No mês que celebrou a luta e a resistência dos povos indígenas do Brasil, tentativas de negociar e “conciliar” direitos estremeceram a relação com poder público

Por Maiara Dourado – Assessoria de Comunicação do Cimi

Mais de nove mil indígenas marcham no quarto dia do 20º Acampamento Terra Livre. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Foram vários os acontecimentos que marcaram o mês que celebra a luta e a resistência dos povos indígenas do Brasil. O período de mobilização, conhecido como Abril Indígena, foi comemorado este ano, não só pelo aniversário de duas décadas do Acampamento Terra Livre (ATL), o maior encontro do movimento indígena do país, mas também pela reconstituição do Conselho Nacional de Políticas Indigenistas (CNPI), desativado em 2016, quando foi realizada sua última reunião.

Para Dinamam Tuxá, vice-presidente do CNPI e coordenador executivo da Articulação do Povos Indígenas do Brasil (Apib), a retomada do Conselho marca a “reconstrução de espaços de controle social, que orientarão não só [o trabalho] dos conselheiros, mas também do movimento indígena, que poderá incidir junto à pauta do governo em torno da temática dos povos indígenas. Sem esquecer do controle social feito pelo movimento indígena em suas instâncias de poder, como o próprio Acampamento Terra Livre”, considerou. 

Os povos indígenas monitoram de forma contínua a aplicação das políticas públicas destinada aos povos indígenas, sobretudo as que dizem respeito à demarcação de suas terras. Algumas semanas antes do início do Acampamento, delegações indígenas oriundas de diversas partes do país anteciparam sua vinda a Brasília para cobrar a regularização de suas terras e a inconstitucionalidade da Lei 14.701

As lideranças não queriam esperar o final do mês para ter notícias sobre o andamento dos processos de demarcação. A inquietação não era à toa, ela se fazia guiada pela promessa de campanha do presidente Lula de fazer progredir, em seu governo, as demarcações de terras indígenas, cujo avanço vem decaindo a cada novo abril. No último ano, o presidente Lula homologou apenas 8 das 14 terras indígenas prometidas durante a transição do governo, cujos processos encontravam-se prontos para homologação, última etapa do rito demarcatório, de responsabilidade da Presidência da República. 

Foto: Hellen Loures/Cimi

O anúncio desse ano foi ainda menor. Durante o evento de encerramento da 1ª reunião ordinária do CNPI, realizada no último dia 18, apenas duas terras indígenas tiveram seus processos homologados pelo presidente. A  expectativa era de que se demarcasse ao menos mais quatro terras das que restavam para fechar o conjunto das 14 prometidas em campanha. 

Na ocasião, Lula confirmou a homologação das Terras Indígenas (TI) Aldeia Velha, do povo Pataxó, na Bahia, e Cacique Fontoura, do povo Iny Karajá, no Mato Grosso. Os povos indígenas, contudo, também aguardavam que fossem homologadas  as terras Potiguara de Monte-Mor, na Paraíba; Xukuru-Kariri, em Alagoas; além de Morro dos Cavalos e Toldo Imbu, em Santa Catarina.

Homologações frustradas

A homologação das duas terras indígenas foi celebrada e considerada “um ganho para o movimento indígena”, mas segundo o coordenador da Apib, “não foi o esperado”. “A gente esperava que fossem [homologadas] as seis terras, conforme foi previamente anunciado, articulado, dialogado e construído pela nossa articulação. Isso não se concretizar gerou uma sensação de muita frustração e tristeza, tendo em vista que há um comprometimento do presidente Lula e do Poder Executivo com as demarcações das terras indígenas”, explicou Dinamam.

A frustração, contudo, não se deu apenas em razão do número reduzido de terras homologadas pelo governo federal. A forma escolhida pelo presidente para justificar o débito do feito também tem conturbado a já fragilizada estabilidade da relação com os povos indígenas.

“Eu sei que vocês estão com uma certa apreensão porque vocês imaginavam que teriam a notícia de seis terras indígenas assinadas por mim aqui. Eu fiz isso porque nós temos um problema e é melhor a gente tentar resolver o problema antes da gente assinar [as homologações]. Nós temos algumas terras que estão ocupadas, algumas por fazendeiros, outras por gente comum, possivelmente tão pobres quanto nós. E tem alguns governadores que pediram um tempo para saber como a gente vai tirar essas pessoas, porque eu não posso chegar lá com a polícia e ser violento com as pessoas que estão la”, argumentou Lula junto aos conselheiros indígenas presentes na reunião do CNPI. 

O diálogo e o tempo concedido aos governadores é compreendido por lideranças indígenas como uma forma de barganhar direitos que lhes são originários e garantidos pela Constituição Federal, além de demonstrar a disposição do governo em ceder à ala política e econômica do ruralismo. 

Cerca de 8 mil indígenas de várias partes do país caminharam em direção ao Congresso Nacional para pedir a inconstitucionalidade da Lei 14.701 e a demarcação de seus territórios. Foto: Verônica Holanda/Cimi

No último dia 12, em um evento anterior à reunião do CNPI, realizado em um frigorífico da JBS, em Campo Grande (MS), o presidente propôs “em sociedade” com o governador do estado do Mato Grosso do Sul, Eduardo Riedel, a compra de terras para “salvar aqueles Guarani que vivem perto de Dourados, na beira da estrada”. 

O ímpeto de salvação impresso no discurso do presidente Lula causou revolta e indignação dentre os povos indígenas do Mato Grosso do Sul e organizações aliadas. “Lula sabe que essa possibilidade [de compra de terras], além de ser explicitamente vedada pela Constituição, jamais será capaz de atender às necessidades básicas e essenciais dos Kaiowá e Guarani”, considerou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em nota publicada no último dia 15. 

Para a instituição, o presidente nega o sentido próprio da existência e da identidade dos povos indígenas e da relação de tradicionalidade que possuem com suas terras quando propõem a compra de terras não tradicionais para os Guarani e Kaiowá. 

“Ao contrário dos não indígenas e a lógica de propriedade da terra que tentam impor, os Guarani pertencem à terra, e não o contrário. Isso é um elemento constitutivo social que interliga povos indígenas do mundo todo”, afirma a nota. 

Sem negociação

Um dia após o início do ATL, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes surpreendeu os 9 mil indígenas acampados em Brasília com uma decisão que fez  endurecer, ainda mais, o tom dos povos com o poder público. 

Gilmar Mendes, no âmbito conjunto das Ações Diretas de Constitucionalidade (ADCs) e Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) relativas à Lei 14.701, determinou um processo de conciliação entre as partes envolvidas no debate sobre a demarcação de terras indígenas, em especial no que concerne à Lei do Marco Temporal. A lei institui o critério do marco temporal nos processos demarcatórios, tese já refutada pelo STF em setembro do ano passado no âmbito do julgamento do recurso extraordinário de repercussão geral. 

A decisão de Mendes ainda suspendeu todos os processos judiciais que tratam da inconstitucionalidade da lei. Contudo, deixou de suspender a eficácia da Lei durante a tramitação das ações, pedido mais importante apresentado nas ADIs.

Mais de nove mil indígenas marcham no quarto dia do 20º Acampamento Terra Livre. Foto: Hellen Loures/Cimi

Para os povos indígenas, a decisão é perigosa, pois coloca em negociação direitos com o objetivo de restringi-los. Em suas compreensões de mundo, a lógica para o direito territorial é simples: “a terra é mãe e mãe não se negocia”, não havendo espaço para “conciliação” que tente equilibrar direitos indígenas e interesses ruralistas.

A conciliação proposta pelo ministro relativiza a incompatibilidade da Lei 14.701 com as teses já fixadas pela Suprema Corte no julgamento de repercussão geral, uma vez que em sua decisão levanta pontos que indicam a inconstitucionalidade da lei, ao mesmo tempo que abre espaço para a negociação de uma norma que se apresenta inválida em sua forma e conteúdo. Além de afrontar a própria Constituição Federal, que não autoriza a negociação de direitos fundamentais, como são os direitos dos povos indígenas. 

Para juristas indígenas e indigenistas reunidos na plenária “Os desafios enfrentados pelos povos indígenas frente à aprovação da Lei do Marco Temporal”, realizada durante o ATL e um dia após a decisão do ministro, a medida é preocupante, pois denota um alinhamento entre os Poderes. 

“Não estranhamente logo após o pronunciamento do presidente Lula, quando ele demarcou somente duas terras indígenas, nós temos o Gilmar Mendes dando essa decisão. É extremamente preocupante observar que todos os Poderes que tecnicamente estão em um processo de disputa estão muito mais alinhados do que parece, em uma tentativa absurda de retirar e fragilizar os direitos indígenas”, questiona Kari Guajajara, advogada e assessora jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

Cerca de 8 mil indígenas de várias partes do país caminharam em direção ao Congresso Nacional para pedir a inconstitucionalidade da Lei 14.701 e a demarcação de seus territórios. Foto: Verônica Holanda/Cimi

Para o procurador da República Felício Pontes, que também esteve presente na plenária, a conciliação proposta pelo STF é  “um ponto dessa decisão que precisa ser debatido com urgência”, considera. “Ele [Gilmar Mendes] determinou uma mesa de conciliação em um prazo de 30 dias. O que eu fico a me perguntar aqui é como se concilia direitos fundamentais. Como se concilia o direito ao território? Há coisas que não são conciliáveis. A gente tem que dizer não a essa conciliação”, afirmou o procurador.

Mas essa não é a primeira vez que o ministro propõe medida parecida. Em 2021, Gilmar Mendes protagonizou um processo de conciliação que buscava cortar no meio a TI Apyterewa, do povo Parakanã, o que poderia reduzir sua área em mais de 50%. A medida buscava um meio termo para a desintrusão de cerca de três mil não indígenas que ocupavam ilegalmente Apyterewa. A pressão gerada em torno do caso, contudo, fez o ministro voltar atrás e desistir do processo de conciliação.

“Isso porque constitucionalmente não era possível conciliação, pois o direito territorial dos povos indígenas é indisponível”, do qual não se pode abrir mão, explicou Rafael Modesto, advogado e assessor jurídico do Cimi. 

Para Rafael, a decisão recente “é aparentemente uma manobra política do ministro para travar o andamento de procedimentos administrativos face à possível suspensão da Lei 14.701 no âmbito das ADIs. Então, ele se omite em declarar ou suspender a lei por inconstitucionalidade”, considerou o advogado.

A decisão, cuja conciliação foi proposta pelo ministro Gilmar Mendes, entrou na madrugada desta sexta (03) em plenário virtual para validação dos demais ministros da Corte. Porém, em virtude do destaque feito pelo ministro Luis Roberto Barroso, o julgamento foi interrompido e será retomado em plenário físico, ainda sem data definida.

Outras ações

Três dias antes da decisão do ministro Gilmar Mendes, o STF decidiu, em votação plenária e por unanimidade, por manter a suspensão do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), que tem a mesma base jurídica que a Lei 14.701, fundamentada na tese do marco temporal. 

A decisão se aplica apenas ao território do povo Xokleng, em Santa Catarina. Outra decisão anterior da Suprema Corte, em 2020, já havia suspendido o parecer para todos os processos de demarcação de terras indígenas.

Deixe um comentário