Além de kits de limpeza e acolhida, 215 famílias afetadas receberam kits de tinta, pincéis, cimento, apoio à reconstrução de moradias, orientação e planejamento para construção de casas populares sustentáveis
Por Flaviana Serafim – Jubileu Sul Brasil
Fotos: Equipe Ação Solidária
Numa parceria entre a Rede Jubileu Sul Brasil (JSB) e sua entidade membro Rede Emancipa, 215 famílias foram atendidas pela “Ação solidária emergencial para os afetados do Rio Grande do Sul”.
Além da distribuição de kits de limpeza e de acolhida (colchões, roupas de cama e chaleira elétrica), famílias afetadas pelas fortes enchentes em maio deste ano também receberam um “kit reconstrução” com cimento, tintas, corantes, pincéis e rolos de pintura e apoio à reconstrução de casas e infraestruturas, orientação e planejamento para construção de moradias populares sustentáveis, com assessoria técnica da MÃOS – Arquitetura, Terra e Territórios e voluntários.
O projeto foi realizado entre agosto e novembro último, beneficiando cerca de 1.290 pessoas, num processo coletivo que engajou comunidades do Sarandi, Vila Dique, Vila Nazareth, Ilha da Pintada, Ocupação Periferia no Centro e Ocupação Desabrigados da Enchente.
Solidariedade, organização e construção coletiva
A primeira etapa da ação foram mutirões para diagnóstico socioterritorial das comunidades atingidas, com levantamento de necessidades, demandas, cadastro socioeconômico, reuniões, assembleias e assessoria contínua às famílias atingidas para garantia de direitos, auxílios e benefícios. Na segunda etapa, as famílias cadastradas receberam os kits de limpeza e acolhida.
Entre os desafios da ação, o grande número de desalojados em diferentes comunidades, que gerou uma demanda complexa ao projeto e as condições precárias de moradia. Mais do que as questões práticas a executar, colocar a ação em marcha também foi lidar com os sentimentos e o cenário vividos pelas famílias- territórios como Ilha da Pintada, onde a visita guiada constatou que cerca de 60% dos moradores não retornaram às casas porque foram destruídas ou soterradas.
“As demandas são muito amplas. São materiais que as famílias precisam imediatamente, é o colchão, fogão, geladeira, tem a tinta para apagar a memória do que ficou. Muitos querem apagar a memória dessa enchente, mas também é essa questão psicológica mesmo. É uma situação emergencial e as pessoas estão muito adoecidas”, relata a arquiteta Claudia Favaro, da Rede Emancipa, sobre o trabalho territorial.
Ela afirma que a situação é “desoladora” porque os processos de salvamento, cuidado, acolhimento e de reconstrução têm sido feitos “pelas próprias pessoas, pela solidariedade das próprias famílias e das organizações, ou não seria possível porque o Estado não conseguiu e não conseguirá dar conta do tamanho dos impactos”.
Por outro lado, a arquiteta destaca que “há um clima de solidariedade e de disposição para lutar pelos seus direitos porque muitas pessoas não conseguiram auxílios dos governos, nem as casas prometidas. Lidar com esse cenário precisou de um trabalho de acolhimento, entendimento e construção coletiva para que esses insumos que o projeto trouxe às famílias não viesse só como auxílio material, mas como algo motivador para que a pessoa siga se organizando, lutando por melhores condições e conseguindo dar sequência à reconstrução da sua casa, da sua vida, da comunidade”.
A representante da Rede Emancipa afirma que o apoio na reconstrução foi relevante “para as comunidades e para as pessoas que trabalharam na ação porque todo mundo cresceu um pouco, precisou e conseguiu se fortalecer para poder acolher as famílias, encaminhar as demandas e poder entender qual é o sentimento de quem simplesmente perde tudo”, completa.
Dívidas e reparações às vítimas
Outro aspecto relevante do contexto enfrentado pelas vítimas das enchentes são as múltiplas dívidas geradas à população diante da negligência do Estado com as questões ambientais e as mudanças climáticas.
Claudia Favaro avalia que a principal questão é a dívida climática “do ponto de vista desse negacionismo que vem se impondo ao longo dos anos, escondendo e maquiando impactos, os ecológicos e na vida das pessoas. Isso tem feito com que as pessoas vivam como se a mudança climática não existisse, e o Rio Grande do Sul é um estado do Brasil que vai sofrer esses impactos com maior violência, como já vimos acontecer inúmeras vezes nos últimos anos”.
E a dívida econômica “porque antes de existir essa calamidade se dizia que o Estado não tinha dinheiro para nada, com cortes de recursos na saúde, educação, nos benefícios sociais e outros que ainda quer cortar agora esse pacote de ajuste fiscal. Quando aconteceu a enchente imediatamente os recursos estavam à disposição e foram diretamente para as mãos das empresas na compra de moradias das grandes construtoras, nas obras de infraestrutura para poder conectar as cidades. E, claro, o auxílio emergencial às mãos das pessoas, mas houve muita fraude, nem todos os atingidos receberam e R$ 5.100 não são suficientes para resolver a vida de uma família”.
A arquiteta destaca ainda a dívida social “porque embora a cidade inteira tem sido alagada, e tanto ricos quanto pobres tenham sido atingidos, sempre uns pagam mais do que os outros porque, com uma drenagem, saneamento e habitação mais precários, pessoas muitas vezes não conseguem voltar às casas, perdem o seu convívio social, a vivência de comunidade e precisam mais uma vez reconstruir suas vidas. E uma diversidade de dívidas causadas pela negligência do Estado, também municipal em Porto Alegre e no nível Federal”.
União e mobilização comunitária
Junto com o suporte material para atender às necessidades das famílias, a ação solidária emergencial incentivou a participação ativa das comunidades afetadas, promoveu assembleias, encontros e formações, deixando a mobilização comunitária como legado. Os moradores também colaboraram nos mutirões de diagnóstico territorial.
Para a arquiteta, essa mobilização se tornou necessária frente à negligência do Estado e à falta de atendimento do poder público às demandas da população. “E a necessidade de unidade das próprias pessoas, e delas com as organizações, para reconstrução dos territórios que estão abandonados, esperando promessas, que não conseguem desenvolver esse reconstruir e mantêm as famílias numa incerteza cotidiana de não saber o que que vai ser o dia seguinte”, pontua.
Claudia destaca que essa mobilização também tem sido importante para resolver e ajudar nos principais casos onde tem o impacto psicológico porque a luta, a unidade e a união fazem com que as pessoas se conectem com isso também e consigam se sentir mais fortalecidas, mais unidas. O projeto apostou muito nisso, na unidade, na união, na conversa, nas pessoas expressarem suas opiniões, e a partir disso conseguirmos auxiliar na relação com o poder público e com os órgãos que estão responsáveis pela reconstrução no Rio Grande do Sul”.
Por isso, apesar de toda a gama de famílias atingidas com necessidade de atendimento, Cláudia destaca a relevância do conjunto do projeto:
“Pensamos que é um recurso pequeno e que talvez possa não fazer a diferença com tão pouco atendendo tão pouco as famílias, mas são muitas famílias e que foram realmente atingidas. Isso nos colocou numa responsabilidade de fazer com que essa ajuda viesse também numa perspectiva de auto-organização, de formação, de entendimento do que está acontecendo sobre a questão ecológica, climática, sobre a questão do Estado e das dívidas, sobre o que é papel do Estado, do município e da comunidade”, conclui.
A “Ação solidária emergencial para os afetados do Rio Grande do Sul” foi realizada com apoio da Adveniat.