Não é incomum entre nós a sensação de que perdemos a capacidade de pensar um projeto político, econômico e social de forma integral. Da mesma maneira parece estar se dissolvendo a capacidade de fazer a crítica sobre o cenário presente em sua integralidade. Pois bem, de onde vem a cultura que estabelece e cria as bases que geram uma leitura fragmentada sobre tudo? A resposta é simples e bem conhecida, vem dos alicerces do capitalismo, sistema que orquestra direta e indiretamente nossos destinos como povos e territórios. Será que normalizamos as mazelas causadas pelo sistema capitalista ou será que já nos encontramos tão imersos que se tornou impossível criticar o que nos adoece enquanto sociedades?
É preciso pensar as crises humanas, econômicas e socioecológicas a partir do sistema capitalista. É preciso vincular essas realidades inseparáveis se desejamos de fato alcançar soluções duradouras e mais definitivas. É preciso perguntar: o que as catástrofes recentes e atuais provocadas pelo ciclone extratropical no Rio Grande do Sul, ou a seca que castiga cidades da Amazônia e do Nordeste têm a ver com as escolhas políticas por um sistema econômico que prioriza investimentos rentistas para o setor financeiro? O que revela a violência policial crescente, em que a Bahia lidera ranking com 22% do total de mortes pela polícia no país? Somente em setembro de 2023 mais de 60 pessoas foram mortas em operações da polícia no estado. Estamos nos perguntando com honestidade por que o PL (Projeto de Lei) 2903/2023 foi aprovado pelo Senado Federal, mesmo estando na contramão do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que já votou contra o chamado marco temporal para a demarcação de terras indígenas? A tese do marco temporal considera que indígenas só teriam direito à terra se estivessem sob sua posse na data da promulgação da Constituição Federal, em outubro de 1988. Contudo, ignora as históricas violações que esses povos sofreram ao longo dos anos.
Um giro rápido sobre o país nos leva a constatar que temos também um debate necessário a fazer sobre as esquerdas: a esquerda institucional e a esquerda social que luta contra modelos de desenvolvimento produtivos ancorados no agronegócio, na mineração ou em outros sistemas que promovem a financeirização da natureza, dos territórios, das nossas águas, das nossas florestas, dos nossos povos. Essas duas vertentes políticas, a esquerda institucional e a esquerda social, não se encontram nem no infinito! Quando vamos criar um ambiente maduro e de forma saudável discutir essa realidade posta no cenário atual? Enfrentar os desajustes e o projeto de morte da extrema-direita será uma tarefa sempre mais hercúlea se não houver disposição para repensar de forma integral a arquitetura política do bloco de esquerda no Brasil.
Para quem tem disposição e responsabilidade política para enxergar a realidade a partir da ótica da justiça social, da soberania econômica e do fortalecimento da democracia não há ilusões: o rentismo está em todas as estruturas da vida. Do meio ambiente à educação, os grupos econômicos que controlam o Brasil decidem nossos destinos! A questão fundamental é: o que vamos fazer a partir desta constatação? Há quem prefira negar essa realidade e nem precisamos questionar os porquês. O controle privado sobre a gestão pública inviabiliza cada vez mais um projeto democrático e soberano para o Brasil, como denuncia o artigo Quem controla a economia brasileira, assinado por Eduardo M. Rodrigues e Ladislau Dowbor, publicado pelo site Outras Palavras.
Temos em curso uma série de decisões importantes para a população brasileira que constantemente são influenciadas pela dinâmica econômica, sob a perspectiva da financeirização, da manutenção das muitas faces do capitalismo e da política neoliberal. Por isso é fundamental abrir caminhos para debates estruturantes. Estamos fomentando as discussões a respeito do andamento da votação no STF sobre a descriminalização do aborto? O que essa importante votação revela sobre a maturidade ética, moral e econômica da nossa sociedade? Vemos com otimismo o reavivamento dessa luta no maior tribunal do país, uma vez que indica avanço na pauta dos direitos das mulheres.
Não podemos perder o fôlego também na luta contra a ratificação do Acordo União Europeia-Mercosul. Nesse sentido, a Frente Brasileira Contra o Acordo UE-Mercosul divulgou o relançamento da Carta Aberta da Sociedade Civil do Cone Sul aos Governantes, Ministros/as e parlamentares dos Países do Mercosul. É preciso fortalecer a denúncia a respeito da falta de diálogo e transparência com a população regional, de modo particular com a população brasileira, que se encontra totalmente desinformada a respeito dos impactos que este Acordo pode trazer. Precisamos questionar a maneira com que a União Europeia está pressionando os países do Sul a assinar este Acordo. Precisamos afirmar com força o Não ao Acordo!
O Brasil tem papel importantíssimo na liderança política regional, ainda mais nesse momento em que se encontra na presidência do Mercosul. No entanto, essa influência precisa estar a serviço dos interesses dos povos. Por isso, também nos posicionamos contra uma nova intervenção militar no Haiti com participação do Exército Brasileiro, uma vez que já conhecemos o legado extremamente negativo da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) entre 2005 e 2017, comandada pelo Brasil, mais precisamente pelo general Augusto Heleno, que posteriormente foi ministro do governo Bolsonaro e é suspeito de envolvimento com os atos golpistas de 8 de janeiro.
Entre as lutas em andamento, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do MST chegou ao fim e se revelou como uma grande derrota da extrema-direita no Congresso Nacional, o que não é exatamente uma surpresa, uma vez que desde o início a iniciativa foi marcada pela total descredibilidade. A bandeira da reforma agrária segue hasteada!
Não devemos, não pagamos!
Somos os povos, os credores!