Por Magnólia Said – Educadora feminista e advogada

“….por isso cuidado meu bem, há perigo na esquina….”

Provocada pelas recentes manifestações explícitas de ódio, racismo, intolerância, conservadorismo e disseminação do terror em relação ao estudo das questões de gênero nas escolas, resolvi me posicionar a respeito do que hoje domina o imaginário nacional.
Estou me posicionando também, em solidariedade ao Grupo de Mulheres Negras do Cariri – Pretas Simoa, que recentemente denunciou nas redes sociais, a aprovação na Câmara de Vereadores do Crato (23/10), do Projeto de Lei que dispõe sobre a vedação de uma tal “Ideologia de gênero”, na rede municipal de ensino.
O que isso significa na prática? Significa que professores/as não podem fazer qualquer discussão em sala de aula sobre relações desiguais de gênero, sexualidade, violência contra a mulher, pedofilia, homofobia, racismo….muito menos distribuir material que aborde essas e outras questões correlatas. No Congresso Nacional tramitam vários Projetos de Lei que tratam da matéria. Um deles prevê a prisão para professor ou professora que desrespeitarem a determinação proibitiva do estudo de gênero.
Aproveito para repudiar a Nota da CNBB Regional – Nordeste I, satanizando o que se convencionou chamar de ideologia de gênero.
Enquanto se disseminam através dos veículos de comunicação, falas bestiais de políticos, padres e até de pré-adolescentes chamando a atenção das “famílias de bem” para os maiores absurdos que advirão caso se continue a disseminar a terrível e poderosa “ideologia de gênero”, o governo usurpador e seus asseclas, selando uma aliança com o sistema financeiro, trama para que mais direitos sejam retirados da população, para que continuem pagando o serviço de uma dívida pública ilegítima e impagável.
Se não bastasse, até no meio artístico o coro entoou. Recentemente, a filha de Nana Caymmi e neta de Dorival, Stella Caymmi, denunciou a Turma da Mônica, por incutir “Ideologia de gênero nas crianças”. Ela afirma que as histórias em quadrinhos vêm, há tempos, incutindo a ideologia de gênero nas crianças. Imagino o quanto o Maurício de Souza não deve ter ficado triste…..
Ora vejam só! Quando a Turma da Mônica começou a encantar a criançada, eu tinha 6 anos. Minha referência de menina independente, livre e corajosa, que desafiava qualquer um, era a Mônica. Eu só queria ser ela, porque suas histórias diziam que menina não tinha que ser mais fraca do que menino nem menos corajosa; que as meninas também podiam brincar com os brinquedos dos meninos e com eles próprios e que não deveria haver essa separação (eu fazia questão de jogar de bila com os meninos e quase sempre ganhava). Mônica sempre defendia os mais fracos, mantendo a altivez, embora os meninos sempre zoassem com ela. Comigo acontecia o mesmo. Eu fazia da Mônica meu espelho e, assim como ela, não levava desaforo pra casa. Hoje, tenho consciência de que a Turma da Mônica contribuiu para que eu fosse me constituindo como uma mulher que preza acima de tudo, a liberdade e a defesa dos direitos humanos.
Mas, essa orquestração muito bem urdida em torno da desqualificação das questões de gênero tem um sentido e um propósito. Por isso achei por bem desmascarar a utilização que tem sido dada aos termos ideologia e gênero, apresentando as devidas diferenças para, em seguida, mostrar os perigos dos usos que vêm sendo feitos da junção dessas duas palavras.
De acordo com o Dicionário Houaiss, Ideologia é um sistema de ideias (crenças, tradições, princípios e mitos) interdependentes, sustentadas por um grupo social de qualquer natureza ou dimensão, as quais refletem, racionalizam e defendem os próprios interesses e compromissos institucionais, sejam estes morais, religiosos, políticos ou econômicos. Norberto Bobbio associa Ideologia a um conjunto de ideias políticas direcionadas à prática política, ou seja, a doutrinas. Para ele, esse sistema de ideias é utilizado na luta política para influir no comportamento das massas. Daí que “uma teoria política qualquer pode tornar-se ideologia no momento em que vem assumida como um programa de ação de um movimento político” (Bobbio, 2002,p.129). Em Marx, Ideologia seria um meio utilizado pela classe dominante para manter seu domínio sobre as demais classes, por meio da imposição de ideias.
Gênero não é uma doutrina filosófica nem dispõe de um programa de ação, portanto não é uma Ideologia. Gênero é uma categoria analítica criada por um grupo de estudiosas feministas na Inglaterra, durante os anos de 1970, após várias tentativas de explicação teórica sobre as persistentes desigualdades entre homens e mulheres e as opressões das mulheres, não se reduzindo ao debate sobre a sexualidade. Foi uma maneira encontrada de fazer referência à organização social da relação entre os sexos. Gênero é, portanto, um conceito relacional que surge para refletir sobre como as relações historicamente e socialmente estabelecidas entre homens e mulheres produzem uma distribuição desigual de poder, autoridade e prestígio, subjugando e penalizando as mulheres.
Dito isto, ha que se pensar que talvez a questão central de toda essa polêmica seja a tentativa insana de religiosos/as fundamentalistas, articulados com o que há de mais conservador e reacionário na sociedade, de restaurar o papel tradicional das mulheres, mantendo-as na subordinação e na opressão, a serviço das forças de mercado. Na verdade, não é a sexualidade que assombra a sociedade; é a própria sociedade que está a assombrar a sexualidade das pessoas.
Em vigor há 11 anos, a própria Lei Maria da Penha prevê medidas integradas de prevenção à violência doméstica e familiar, por meio da educação com foco no gênero, por entender que embora a violência seja contra a mulher, a família vive um ambiente de violência e, portanto, as crianças devem ser preparadas para entender e se proteger. Nesse sentido, discutir as questões de gênero na Escola desde a infância, possibilitaria uma percepção sobre como a sociedade se organiza real e simbolicamente para a manutenção de uma estrutura de poder patriarcal, aparentemente indestrutível. Na medida em que esse conhecimento vai deixando claro como se constroem as estruturas de poder e dominação, a luta contra as desigualdades passaria a aflorar em todos os campos. “E isso, não interessa a quem detém o poder constituído”, fazendo minhas as palavras do antropólogo francês Maurice Godelier.
Portanto, falar em Ideologia de gênero é um engodo, uma farsa. O que se quer mesmo é abafar a liberdade do sentir, do pensar e do agir para transformar. Nossa sociedade de um modo geral, tem incorporado em seu cotidiano, uma reversão de valores que exorta práticas servis e degradantes contra populações vulnerabilizadas, simplesmente para continuar mantendo pequenos e grandes privilégios, micro poderes e vantagens. O deus mercado, atento a tudo, se mimetiza no patriarcado, no racismo e no machismo para que nada possa vir a povoar de um único jeito de pensar, um extenso território que hoje sucumbe ao poder de apenas 5% de famílias brasileiras mais ricas, detendo a mesma fatia de renda que os demais 95% da população (Estudo da Oxfam sobre Desigualdade Social – 2017). Qualquer postura, atitude, pensamento que arrisque alterar essa ordem, logo se trata de extirpar.
O Macarthismo começou nos Estados Unidos, na década de 1960, com o objetivo de perseguir as pessoas que eram a favor do comunismo e/ou que realizavam atividades consideradas antinorteamericanas. As pessoas eram acusadas de subversão ou de traição, sem qualquer motivo real, com o único fim de restringir a crítica política e o contraditório, ou seja, a possibilidade de as pessoas pensarem diferente. Qualquer semelhança com a ideologia da TFP, fundada no Brasil no mesmo período, é mera coincidência, não é? Ela se criou pautada na tradição católica e no combate às ideias comunistas e socialistas.
O principal alvo do Macarthismo eram educadores/as, sindicalistas, funcionários/as públicos e trabalhadores/as da indústria do entretenimento. Muitas pessoas perderam seus empregos ou tiveram suas carreiras destruídas. Ele durou apenas sete anos, afetando a sociedade estadunidense em todos os níveis, mas plantou sementes que continuam brotando, como as expressões de simpatia ao nazismo. Espero não ter ainda a infelicidade de ver amontoados de livros sendo queimados em praça pública, para “dar o exemplo”.
Mas, para além das bombas, cassetetes, queima de livros e de pessoas, a arma mais poderosa do “Império” é o medo. Este sim, nos retrai, paralisa, subtrai nossa capacidade de agir e resistir. Enfim, se não queremos que os olhos da Medusa (criatura mitológica da cultura grega; monstro de olhar petrificante e cabeça formada por serpentes) nos transformem definitivamente em pedras, não basta, como disse o compositor Gabriel, o Pensador, “matar o Presidente”. Ele é apenas um tentáculo. É preciso decepar a cabeça de quem ele representa.
Fortaleza, 29 de outubro de 2017

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