Há um abismo conceitual entre o discurso do presidente em prol dos direitos indígenas e a posição técnico-jurídica da Advocacia-Geral da União do próprio governo Lula

Manifestações no ATL 2023. Foto: Verônica Holanda/Cimi

Por Cleber César Buzatto, do CIMI Regional Sul, organização membro do Jubileu Sul Brasil

Finalizado o Acampamento Terra Livre (ATL) 2023, no dia 28 de abril, ocasião em que o presidente Lula, presente no evento, assinou, dentre outros atos administrativos, meia dúzia de decretos de homologação de terras indígenas e manifestou publicamente a intenção de demarcar o maior número possível de terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários, é urgente que o governo federal unifique a posição favorável aos povos indígenas, expressa pelo presidente da República, em seus diferentes setores e espaços de atuação.

Sobretudo, neste momento, urge a alteração do posicionamento da Advocacia-Geral da União (AGU) naquele que é o principal e mais importante processo judicial relativo ao direito fundiário desses povos, o Recurso Extraordinário 1.017.365. Com caráter de repercussão geral, o reinício do julgamento pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) está previsto para ocorrer no dia 7 de junho próximo.

Indígenas participaram do Acampamento Terra Livre 2023. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Indígenas participaram do Acampamento Terra Livre 2023. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Desde o início do julgamento do caso, em agosto de 2021, em pleno governo Bolsonaro, a AGU defende a tese reducionista, inconstitucional e anti-indígena do famigerado marco temporal. Passaram-se quatro meses do início do governo Lula sem que tenha havido qualquer alteração da posição da AGU no bojo do Recurso Extraordinário em questão e sequer a revogação do Parecer 001/17 da mesma AGU, que obriga toda a administração pública direta e indireta aplicar a tese do marco temporal.

Mostra-se flagrante, portanto, a existência de um verdadeiro abismo conceitual entre o discurso público do presidente Lula em prol do direito dos povos às suas terras e a manifestação técnico-jurídica da AGU do próprio governo Lula, que vai na direção ontologicamente contrária à do atual presidente da República. Em síntese, enquanto Lula prega e defende política e publicamente a demarcação das terras, a posição da AGU do seu governo inviabiliza, frontal e estruturalmente, a implementação desse direito fundamental dos povos originários do Brasil.

A adequação da posição da AGU à altura do que tem defendido o atual presidente da República, ou seja, a inconstitucionalidade do marco temporal, é urgente e tem prazo exíguo para ser colocada em prática: precisa ser feita antes do reinício do julgamento acima referido, sob risco de perder o prazo e referendar, como posição oficial do atual governo, uma postura contrária aos direitos indígenas no mais importante debate sobre o tema desde a Constituinte.

A responsabilidade técnica por tal alteração de posicionamento no bojo do processo judicial mencionado é da AGU. No entanto, a responsabilidade política, caso isso não ocorra, em última instância, seria do próprio presidente Lula.

Mais de cinco mil indígenas participaram da marcha do ATL 2023, em manifestação em defesa dos direitos indígenas e contra a tese do marco temporal. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Sendo assim, a inimaginável hipótese da não harmonização da posição da AGU à de Lula nessa disputa judicial emblemática e estruturante para todos os povos indígenas do Brasil teria, necessariamente, o condão de arrastar o discurso político do atual presidente à vala das práticas imundas e anti-indígenas aberta pelo seu antecessor.

Lula precisa estar atento e agir com brevidade e firmeza frente a essa situação, caso queira manter a coerência e o compromisso tão esperados pelos povos indígenas e seus aliados no Brasil e no mundo.

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