Decisão judicial favorável à ampliação do território é ignorada há mais de dez anos

*Por Bruno Soares

Estimativa é que cerca de 900 pessoas vivam de forma precária nas aldeias alvo de processos de reintegração de posse movidos por Itaipu – Fotos Públicas

Cerca de 180 famílias indígenas do povo Avá Guarani resistem no extremo oeste do Paraná à condição de insegurança alimentar devido à desassistência direta por parte da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Distribuídas de maneira irregular em uma faixa de terra de propriedade da Usina Hidrelétrica de Itaipu, situada entre os municípios de Santa Helena e Itaipulândia, sete ocupações sintetizam o conflito indígena que tem como principal responsável a usina “líder mundial na geração de energia limpa e renovável”.

“Quando não estamos em uma terra demarcada, não podemos construir nossa casa. Além de não termos acesso a serviços básicos como saneamento, saúde e educação, ainda somos proibidos legalmente de recebermos apoio institucional de prefeituras, demais órgãos, e da própria Itaipu. Se a Funai não envia alimento, muita gente passa dificuldade e fica sem ter o que comer”, conta o cacique Natalino Almeida, líder da Tekoha ITy Mirin, em Itaipulândia, a 73 quilômetros de Foz do Iguaçu.

O cacique faz parte do grupo de lideranças Avá Guarani que figuram como réus em ao menos cinco processos de reintegração de posse movidos por Itaipu contra o povo originário Avá Guarani na região.

Sem comida

No município de Santa Helena, o cacique Lino Cesar, da Tekoha Tape Jere, conta que não sabe dizer à sua comunidade quando chegarão as cestas básicas tão aguardadas pela aldeia. “Estamos sem expectativa. Faço parte do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e acompanho que esta situação não é apenas com o povo Avá Guarani. Não está nada fácil e parece que vai demorar para melhorar”, comenta.

Lino afirma que a falta de alimento para aldeias não demarcadas é recorrente no extremo oeste do Paraná e que a solução deveria ser “o cumprimento da própria lei”. “Entra governo, sai governo e a gente continua aqui. Enquanto a lei não é cumprida como se deve, a gente ainda continua aqui. Queremos a ampliação das nossas terras e a assistência que o povo indígena merece. Só queremos o que é nosso de direito”, reforça.

Sem terra

Os indígenas Avá Guarani expulsos de seus territórios originais quando da construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, em 1973, esperam há mais de 10 anos pela ampliação da Reserva Ocoy e pela demarcação de terras em Santa Helena e Itaipulândia. Em julho de 2017, a Justiça Federal de Foz do Iguaçu determinou à Funai que concluísse os procedimentos necessários em dois anos.

Terminado o prazo, o início dos trabalhos foi ignorado durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PSL) com a expectativa de ser retomado a partir do governo do presidente Lula, por meio de ações entre o Ministério dos Povos Indígenas e a Itaipu.

A estimativa é que cerca de 900 pessoas vivam de forma precária nas aldeias alvo de processos de reintegração de posse movidos por Itaipu. A maior parte dos indígenas veio das três reservas legais compradas pela usina e pela Funai, situadas nos municípios de São Miguel do Iguaçu e Diamante D`Oeste.

Desmonte

Paralelo à preocupação em torno da fome vivenciada pelas famílias Avá Guarani, lideranças indígenas da região também estão atentas ao desmonte do Ministério dos Povos Indígenas e à recém aprovação do Marco Temporal, ambos na Câmara dos Deputados.

“Isso nos trouxe muita preocupação. A sociedade brasileira precisa entender que o Marco Temporal representa o extermínio do povo indígena. Essas pessoas que ocupam cargos de poder não se preocupam com a vida das pessoas. Pra eles, o importante é o dinheiro. O resto, é resto”, critica o cacique Natalino, ao destacar a influência do agronegócio nas decisões políticas do país.

Marco temporal

Dos 30 deputados federais paranaenses, 20 foram favoráveis à aprovação do Marco Temporal, que na prática pretende acabar com a demarcação de novas terras indígenas no Brasil. Caso a lei seja promulgada, os povos indígenas terão apenas o direito de ocupar territórios que já ocupavam ou disputavam até 5 de outubro de 1988 – data da promulgação da Constituição.

Conforme o texto, a nova norma irá proibir a ampliação de terras já demarcadas, a adequação de projetos de demarcação já iniciados e irá invalidar demarcações que não atenderem às regras do projeto. Aprovado na Câmara dos Deputados por 238 votos a favor e 155 contra, o Marco Temporal segue para ser analisado pelo Senado.

Para a missionária indigenista Marina Oliveira, a aprovação do Marco Temporal representará mais um crime de genocídio contra os povos indígenas no Brasil. “Caso aprovado no Senado, o Supremo Tribunal Federal precisa dizer não e garantir que a Constituição Brasileira de 1988 seja cumprida. A constituição é clara ao dizer que as terras indígenas devem ser demarcadas conforme o uso, os costumes, as tradições e, inclusive, em respeito às questões imemoriais dos povos”, detalha a mestre pelo programa Interdisciplinar em Estudos Latino Americanos da Universidade Federal da Integração Latino Americana.

A indigenista aponta a contradição do Marco Temporal ao mencionar violências perpetradas por órgãos públicos em razão da construção de Itaipu. “O povo Avá Guarani não estava em 1988 nas áreas que estão ocupadas atualmente justamente porque Itaipu alagou suas terras, a Funai nunca regularizou o que precisava, o INCRA [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] concedeu títulos de terras para os não indígenas, entre outras violações já definitivamente comprovadas. O STF precisa barrar o Marco Temporal para não termos um genocídio indígena muito maior em todo país e com sérias consequências aos indígenas no oeste do Paraná”, finalizou.

Respostas oficiais

Por meio de sua assessoria, a Usina de Itaipu pontuou que “no momento, está em fase de estruturação, pelo Ministério dos Povos Indígenas, a criação de um Grupo de Trabalho (GT) a ser constituído por representantes do MPI, da Itaipu, lideranças indígenas da região e outras instituições para tratar de temas afeitos às questões do povo avá-guarani na região”.

O Ministério dos Povos Indígenas enviou uma nota, que reproduzimos na íntegra, abaixo:

“Após as eleições foi constituído o GT de transição do Governo Federal, que incluía a pauta indígena no âmbito nacional e elencou diversas urgências e emergências à nova gestão eleita. Por se tratar de um ministério novo, o Ministério dos Povos Indígenas está se estruturando para atuar na defesa dos direitos dos povos indígenas e, dentre as prioridades elencadas foi destacada a grave situação dos povos indígenas no oeste do Paraná, devido aos impactos da construção da usina hidrelétrica de Itaipu, que impactou os povos e territórios daquela região.

Nos 100 primeiros dias de Governo, como uma de suas primeiras ações, o Ministério dos Povos Indígenas promoveu a ida de uma comitiva que esteve in loco para dialogar com as comunidades indígenas, acerca das graves violações de direitos na região. Na ocasião foi traçado um plano de ação para garantir assistência às comunidades indígenas dali. Sendo assim, está sendo finalizado um grupo de trabalho interministerial que contará com representantes de diversos ministérios, além de representantes da usina hidrelétrica Itaipu, com o objetivo de implementar ações de reparação aos povos do oeste do Paraná, incluindo a efetivação dos direitos territoriais e a assistência às necessidades básicas, como alimentação.

Por fim, sobre a atuação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas – Funai, a mesma está em processo de reestruturação, dado que na gestão anterior teve boa parte de sua atuação paralisada, inclusive com a supressão de recursos orçamentários que levaram à falta de assistência a estes povos. Atualmente Funai e MPI trabalham em conjunto com outras pastas para garantir formas de prestar a devida assistência a estes e outros povos.”

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