Como faz parte dos países envolvidos na rota do tráfico de pessoas – crime mundial e de alta rentabilidade – o Brasil é um ponto certo de partida para este delito internacional, que terá suas possibilidades aumentadas pela realização da Copa do Mundo.
Apesar de campanhas lançadas pelo Governo, é notório a falta de estrutura e operacionalização para combater o esquema organizado do tráfico de pessoas. Dados do Ministério da Justiça indicam que de 2005 a 2011, somente 475 brasileiros/as fora do Brasil foram encontrados nessa situação. O número, ressalta, é bem maior.
A Rede Jubileu Sul Brasil entrevistou Magnólia Said, advogada, integrante da Rede, e membro da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop), sobre como esses megaeventos e megaprojetos atingem as mulheres e se constituem num agravamento para os problemas relacionados à questão de gênero.
“Se houvesse de fato interesse em coibir essa prática criminosa, teriam sido implantadas nas cidades, megaoperações de proteção e defesa de mulheres, crianças e adolescentes e punição dos criminosos, assim como se fez, com bastante antecedência, megaoperações para coibir a livre expressão nas ruas”, falou a advogada.
Confira.
A exploração sexual de mulheres, adolescentes e crianças e o tráfico de pessoas são uma realidade no país. O problema tende a se agravar com a realização da Copa do Mundo?
Magnólia Said – Em geral, megaeventos trazem como consequências o aumento da violência contra a mulher, da prostituição e do aliciamento para a prática do tráfico de pessoas. As grandes barragens na região do Xingu e o complexo Portuário do Pecém no Ceará, são grandes exemplos. Um enorme contingente de trabalhadores vindos de diversos lugares, com culturas diferentes, sem família, com demandas diversas, que passam a viver em lugares pobres, com infraestrutura debilitada, sem períodos de descanso para viajar, inevitavelmente, provoca impactos na vida das pessoas das localidades e as primeiras a sofrerem esses impactos são mulheres, jovens, crianças e adolescentes.
No caso de Fortaleza, Natal, Recife e Manaus, cidades já conhecidas internacionalmente como rota do tráfico de mulheres e como lugares de maior incidência da exploração sexual, isso tende a se agravar. Junte-se a isso, no caso de Fortaleza, o fato de o orçamento para o combate à exploração sexual diminuir a cada ano. Em 2013 (dados da Secretária de Segurança Pública do Estado), ocorreram três estupros por dia, de criança e adolescente, somando 1.832 ocorrências. Houve um aumento de 12% em relação ao ano de 2012, no patamar geral: criança mais adulto.
De janeiro a março de 2014, as denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescente, cresceram 19,8% em relação a 2013. O Disque 100 atendeu 524 denúncias ( 253 em Fortaleza). Ademais, todas as cidades-sede dos jogos lideram ocorrências de violência sexual contra crianças e adolescentes. O Nordeste é onde há mais casos, principalmente em função do turismo sexual e da vulnerabilidade social, causada principalmente pela situação de pobreza das famílias.
No caso do nordeste, a situação fica mais favorável à prática da exploração e do aliciamento para o tráfico, em vista de estarmos atravessando a pior seca dos últimos 50 anos. Para essa população (mulheres, crianças e adolescentes), embora a ausência de políticas públicas seja uma constante, a situação de calamidade na maioria dos municípios, agrava as condições de vida, empurrando muitas mulheres para as capitais. Mulheres que guardam a fantasia de conseguir “um dinheiro a mais” ou até “um casamento com estrangeiro”, que as leve para longe da miséria.
Por esse período a Fifa ditará o funcionamento das cidades. Há alguma preocupação expressa com esse problema? O governou chegou a lançar campanhas contra a exploração sexual. Isto será suficiente?
Magnólia Said – A Fifa já vem ditando o funcionamento das cidades-sede, desde que o Lula assinou a Lei Geral da Copa. A partir daí, até nossa legislação tem sido modificada para atender aos interesses dos grandes negócios que já têm sido gerados a partir daí. Como mulher também é vista como “um negócio” e dos mais lucrativos, não se poderia esperar algo diferente do que está acontecendo, ou seja, um faz de conta de que existe uma preocupação dessa corporação, governo estadual e municipal em relação ao aumento da exploração sexual.
Se houvesse de fato interesse em coibir essa prática criminosa, teriam sido implantadas nas cidades, megaoperações de proteção e defesa de mulheres, crianças e adolescentes e punição dos criminosos, assim como se fez, com bastante antecedência, megaoperações para coibir a livre expressão nas ruas. Em Fortaleza, a campanha lançada pelo Governo em parceria com a Prefeitura e OAB, além de tardia, está restrita a um lugar quase clandestino no Aeroporto Pinto Martins (serviço de proteção ao migrante), cujo material está escrito apenas em português, aonde “só vai quem tem algo para fazer”, o que não é o caso, é patética. Não tem constância, não tem incidência e, mais que isso, o orçamento para o enfrentamento é irrisório. Por outro lado, de que adiantam campanhas se não existe um sistema de proteção organizado, articulado institucionalmente, equipado e qualificado o suficiente para atuar diante desse crime?
É possível que megaeventos, sobretudo os esportivos, fortaleçam a imagem estereotipada, de objeto, já bastante explorada sobre a mulher brasileira?
Magnólia Said – O estrangeiro que vem para o Brasil, chega com o desejo de usufruir do país do futebol, do samba e do sexo exacerbado e livre. Isso porque ele já vem com essa informação, com orientações dadas por agências de turismo, setores do empresariado, da política, com a imagem das propagandas de revistas e TVs. Ele acha que pode tudo; que pode assediar tanto a mulher que está na rua como a mulher que está lhe prestando algum serviço, seja no hotel, seja no restaurante, uma vez que acha que está pagando pelo serviço completo.
No caso de Fortaleza, em especial, que já é conhecida internacionalmente como o paraíso do turismo sexual, o turista sabe também que tem um peso no país porque vai trazer divisas e o mercado do sexo é um grande movimentador de dinheiro. Por isso mesmo, a legislação que pune essa prática, na hora H é flexibilizada, não tendo o rigor que deveria ter.
Os Movimentos de Mulheres, feministas, têm atuado bastante para combater essa imagem. É um momento também de fortalecimento dessa luta?
Magnólia Said – É de fortalecer a luta sim, porque com o debate mais ampliado sobre a exploração sexual e seus impactos na vida das mulheres e do país, se fortalece e se constrói novas alianças. Além de aumentar a possibilidade de novas conquistas no plano de políticas públicas, em especial, pelo constrangimento que isso acaba trazendo para o governo, em termos de imagem. E como os governos vivem de imagem.
Por Ana Rogéria, Rede Jubileu Sul Brasil.