1- Contexto geral
Nos últimos trinta anos, a América Latina tem experimentado uma transição democrática. Na década de oitenta, finaliza o ciclo das ditaduras militares ou cívico-militares – governos de exceção – que foram a forma das oligarquias e do imperialismo dos EUA de governar nossos países. Um processo de redemocratização dos regimes políticos foi iniciado.
Na década de noventa, estava em curso um ciclo de direito eleitoral à democracia, mas apenas favorecia a disputa política dentro do mesmo projeto. Embora pudesse mudar as cores do partido no poder – na realidade ocorreram alguns progressos para garantir o direito ao voto – isso não significou uma mudança de proposta econômica/social.
Neste momento, a ascensão do neoliberalismo enfraquecia qualquer modelo de democracia alargada que se pretendia construir. Isto mostrava a incapacidade dos Estados de poder ampliar e garantir o acesso aos direitos humanos a toda população, sendo este um elemento substancial para a coesão social, a participação e o sentido de propriedade do Estado pela população.
Apesar destas restrições, houve progressos políticos e em vários países foram se instalaram governos progressistas e de mudança nos anos 2000. No entanto, uma sequência de golpes de Estado mostrou que, definitivamente, os poderes fáticos nacionais e internacionais nunca aceitaram as mudanças populares e estiveram sempre à espreita para recuperar o poder.
O imperialismo continuou seu esforço para substituir os governos progressistas e colocar no poder seus “legítimos representantes” capazes de “administrar” os recursos de mais-valia social (impostos) em favor de seus interesses. Trata-se de um método do imperialismo para impor suas políticas corroendo os processos progressistas e fortalecendo os representantes das elites de poder econômico nos processos eleitorais.
Esses golpes de Estado que mudaram os governos foram registrados em países como Haiti, em 2004; Honduras, 2009; Paraguai, 2012, e no Brasil, 2016. Da mesma forma foram realizados processos de desestabilização na Venezuela, um golpe de Estado, que durou menos de 48 horas, seguido de sabotagem petroleira, em 2002; na Bolívia, 2008 ;e no Equador, 2010.
Os governos desses países adotaram posições anti-imperialistas que questionavam a hegemonia dos EUA na região, avaliando processos de integração regional e alianças com outras nações fora dos Estados Unidos. Uma das ações de Jean Bertrand Aristide, por exemplo, foi exigir que a França pagasse 21 bilhões de dólares roubados pelo governo francês do Haiti entre 1825 e 1885, além de restabelecer as relações diplomáticas com Cuba e Venezuela. Por outro lado, o Brasil começou, em 2003, um esforço para democratizar a governança global através do G20, BRICS, IBAS, e contribuir com outras formas de integração (Mercosul, Unasul, CELAC), que, embora com limites, questionava o poder norte-americano a nível mundial, especialmente na América Latina e no Caribe. Não é por acaso que uma das primeiras ações do governo golpista de Michel Temer (2016), através do seu ministro de Relações Exteriores, José Serra, foi reunir-se com o chanceler do Paraguai e o presidente da Argentina, Mauricio Macri, afirmando a necessidade de “desideologizar” o Mercosul, isto é, remover completamente o seu conteúdo político progressista.
2- Processos baseados no autoritarismo: um atentado à soberania popular
As deficiências desses processos democráticos decorrem da vulnerabilidade de suas instituições diante dos poderes fáticos, das pressões do capital corporativo e das multinacionais, bem como as manipulações da opinião pública pela mídia corporativa.
Em todos estes países os meios de comunicação têm atuado como articuladores de golpes através da desinformação, ignorando os processos de resistência popular e contribuindo com o estabelecimento da hegemonia capitalista, incentivando manifestações golpistas e legitimando ataques à democracia. Em muitas ocasiões, usam o discurso do combate à corrupção para justificar os ataques contra as instituições democráticas em países como o que aconteceu, por exemplo, no Paraguai e no Brasil.
3- Regressões antidemocráticas
No contexto onde tem havido retrocessos antidemocráticos, vimos como são agredidos os direitos sociais, civis e culturais das grandes maiorias, como as mulheres, atacando a sua autonomia e liberdades. Mesmo onde as mulheres foram ou são líderes de processos políticos – Argentina, Chile e Brasil – grande parte da campanha política e midiática das forças conservadoras se desenvolveram com uma virulência misógina, patriarcal e machista, questionando o papel das mulheres na política.
As regressões antidemocráticas são precedidas e acompanhadas da criminalização dos movimentos sociais que resistiram às políticas neoliberais e medidas antipopulares e contra a democracia. O ataque conservador não é dado apenas contra as instituições da democracia representativa, mas, acima de tudo, para evitar que as organizações populares possam exercer um papel de liderança na luta pela hegemonia dentro do país.
Estas regressões, portanto, asseguram a obtenção dos lucros da burguesia e diminuem significativamente os direitos da população, como o emprego, com as condições laborais precárias, a redução de salários, as privatizações, os cortes nos serviços públicos e o declínio do investimento social. Tais retrocessos, longe de universalizar os direitos fundamentais para as pessoas, universalizam os mecanismos de opressão e injustiça.
4- Território e os bens naturais: uma ameaça à soberania popular
A soberania dos povos sobre seus territórios está ameaçada. Um dos elementos centrais é o avanço da militarização que, entre outros, usa como pretexto o combate ao narcotráfico. Esta disputa é intensificada como resultado da sua transformação em plataformas para a acumulação de capital. Os bens naturais são mercantilizados e privatizados em um processo que viola o exercício do direito à justiça ambiental. A gestão do território em busca de altas taxas de lucro leva à destruição dos meios de subsistência e soberania dos povos.
Venezuela e Brasil são dois exemplos dessa disputa no nosso continente. A Venezuela tem a maior reserva de petróleo do mundo e é um dos dez maiores produtores. Para ter controle sobre ele, o imperialismo norte-americano financia grupos de oposição interna e exerce pressão política internacional ao afirmar que o governo da Venezuela não respeita os direitos humanos, entre outras agressões.
Não é por acaso que no Brasil a grande ofensiva dos meios de comunicação e da direita é justamente sobre a questão do petróleo. A empresa Petrobras, a partir de denúncias de corrupção (que a mídia tem chamado de “Petrolão”), passa por uma intensa campanha de desmoralização para justificar sua privatização. Consumado isso, ações estratégicas da empresa, como a exploração do pré-sal, que levou o Brasil a ter uma das maiores reservas de petróleo do mundo, não estaria sob os interesses nacionais, e sim aos do mercado.
5- Aprofundar a democracia para garantir a soberania de nossos povos
Os processos de desestabilização de governos progressistas em nosso continente são produzidos em um contexto em que, aparentemente, o poder militar não tem a capacidade de exercer o controle sobre as populações, sendo este o papel dos sistemas de justiça que assumiram o papel de principal agente antidemocrático.
Não haverá uma verdadeira democracia se todos os setores sociais e posições políticas não tiverem condições minimamente justas de expor seus pontos de vista no debate político e defendê-los nos processos eleitorais. É necessário realizar profundas reformas para evitar a captura da política pelos interesses das minorias que dominam a economia e as riqueza em nossos países.
Para esta construção, é importante reconhecer os processos cumulativos que também abriram portas para experiências de democratização como os caminhos constituintes tomados em países como a Bolívia, Venezuela e Equador, onde o povo organizado construiu um novo contexto jurídico para ordenar as forças em tensões criativas que impulsionaram as transformações políticas e sociais. Além disso, é necessário reconhecer que os movimentos populares e as redes internacionais que participaram em articulações e espaços de encontro regional progrediram em debates e lógicas de construção democratizadoras com mecanismos inovadores que impulsionaram novas relações entre os diferentes atores políticos e sociais.
* Este texto é parte integrante dos documentos da Jornada Continental pela Democracia e contra o neoliberalismo – 10 anos do não à ALCA.

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