Texto: Paulo Victor Melo | Especial para JSB

11 de novembro de 2009. Nesse dia, o então deputado federal Marçal Filho protocolou um Projeto de Lei visando o estabelecimento de multa para as empresas que pagassem salários menores às mulheres em relação aos homens ocupantes da mesma função.

Dezembro de 2011. Mais de dois anos depois, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto, que seguiu para o Senado.

30 de março de 2021. Mais de 11 anos após ser protocolado e quase uma década após aprovação pela Câmara, o Senado aprovou o PLC 130/2011, que insere na Consolidação das Leis do Trabalho a determinação das empresas compensarem financeiramente as mulheres trabalhadoras alvo de discriminação salarial.

22 de abril de 2021. Com menos de um mês da aprovação do projeto no Senado, o presidente da República, em transmissão nas redes sociais, disse que ficaria “quase impossível” para as mulheres conseguirem emprego caso a proposta fosse sancionada.

26 de abril de 2021. Quatro dias após a afirmação de Bolsonaro, o site do Senado publica que o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, solicitou à Presidência da República o retorno do projeto para discussão pelos parlamentares.

Essa curta linha do tempo não deixa dúvidas: quando o assunto é impedir direitos das mulheres, as instituições do Estado “funcionam normalmente”. Porém, quando a perspectiva é garantir direitos, , uma década revela-se insuficiente.

Vale ressaltar que o tema da desigualdade salarial é parte de um processo mais amplo de dívidas sociais que o Estado brasileiro tem com as mulheres, que não são consideradas sujeitos de direitos nas políticas públicas e são as principais vítimas do modo de exploração capitalista.

A advogada Magnólia Said, técnica do Centro de Pesquisa e Assessoria Esplar e integrante da Coletiva de Mulheres da Rede Jubileu Sul Brasil, argumenta que “o papel naturalizado de reprodução e de cuidados tem sido, ao longo dos anos, o sustentáculo da acumulação do capital, em função da desvalorização e exploração de seu trabalho”.  

Para sair dessa armadilha imposta pelo capital e materializada por instituições financeiras, por exemplo, “o primeiro passo será recusar o papel que o sistema do capital tenta consolidar para as mulheres como destino”, frisa Magnólia.

Números da desigualdade

Enquanto os presidentes da República e da Câmara dos Deputados legitimam a discriminação salarial de gênero, os dados escancaram que a realidade brasileira segue afetando com maior gravidade as mulheres trabalhadoras, estejam elas com empregos formais, na informalidade ou desempregadas.

De acordo com pesquisa realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), as mulheres ganham em média 22% menos que os homens. De um modo geral, a remuneração média das mulheres brasileiras no ano passado foi de R$ 2.191, enquanto a dos homens foi de R$ 2.694. Entre as trabalhadoras com ensino superior, as mulheres chegam a receber 38% menos que os homens.

O estudou mostrou que a desigualdade é verificada também em cargos de gerência ou direção. Com a mesma escolaridade, as mulheres em postos diretivos ganham em média R$ 3.910, enquanto os homens R$ 4.910.

Combinando gênero e raça, os números demonstram que as mulheres negras são ainda mais vulnerabilizadas. Em 2020, o rendimento médio por hora das mulheres negras foi de R$ 10,95, enquanto das mulheres não-negras foi de R$ 18,15. Já os homens não-negros tiveram um rendimento diário de R$ 20,79.

Ainda conforme o levantamento do Dieese, no final de 2020 mais da metade das mulheres estavam fora do mercado de trabalho, visto que apenas 45,8% estava empregada ou em busca de emprego.

No mesmo período, a taxa de desocupação entre as mulheres ficou em 16,8%. No mesmo período de 2019, o índice era de 13,9%. Isso significa que 5,7 milhões de mulheres perderam o emprego no período de um ano.

Olhando gênero e raça mais uma vez, os dados não dizem outra coisa: racismo e machismo se retroalimentam enquanto opressões estruturais do nosso país. 2020 encerrou com a taxa de desocupação das mulheres negras em 19,8%, enquanto as não-negras em 13,5%.

Trabalhadoras domésticas e trabalhadoras informais

Os dados sobre as trabalhadoras domésticas, uma das categorias profissionais mais afetadas pela pandemia e pelos ódios de gênero, raça e  classe, são emblemáticos. Segundo um levantamento do IPEA, mais de 70% não têm carteira assinada, 63% são negras e a média de escolaridade é de 8 anos. Apenas neste setor, mais de 1,6 milhão de mulheres perderam o emprego durante a pandemia.

No que diz respeito ao mercado informal, o cenário é igualmente preocupante. Mais de três milhões de mulheres que estavam na informalidade perderam o trabalho e a renda em 2020.

Em declaração ao portal Gênero e Número, Pitty Almeida, diretora da União Nacional de Trabalhadoras/es Camelôs, Ambulantes e Feirantes do Brasil (UNICAB), denunciou que “nós ambulantes somos vistos como marginais, somos discriminadas o tempo inteiro e não temos apoio, sendo que nós também geramos a renda desse país, pagamos imposto em tudo que compramos e vendemos. A riqueza do país vem do trabalhador e da trabalhadora do mercado informal também”.

Vanuzia Drummond, que é ambulante e faz mestrado em Justiça e Segurança na Universidade Federal Fluminense, afirma que o cenário “tem sido devastador para a categoria, especialmente para os perde-ganha e para as mulheres porque são grupos que, por conta da pandemia, não têm de onde tirar seu sustento. Elas se veem em casa, com os filhos, que não estão na escola, e sem rede de apoio. Elas tiveram que se reinventar nesse espaço já precarizado, mudar de área e acumular o ônus do sustento da casa”.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileira de Geografia e Estatística (IBGE), 70% dos/as trabalhadores/as ambulantes receberam o auxílio emergencial em 2020. A redução do valor do benefício este ano, porém, terá mais impactos negativos para essas mulheres. É isso o que aponta, por exemplo, o estudo “Gênero e raça em evidência na pandemia: o impacto do auxílio emergencial na pobreza e na extrema pobreza”: com a redução do auxílio, 5,4 milhões de brasileiras e brasileiros devem passar a viver em situação de pobreza e 9,1 milhões em extrema pobreza.

Rosilene Wansetto, da Rede Jubileu Sul Brasil, avalia que tanto as desigualdades salariais de gênero quanto os crescentes aumentos do desemprego e das vulnerabilidades socioeconômicas das mulheres trabalhadoras refletem a histórica dívida social com as mulheres.

Para reverter este cenário, ela julga “fundamental e urgente um conjunto de políticas públicas sociais e de acesso ao emprego e renda direcionadas para as mulheres, especialmente para as mulheres pobres e negras. É uma forma de reparação social, financeira, histórica e de superação de uma herança do colonialismo racista”, conclui.

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