessita neste momento. Um novo modelo de desenvolvimento deve ser construído de forma participativa, calcado na democracia direta e na participação popular (já contamos com meios tecnológicos comunicacionais e informacionais suficientes para tal), deve ser descentralizado e feito com respeito às comunidades tradicionais, garantindo um conjunto de salvaguardas para que as mesmas possam ter garantidos os seus direitos e modos de vida.
Tendo em vista a crise econômica e a incapacidade do sistema capitalista de dar respostas racionais para problemas estruturais que ele mesmo criou, a saída de curto prazo é fazer com que os Estados Nacionais ajam de forma coordenada, chamando à responsabilidade das corporações empresariais que detêm tecnologia que possam contribuir com a urgente descarbonização da sociedade. Neste sentido, a lei de patentes deve ser reformulada tendo em vista facilitar a difusão e evolução das “tecnologias ecológicas” para combater as mudanças climáticas.
O Estado também deve ter um papel decisivo no que diz respeito ao investimento massivo em inovação e tecnologia, sobretudo relacionada às energias renováveis, financiando a pesquisa nas universidades e abrindo novas empresas que irão substituir a Petrobrás num processo de transição energética, que não pode de forma alguma ser confundida com transação. Não podemos transferir para a anarquia de mercado a responsabilidade de garantir nada menos que as condições de sobrevivência humana no planeta, que é exatamente o que está em risco com as mudanças climáticas.
Deixar o comércio livre prevalecer significa deixá-lo à mercê da anarquia capitalista. Livre comércio e privatização sempre vai ser um péssimo negócio para países subalternizados como o Brasil.
Na tradição solidária de unidade e luta de nossos povos, o internacionalismo e a ação além das fronteiras de nossos países sempre foram uma constante. A integração dos povos é o caminho para a construção de um projeto democrático de soberania que responda à diversidade de histórias, culturas, línguas e tradições de luta que fazem de nós a Pátria Grande. Fortalecer essa visão e referência é fundamental neste tempo complexo para a região e o mundo. Atender às necessidades urgentes de nossos povos e avançar na defesa dos bens comuns para enfrentar crises como a das mudanças climáticas exige o fortalecimento das relações de complementaridade e solidariedade entre nossos países.
Acordo União Europeia-Mercosul
Nesse contexto é necessário se somar aos espaços de articulações nacionais e internacionais contra o acordo Mercosul-União Europeia e Mercosul-EFTA . O acordo Mercosul-EU é apresentado como o acordo de livre comércio mais expressivo já negociado pelos quatro países do Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai). A negociação prevê isenção das tarifas tributárias de mais de 90% dos produtos negociados entre os blocos econômicos em um período de até 15 anos. A lista de produtos originários da UE com isenções de impostos no mercado brasileiro incluiria produtos industrializados, enquanto os produtos do Mercosul isentos seriam, em grande maioria, commodities – como café, carne e soja. Dessa forma, se constitui o caráter colonial do acordo, que aprofundaria o modelo neoliberal que mantém os países fora do eixo como exportadores de commodities e importador de mais agrotóxicos.
Os acordos de livre comércio favorecem legislações que fortalecem os setores envolvidos com o comércio internacional, como o agronegócio brasileiro, e protegem investidores internacionais, como bancos e multinacionais. Com isto, saem enfraquecidos todos aqueles que são prejudicados por estes setores, enquanto as dívidas socioambientais, incrementadas após anos de destruição da natureza e dos instrumentos de proteção do Estado, tornam-se oportunidade de especulação e barganha comercial, financiada em geral com fundos públicos.
Por tanto, a assinatura de um tratado como este viola os direitos da população, justamente por não levar em conta o debate público em uma questão de suma importância para o nosso povo e economia, especialmente para aqueles mais afetados pela superexploração dos biomas brasileiros.
* André Lima Souza é economista, doutor em Geografia Humana e professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE)
** Francisco Vladimir é jornalista, articulador nacional da Rede Jubileu Sul Brasil
Artigo originalmente publicado na revista “Construindo resistências desde os povos e territórios“, confira a publicação clicando aqui.