É preciso pontuar que as pilastras do que chamamos de “arquitetura das dívidas” tem relação com as cooperações internacionais

Por Sandra Quintela* e Talita Guimarães**

Era o ano de 1999 quando a rede Jubileu Sul nasceu internacionalmente na África do Sul com movimentos e organizações de África, Ásia e América Latina.  No Brasil nascemos no contexto do “Tribunal da Dívida Externa” ocorrido no Rio de Janeiro em abril do mesmo ano. 

Nesse momento éramos mais de 2.500 pessoas lotando  o Teatro João Caetano na Praça Tiradentes e por ali passaram Lula, Brizola e tantas mais figuras públicas que consideravam essa questão vital para o enfrentamento ao modelo econômico vigente. 

O que mudou?  Por que essa pauta anda “sumida”?  

Bueno, vamos lá!  Como estava o mundo no final dos anos 90?  Estávamos em plena crise financeira em várias partes do mundo. O G20- financeiro nasce nesse bojo (1999), tentando salvar o sistema que estava em profunda crise. O governo Collor (1994)  ampliou a financeirização da economia brasileira quando coloca títulos da dívida interna para jogo, permitindo sua negociação a nível internacional.

As instituições multilaterais – FMI (Fundo Monetário Internacional) e Banco Mundial – nos seus 80 anos de existência trabalham em dobradinha: FMI garante que as políticas de austeridade sejam seguidas à risca pelos governos e o Banco Mundial (BIRD) que as políticas públicas trabalhem em direção a privatização:das políticas públicas em si e de tudo que for possível ser privatizado – das empresas estatais à natureza, como a água e o carbono. Somado aos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC) I e II,  que privatizou massivamente as empresas públicas e pavimentou as políticas macroeconômicas para a facilitação do capital financeiro que tinha ganhado um impulso forte com o Plano Real e a paridade 1 a 1 do Dólar e do Real. 

No plano de fundo desta conjuntura, temos  como principal acontecimento o capital passando  por mudanças profundas advindas da crise econômica de 1970, na qual as dívidas nacionais e internacionais passariam a ser  condicionantes  estratégicas para o plano neoliberal que orquestraria  a narrativa do  Estado mínimo e austero para as políticas sociais e máximo e implacável  para os interesses do grande capital. Nesse processo os axiomas da tríade  desregulamentação financeira, liberalização econômica e privatizações,  foram reformas estruturais fundamentais  para a garantia de uma forma de dominância financeira.

A engrenagem das dívidas públicas passam a ser ponto central, segundo,  Nakatani (2006), as operações com títulos públicos a “titularização” da economia  tornou-se peça chave, como ferramenta para o capital especulativo de curto prazo, buscar rentabilidade rápida sem o compromisso de fazer inversões, a partir das operações de curtíssimo prazo, os títulos da dívida pública  e as chamadas compromissadas ofertadas no mercado financeiro, cumprem  com o papel de remunerar  dinheiro ocioso de rentistas pelo mundo, ganhando com a alta taxa de juros interna e especulação de curto prazo ou até num cenário inflacionário, deixando  como contrapartida o aumento da vulnerabilidade  da economia brasileira.

É preciso pontuar que as pilastras do que chamamos de “arquitetura das dívidas” tem relação com as cooperações internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) que na década de 1990, consolidou-se, o projeto neoliberal nos planos macroeconômicos em muitos países do sul global, como prerrogativa de privilegiar  as necessidades do mercado. São quase meio século de política econômica voltada para atender os interesses dos rentistas e do agronegócio!

O modus operandi dessa forma responde a duas questões basilares para o dito mercado, a primeira de garantir a estabilidade monetária e a segunda para a remuneração das dívidas públicas do pagamento dos serviços de juros da dívida, na garantia de remessas de lucros e ganhos de dividendos para o exterior. Desta maneira, a política monetária tem como foco essas linhas motrizes e o Banco Central o principal agente estabilizador em prol das necessidades objetivas e “subjetivas” do mercado financeirizado em detrimento dos interesses de soberania nacional.

Elaborado pelas autoras. Fonte: Relatório Anual da Dívida – RAD (2023)

Elaborado pelas autoras. Fonte: Relatório Anual da Dívida – RAD (2023)

Nessa estrutura do capital, o regime da acumulação sob dominância financeira, atende de forma magnífica as necessidades do capital pois consegue colocar na ordem do dia, a arquitetura das dívidas públicas como central para conter a tendência da queda da taxa de lucro ao remunerar este capital  a partir da “titularização” do estado.Como demonstrado no gráfico 1 temos um século XXI de aumento significativo do acúmulo do estoque de dívida pública ao longo dos anos, sobretudo de aumento de dívida pública para pagar mais juros de uma dívida, vinculadas a uma lógica de rentabilizar os ganhos do capital, deslocando recursos para atender os rentistas.

Nesse sentido passos largos  foram dados para incidência da agenda financeira no país, a Lei de Responsabilidade Fiscal, 1999, embalada em  ares técnico e disciplinado, impõe para a união e estados o pagamento das dívidas financeiras em primeiro lugar, tem usado de mecanismos que impõe ao orçamento público desviar os recursos de investimento em saúde, educação, moradia entre outros itens fundamentais para pagar uma dívida que só cresce ao longo dos anos sem retorno qualitativo, prejudicando e apertando o cerco às demandas sociais como mero custo a serem cortadas!

Podemos constatar essa afirmação no gráfico 2, só para o refinanciamento da dívida pública já são cerca  2, 525 trilhões ou 44,30% cerca de R$ 5,699 trilhões de recursos da união reservados para o pagamento da Dívida Pública Federal, esses custos só  aumentam  a cada ano. Tendo as instituições financeiras como principais detentoras de títulos públicos (ver em gráfico 2).

Elaborado pelas autoras. Fonte: LOA

Uma outra reflexão que precisa ficar evidente quanto a luz do sol, a questão não é em si o aumento da dívida pública, pois quando se trata de política econômica de Estado ela faz parte da engrenagem e dinâmica, adianta crédito, que financia a sociedade e gera mais investimento, tributação e etc,  fazendo o que na economia chamamos de “efeito multiplicador”.

No entanto, os esforços fiscais e políticas econômicas dos últimos trinta anos têm se voltado para formas de  arrocho fiscal e de austeridade para os gastos sociais e  fazer frente apenas às necessidades de pagar juros da dívida pública que cada vez mais instituições internacionais são os principais credores.Ademais, assistimos no  século XXI todos os planos econômicos se ajustarem às necessidades  da “plataforma de financeirização”, desatrelado aos interesses soberanos e das políticas sociais estruturais, restando políticas focalizadas de mitigação.

 O mundo mudou de forma abrupta e as condições tecnológicas abriram possibilidades ímpares para a circulação financeira e as possibilidades de especulação estouram no bolso dos trabalhadores, seja pela contaminação na economia elevando os índices de desemprego, aumento da inflação ou pelo impacto no aumento das dívidas soberanas. 

Em 2010 a dívida pública já chegada a R$ 3 trilhões. Em 2023, só o refinanciamento da dívida consumiu quase R$ 6 trilhões do orçamento público. Imagem: Arquivo Jubileu Sul Brasil

A exemplo disso, no centro do capital, a  crise dos subprimes (2008) deflagrada a partir de uma pirâmide hipotecária, que acarretou em  trabalhadores perdendo suas casas para o sistema financeiro, tendo como salvaguarda  o sistema de dívidas instrumentalizados para os grandes bancos e instituições financeiras. Esta  lógica perversa, dirigida pela acumulação de dominância financeira e organizada pelo neoliberalismo, tem gerado os extremos da criação de  valor e miséria. E os feitos sentidos sobretudo no fato social de propagação do descrédito ao coletivo sendo este capturado por discursos meritocráticos de saídas fáceis individuais, que só aprofundam o estado de barbárie.

A disputa por um projeto popular passa por enfrentar o debate das dívidas financeiras e sociais, colocar na ordem do dia uma política econômica nacional que atenda os interesses da maioria da população brasileira.

E nesse contexto o Jubileu Sul Brasil há 25 anos pauta o tema desde um debate popular. Desde os territórios, desde as mulheres, desde a base de nossas organizações membro.  Jubileu Sul considera que a questão das dívidas precisa ser entendida em sua totalidade.  Esse circuito financeiro, onde o trabalho humano e a natureza não passam de “recursos”  a serem explorados, colocamos a “vida acima da dívida”. E quando falamos disso, falamos da centralidade das reparações.  Todas elas! Históricas, ambientais, climáticas e sociais!  O modelo capitalista é um sistema de morte! E a dívida, através da hegemonia do capital financeiro, é a mola mestra de toda essa engrenagem fatal.  

Tenhamos a sabedoria e coragem de seguirmos denunciando esse sistema e anunciando um horizonte revolucionário onde possamos plantar o sonho, a esperança e o trabalho cotidiano por um mundo de justiça e paz!

* Economista, educadora popular, articuladora da Rede Jubileu Sul Brasil e presidenta do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS)
**Economista, educadora popular e pesquisadora sobre  Direitos Econômicos Sociais.  Compõe a coordenação da Rede Jubileu Sul Brasil pela Ação Social Franciscana.


Notas
¹ Grupo das 20 entre as maiores economias mundiais
² Relatório Anual da Dívida Pública Federal – RAD 2023
³ Ver em Leda Paulani.

Referências 

BRASIL. Lei Orçamentária Anual – LOA. Brasília, DF: Câmara dos Deputados. Disponível em https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/leis-orcamentarias/loa. Acesso em: 9 out. 2024. 

CHESNAIS, François. A finança mundializada: acumulação, internacionalização, efeitos econômicos e políticos. São Paulo: Boitempo, 2005.

PAULANI, Leda. Brasil delivery: servidão financeira e estado de emergência econômico. Boitempo Editorial, 2015.

TESOURO NACIONAL TRANSPARENTE. Relatório Anual da Dívida Pública Federal 2023. Brasília, DF. 2024. Disponível em https://www.tesourotransparente.gov.br/publicacoes/relatorio-anual-da-divida-rad/2023/114  Acesso em: 9 out. 2024.

TESOURO NACIONAL TRANSPARENTE. Relatório Mensal da Dívida Pública Federal 2024. Brasília, DF. 2024. Disponível em https://www.tesourotransparente.gov.br/publicacoes/relatorio-mensal-da-divida-rmd/2024/7. Acesso em: 9 out. 2024.

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