
Entenda os impactos da hidrelétrica e a luta por reparação territorial e cultural. “Reparação vai além da restituição de terras”, diz cacique Oscar Benites
Por Flaviana Serafim – Jubileu Sul Brasil
Em 5 de maio de 2025, a Usina Hidrelétrica de Itaipu completou 50 anos desde o início de sua construção e 41 anos de operação. Com uma capacidade instalada de 14.000 megawatts (MW), a usina possui 20 unidades geradoras de 700 MW cada. Em 2024, a produção alcançou 67 milhões de megawatts-hora (MWh).
Resultado de uma parceria firmada durante as ditaduras civil-militares no Brasil e no Paraguai, Itaipu é um dos maiores empreendimentos hidrelétricos do mundo. O reservatório da usina inundou terras férteis, totalizando 780 km² no lado brasileiro e 570 km² no lado paraguaio. Esse alagamento forçado resultou na remoção de mais de 42 mil pessoas, incluindo comunidades indígenas e agricultores, gerando conflitos sociais e violações de direitos humanos.
Os impactos ambientais, sociais e humanos são incalculáveis, gerando uma dívida socioecológica que ainda não foi paga. O povo Avá-Guarani Paranaense, dos dois lados da fronteira, é o maior credor dessa dívida e há décadas luta por reparações.

Somente em março de 2025, os indígenas do lado brasileiro viram os primeiros passos de uma reparação concreta, com o anúncio de que a Itaipu Binacional destinaria R$ 240 milhões para a compra emergencial de 3 mil hectares na região da hidrelétrica para comunidades das Terras Indígenas Tekoha Guasu Guavirá e Tekoha Guasu Okoy Jakutinga, no Oeste do Paraná.
Na região, a luta por demarcação enfrenta violência crescente, com ataques por fazendeiros e capangas que roubam, furtam, queimam, monitoram com drones, despejam agrotóxicos e tiram a vida de indígenas e de animais das aldeias.
O acordo homologado pelo Supremo Tribunal Federal é parte da resolução parcial de uma ação que tramita na Câmara de Mediação e Conciliação da Administração Pública Federal e da Ação Cível Originária (ACO) 3.555/DF, que tramita no STF em razão das ações e omissões da União, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Itaipu Binacional durante a construção da usina.
Perdas, danos e reparações
Os Avá-Guarani Paranaense reivindicam reparação pelas transferências forçadas, expulsão sem consentimento, usurpação de território e destruição de laços comunitários, o que gerou conflitos internos, incerteza, desolação, fome, doença, tristeza e morte.
Sob as toneladas de ferro e concreto, represadas em 29 bilhões de m³ de água que inundaram 150 mil hectares (mais de 210 mil campos de futebol), submergiram memórias e tradições, terras e territórios, florestas e fauna, afetando todas as esferas da vida tradicional dos Avá-Guarani paranaense. 600km² de florestas e 800km² de terras agrícolas ficaram embaixo d’água e desapareceu o Salto da Sete Quedas, a maior cachoeira existente no planeta em volume de água.

As indenizações pagas a partir de 1981 foram irrisórias, impossibilitando que as famílias atingidas comprassem terras no oeste paranaense. Parte das terras não foi inundada e hoje abriga lavouras de soja do agronegócio ou reservas biológicas administradas por Itaipu.
Em 2024, a usina teve um lucro líquido de US$ 442,9 milhões (cerca de R$ 2,39 bilhões), um crescimento de mais de três vezes em relação a 2023. No primeiro semestre do mesmo ano, a binacional repassou R$ 701 milhões em royalties ao Brasil, pagos a 347 municípios, seis estados e a União. Às comunidades indígenas, nenhum centavo.
O cacique Oscar Benites, da Aldeia Yva Renda, em Santa Helena (PR), afirmou:
“Historicamente, das Cataratas do Iguaçu até Guaíra nós Avá-Guarani perdemos 50 mil hectares, e na conciliação pelo STF conseguimos 3 mil hectares que dividimos em duas áreas porque aqui tem dez aldeias retomadas, que começaram de Iguaçu até Ocoy-Jacutinga. Nosso costume antigo e até hoje, a terra sempre foi comunitária.” Benites destacou a necessidade de infraestrutura nas áreas adquiridas:
“Se a área for comprada, é preciso que tenha habitação, escola e posto de saúde indígenas e saneamento básico. Porque, se for só comprar a terra e nos mandar embora daqui, e a água? E a saúde? Como vamos nos defender se aparecer alguma doença? Tem que colocar uma sustentabilidade para o povo.”
Ele também ressaltou que a reparação vai além da restituição de terras.

“A reparação não é só alimentação, remédio, mas tem muitas coisas mais que têm que ser devolvidas e isso vai levar muita luta também porque não é só isso que nós perdemos. Perdemos nossa cultura Avá-Guarani, organização, costumes, nossa terra, remédios, o rio.”
Articulador da Rede Jubileu Sul Brasil, Francisco Vladimir chamou atenção para o endividamento histórico causado pela destruição à natureza e à vida:
“Há 25 anos, o Jubileu Sul Brasil vem denunciando esse sistema que vivenciamos no nosso cotidiano. Ouvir campesinas e campesinos, povos indígenas denunciando que a hidrelétrica de Itaipu vem afetando a vida, é onde temos que estar e exigir reparações. Queremos que os governos brasileiro e paraguaio tomem consciência de que Itaipu Binacional tem causado mazelas na vida do povo.”
Colonialismo e ditaduras
O embate dos Avá-Guarani por reparações pautou debates no 5º Fórum Social e Popular da Tríplice Fronteira, realizado em abril, em Ciudad del Este, no Paraguai. O encontro discutiu questões comuns que afetam as populações fronteiriças, como extração de terras e energia; ditadura, dívida e memória; violência contra comunidades indígenas, rurais e violações de direitos humanos.
Além de Francisco Vladimir e Beverly Keene, a delegação do Cone Sul teve a presença da assessora da Frente Guasú Mercedes Canese, e do jornalista Rubén Penayo, ambos da Campanha Itaipu Causa Nacional.
Pressões ecológicas, desmatamento, violência extrema, exploração de mão de obra indígena e semiescravidão marcam a colonização dos Avá-Guarani mesmo antes da construção da hidrelétrica. De acordo com relatório da Comissão Estadual da Verdade do Paraná, os crimes contra os Avá-Guarani ocorrem na região Oeste do Paraná desde o início do século XX. Na década de 1940, houve um massacre com a invasão de terras ancestrais pelos brancos, expulsão e assassinato de indígenas que eram mortos e jogados nas cataratas do Iguaçu.

Após o golpe militar de 1964 no Brasil, a situação se agravou com as restrições de uso na região fronteiriça e mudanças na política indigenista do Estado. O primeiro diretor-geral de Itaipu foi o general José Costa Cavalcanti, ligado à “linha dura” do regime, responsável por medidas preliminares à construção da usina, como a desapropriação e aquisição de terras.
Na época, os direitos das comunidades originárias foram desrespeitados, pois, para a política indigenista do Estado, os Avá-Guarani eram considerados “índios integrados” e, portanto, não necessitavam ser atendidos pelas ações indigenistas. Não mais se constituíam ‘empecilhos ao progresso’, como aponta a antropóloga Kimiye Tommasino no Relatório de identificação e delimitação da Terra Indígena Guarani de Araça’í.
Para Beverly Keene, do Diálogo 2000 (Argentina) há muito a reparar na América Latina por sua história com o colonialismo e com ditaduras que afetaram Argentina, Brasil e Paraguai.
“Ainda temos um trabalho enorme a fazer para vincular a memória daquela experiência com a busca da verdade, a da justiça, da punição e da reparação. Por isso foi importante trabalhar, no Fórum da Tríplice Fronteira, a ligação com a repressão de hoje, como dois novos acordos de dívida no Paraguai, e um novo acordo da Argentina com o Fundo Monetário Internacional.”
A economista é uma das militantes que mobilizam a campanha internacional “Fora FMI-Banco Mundial!”, denunciando os 80 anos de impactos das políticas dessas instituições financeiras, que aprofundam desigualdades, dívidas ilegítimas e devastação ambiental no Sul Global. Organizada por movimentos populares e redes como o Jubileu Sul/Américas e Jubileu Sul Brasil, a iniciativa exige reparações históricas pelos danos causados, entre outros.
“É um projeto de estrangeirização, de apropriação e controle sobre nossos povos, territórios e recursos naturais. Isso tem uma longa história, mas tem as ditaduras e no meio desse processo está a dívida, a construção de Itaipu com as dívidas econômicas, as dívidas com o povo”, afirma Beverly.

O custo bilionário e a dívida que sobrou
O custo inicial previsto para a construção de Itaipu era de cerca de US$ 4 bilhões, mas o custo final superou os US$ 20 bilhões — o equivalente a mais de US$ 70 bilhões em valores atualizados. Boa parte desse montante foi financiada por empréstimos externos que endividaram Paraguai e Brasil por décadas – aqui, a última parcela da dívida foi quitada somente em fevereiro de 2023.
Entre os principais credores estavam o Banco Mundial, que aportou cerca de US$ 304 milhões, e bancos privados como o Citibank, Dresdner Bank, Deutsche Bank, Swiss Bank Corporation e o JPMorgan. Também houve articulação com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que monitorava a solvência e capacidade de pagamento dos países diante de um projeto considerado “estratégico” para a integração energética regional durante a Guerra Fria.
Para o Paraguai, com uma economia consideravelmente menor, a dívida contraída teve um impacto proporcionalmente devastador. O país ficou comprometido por mais de 30 anos com o pagamento de sua parte na construção, mesmo sem ter autonomia sobre a venda da energia pelo país. Uma grande parte dessa energia era vendida ao Brasil por valores muito baixos, conforme estabelecido no Anexo C do Tratado de Itaipu.
A engenheira Mercedes Canese, que é ex-vice-ministra de Minas e Energia do Paraguai, integra a campanha Itaipu Causa Nacional que mobiliza a sociedade paraguaia na revisão do Anexo C do Tratado de Itaipu. O documento estabelece as bases financeiras e de prestação dos serviços de eletricidade da usina entre os dois países.

Ela levou às mesas de debate a reflexão sobre “as dívidas odiosas que nosso povo teve que pagar, principalmente como consequência das ditaduras militares que foram impostas com o propósito de também estabelecer uma ditadura econômica, endividando nosso povo rico em recursos naturais. Essa dívida não foi liquidada. Ainda estamos sofrendo suas consequências, sofrendo com a dívida, com a extração de nossos recursos naturais e a destruição de nossa natureza”.
Por isso, a principal reivindicação no Fórum “é que nós, o povo, possamos recuperar a soberania sobre os recursos naturais. Nossa região é uma região rica e não deveríamos ter pobreza, não deveríamos ter essa desigualdade enorme”, completa.
Rubén Penayo afirma que há um espaço que deve ser recuperado “com base nos interesses dos indígenas, na preservação da natureza e nos interesses da própria binacional para que a vida útil da hidrelétrica seja muito maior. No Fórum Social da Tríplice Fronteira deixamos claro que para as comunidades indígenas são 140 mil hectares no caso de Itaipu, e 120 mil hectares no caso da usina de Yacyretá”.
Para o jornalista da Campanha Itaipu Causa Nacional, “isso tem a ver com o chamado neocolonialismo jurídico. Devemos desmantelar todo esse tipo de estrutura jurídica porque ela faz é greenwashing (‘lavagem verde’ ou ‘maquiagem verde’), que realmente afeta a natureza e é disfarçado como se fosse uma questão ecológica”, conclui.