Engrossa cada vez mais no Brasil a fila à espera desse benefício. De acordo com as estimativas, ao redor de um milhão de famílias aguardam o atendimento. Criado para transferir algumas migalhas da renda nacional para os extratos mais pobres da população – menos de R$ 170,00 por pessoa – o programa “Bolsa Família” passou de governo para governo, o que significa que representa um fator de distribuição de renda, ainda que mínimo. Certo, o programa apresenta uma série brechas, contradições e falta de fiscalização, dando margem a práticas escusas de oportunismo e tráfico de influência. Tanto que a contrapartida das famílias beneficiadas, em especial a freqüência à escola e os cuidados com a saúde, deixa muito a desejar. Porém, substituir um modelo de fiscalização sério e responsável por um bloqueio do programa não parece ser a solução mais adequada. O quadro de torna ainda mais grave no contexto atual de acentuado desemprego e subemprego, do crescimento do trabalho informal e da precariedade das condições reais de trabalho.
A situação das famílias de baixa renda piora ainda mais com a estridente desigualdade social que se verifica na economia globalizada em geral. Na América Latina e no Brasil, em particular, a distância entre os que ocupam o pico da pirâmide socioeconômica e os que habitam a base vem se aprofundado progressivamente com a crise prolongada. Já é conhecido e notório o fato de que, enquanto a renda tende a crescer para a faixa de 1% ou de 10% da população mais rica, diminui em proporção inversa para aqueles que se encontram entre os 80% ou 90 % mais pobres. Desnecessário repetir que essa assimetria gritante e escandalosa tem conseqüências danosas para todo o continente e seus respectivos países.
Os resultados são evidentes a olho nu. Basta verificar o aumento das pessoas (e famílias) em situação de rua, com destaque para as grandes cidades, capitais e metrópoles; o fluxo cada vez mais intenso de migrantes e/ou refugiados em busca de novas oportunidades, como as caravanas da América Central em direção à fronteira entre Guatemala e México e entre México e Estados Unidos; os números de profissionais de várias categorias, às vezes com curso superior, dispostos a aceitar os “bicos” de toda sorte; as diversas formas de exploração sexual e/ou trabalhista das crianças, jovens e adolescentes de ambos os sexos; a sobrecarga de trabalho para os poucos “privilegiados” que ainda mantêm um emprego com carteira assinada; a remuneração inferior para o trabalho feminino em iguais condições do masculino…
Sempre tendo em vista o contexto das imensas disparidades sociais que marcam a população de nossos países latino-americanos, convém chamar a atenção para os riscos que rondam os povos indígenas, as comunidades ribeirinhas e quilombolas da região amazônica, como demonstra a Exportação Apostólica pós-sinodal Querida Amazônia, do Papa Francisco. Outro olhar atento volta-se para os imigrantes indocumentados e a população afro-descendente. Não é raro ver seus representantes utilizados em serviços árduos e pesados, “análogos à escravidão”, eufemismo que dissimula os casos de escravidão pura e simples. Aqui o olhar se estende pelas regiões fronteiriças, onde centenas e milhares de migrantes são recrutados temporariamente para as safras agrícolas, outros literalmente se escondem nos porões sórdidos e insalubres da indústria têxtil, ou ainda no chamado trabalho doméstico ou autônomo, uma forma de fazer recair sobre os ombros dos trabalhadores e das trabalhadoras todo o ônus dos encargos sociais.
Sacrificar o programa “Bolsa Família”, em lugar de criar mecanismos eficazes de fiscalização, retrata o descaso das autoridades para com a “questão social”, além de agravar o pesadelo de centenas de milhares de famílias brasileiras. Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes, Santos-SP, 19 de fevereiro de 2020