Por Instituto Humanistas Unisinos
“Como observa Francisco, ‘Os pobres são também mestres privilegiados do nosso conhecimento de Deus; a sua fragilidade e simplicidade desmascaram os nossos egoísmos, as nossas falsas seguranças, as nossas pretensões de auto-suficiência e nos guiam à experiência da proximidade e da ternura de Deus, a receber na nossa vida o seu amor, a sua misericórdia de Pai que, com discrição e paciente confiança, cuida de nós, de todos nós.'”


A Stranger and You Welcomed Me: A calll to
mercy and solidary with migrants and refugees
Papa Francisco, organizado por Robert Ellsberg
144 páginas; Publicado pela Orbis Books

O texto abaixo, de Robert Ellsberg, é publicado por National Catholic Reporter, 10-10-2018. A tradução é de Luisa Flores Somavilla.
Nota do editor: Este trecho foi adaptado da introdução do livro A Stranger and You Welcomed Me: A Call to Mercy and Solidarity with Migrants and Refugees, organizado por Robert Ellsberg, redator-chefe e editor da Orbis Books.

Eis o texto.

Papa Francisco deixou clara sua preocupação com a situação dos migrantes e refugiados em sua primeira viagem para fora de Roma, apenas alguns meses após ser eleito Papa. Na ilha italiana de Lampedusa, uma porta de entrada para muitos refugiados em direção à Europa, ele celebrou a missa e homenageou as milhares de pessoas que morreram no mar. O destino deles, afirmou, nos confronta com a mesma pergunta que Deus fez a Caim: “Onde está seu irmão?”
Nessa ocasião, o Papa pôde apresentar uma das suas preocupações mais características: a “globalização da indiferença”, que dificulta que reconheçamos nossos irmãos e irmãs. “A cultura do conforto, que nos leva a pensar em nós mesmos, nos torna insensíveis ao grito dos outros, nos faz viver em bolhas de sabão, que são belas, mas são desprovidas de substância. (…) Nós nos habituamos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é da nossa conta. ”
E para o Papa a questão não é apenas a situação das pessoas indefesas, forçadas a lutar contra os traficantes sem coração e os perigos de uma viagem que fez do Mar Mediterrâneo “um grande cemitério”, cujo sangue chama por Deus. É fundamentalmente uma questão que Deus coloca para o resto de nós, especialmente para os cristãos: Onde estamos? Quem somos nós? As lágrimas dos migrantes e refugiadosencontram uma contrapartida incriminatória na nossa falta de lágrimas: “Algum de nós já chorou por causa desta situação e de outras semelhantes? (…) Alguém chorou hoje pelo nosso mundo?”
A pergunta subjaz as homilias, discursos, orações e documentos compilados neste volume. O Papa não traz histórias coloridas ou anedotas memoráveis. Não apresenta fatos ou estatísticas nem propõe medidas ou políticas específicas para reforma. Seu objetivo é despertar o espírito de misericórdia e solidariedade, na esperança de que inspire alguma resposta de nossa parte – seja como indivíduos, comunidades ou nações. No fundo, ele propõe uma única e simples mensagem, repetida em centenas de modos diferentes: os imigrantes e refugiados são seres humanos, preciosos aos olhos de Deus; são nossos irmãos e irmãs; são dignos de respeito; o que fazemos por eles fazemos diretamente para Cristo.
É preciso um livro inteiro para uma mensagem tão simples? Pode-se também perguntar a Francisco por que ele acha necessário repetir esta mensagem em tantos momentos e de tantas formas. Ele sempre retorna a este tema, seja em visitas a campos de refugiados no Oriente Médio, pregando na cidade da fronteira do México de Ciudad Juárez ou numa sessão conjunta com o Congresso dos Estados Unidos.
Em diversas oportunidades, ele apoia suas preocupações em textos simples das Escrituras: o reiterado mandamento de “acolher o estranho”, a ideia de que “vocês próprios eram estranhos na terra do Egito” (Êxodo 22:21); as palavras de Jesus, “eu era estrangeiro e o senhor me recebeu” (Mateus 25:36); e acima de tudo, de que a própria Sagrada família, na fuga para o Egito, compartilhou a experiência dos refugiados de hoje em dia. Claramente, para Francisco, nossa resposta ao desafio colocado pelos imigrantes e refugiados não é simplesmente outro problema político ou econômico, mas um profundo teste da fé cristã.
Falando para o público global, o Papa não tratou de questões específicas dos Estados Unidos, no geral. (Uma notável exceção ocorreu durante uma entrevista a bordo de um avião em 2016, quando foi questionado sobre a promessa do candidato Donald Trump de construir um muro na fronteira com o México: “Uma pessoa que só pensa em construir muros, onde quer que sejam, e não construir pontes, não é cristã. Isto não é o Evangelho.”) No entanto, enquanto o Papa considera a questão dos migrantes e refugiados como um item decisivo em sua pauta, parece que ele encontrou o oposto no atual presidente dos Estados Unidos.
Donald J. Trump literalmente começou a campanha presidencial em junho de 2015 com uma conferência de imprensa, na Trump Tower, em que atacava o impacto dos imigrantes mexicanos: “Quando o México envia seu povo, não estão enviando o que há de melhor. Estão enviando pessoas com muitos problemas… Estão trazendo drogas. Estão trazendo o crime. Eles são estupradores. E alguns, presumo, são pessoas boas.”
Os supostos perigos da “imigração clandestina” inspiraram a promessa do mantra da campanha de “construir o muro”. Ele consistentemente mistura os limites entre os imigrantes em geral e membros violentos de gangues que ele adora chamar de “animais”.
Ainda mais controverso é que, tratando todos os imigrantes como criminosos, inclusive os que formalizaram o pedido de asilo, sua administração implementou uma política de separação de crianças dos pais — até mesmo bebês e crianças muito pequenas — quando eram apreendidos na fronteira. Diante do protesto generalizado, supostamente esta política foi revogada, mas outras crueldades continuam acontecendo. Enquanto isso, sua administração conseguiu reduzir a admissão de refugiados aos Estados Unidos em mais de 70%.
Em seu discurso ao Congresso em 2015 — muito antes de o problema chegar ao ponto de ebulição —, o Papa Francisco falou que os Estados Unidos eram como uma terra de sonhos, “sonhos que despertam o que há de mais profundo e verdadeiro na vida de um povo”. Falou especificamente sobre os “milhões de pessoas que chegaram a esta terra em busca de seu sonho de construir um futuro de liberdade”. Como filho de imigrantes, ressaltou que muitos no público (se não todos), também eram descendentes de imigrantes. “Por aqueles povos e suas nações”, disse, “desejo reafirmar minha mais alta estima e consideração”. Embora reconheça que muitos desses imigrantes encontraram hostilidade e violenta oposição, insistiu que “quando o estrangeiro no nosso meio nos interpela, não devemos repetir os pecados e os erros do passado. … Construir uma nação pede-nos para reconhecer que devemos constantemente relacionar-nos uns com os outros, rejeitando uma mentalidade de hostilidade para adotar uma subsidiariedade recíproca, em um esforço constante de contribuir com o melhor de nós. Tenho confiança que o conseguiremos.”
A uma distância de três anos, a confiança do Papa na capacidade dos americanos de abraçar os melhores anjos de sua história pode parecer ingênua. A cada semana que se passa, as políticas oficiais e a retórica que a acompanha parecem criar novos padrões de crueldade e divisão, como se negar explicitamente o pedido do Papa por misericórdia e solidariedade fossem pré-requisito para os Estados Unidos serem grandes novamente.
Não se sabe se algum coração ou alguma mente vai se modificar com a mensagem tanto repetida pelo Papa. No entanto, ele pede que nos lembremos que nem só os imigrantes refugiados são vítimas da nossa crueldade. Aqueles de nós que fazem vista grossa, que dizem a si mesmos que isso “não nos interessa, não é da nossa conta”, também perdem.
Como observa Francisco, “Os pobres são também mestres privilegiados do nosso conhecimento de Deus; a sua fragilidade e simplicidade desmascaram os nossos egoísmos, as nossas falsas seguranças, as nossas pretensões de auto-suficiência e nos guiam à experiência da proximidade e da ternura de Deus, a receber na nossa vida o seu amor, a sua misericórdia de Pai que, com discrição e paciente confiança, cuida de nós, de todos nós.”
O título deste volume, A Stranger and You Welcomed Me, faz referência à passagem de Mateus e nos lembra que é Ele quem caminha entre nós na forma dos pobres e necessitados. “Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me (…) Quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.” Nossa própria salvação está associada a este teste. Mas é o seguinte verso, e o destino dos necessitados, que deve ressoar em nossos ouvidos: “Quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.”
Se nesta “cultura de conforto” perdemos nossos limites, talvez o estrangeiro no meio de nós possa estar nos chamando para casa.

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