“Não podemos permitir que a atual e as novas gerações percam a memória do que aconteceu, aquela memória que é garantia e estímulo para construir um futuro mais justo e fraterno (…) Não me refiro só à memória dos horrores, mas também à recordação daqueles que, no meio dum contexto envenenado e corrupto, foram capazes de recuperar a dignidade e, com pequenos ou grandes gestos, optaram pela solidariedade, o perdão, a fraternidade. É muito salutar fazer memória do bem”.
As frases que abrem esse texto estão presentes na Fratelli Tutti, a mais recente encíclica do Papa Francisco. Versando sobre a fraternidade e a amizade social, a encíclica foi divulgada em 4 de outubro deste ano, dia de São Francisco de Assis, a quem é atribuído o ensinamento: “comece fazendo o que é necessário, depois o que é possível e, de repente, você estará fazendo o impossível”.
É justamente no sentido de fazer a memória do bem, de que nos fala o papa latinoamericano, que assume relevância relembrar uma experiência popular – que parecia impossível – feita há 20 anos, mas que teve início antes e permanece ecoando ainda hoje. Esse é o objetivo principal da série informativa “Comemoração e Memória”, que desde o início de setembro celebrou a memória e a história do Plebiscito Popular sobre a Dívida Externa, realizado em todo o Brasil entre os dias 2 e 7 de setembro de 2000.
As sementes do caminho
Mas como dito anteriormente, essa história só foi possível pelos seus antecedentes. E um marco determinante para o Plebiscito foi a 3ª Semana Social Brasileira, entre os anos de 1997 e 1999. Com o tema “Resgate das Dívidas Sociais: Justiça e Solidariedade na Construção de uma Sociedade Democrática”, a 3ª SSB – ação da Igreja Católica, que se caracterizou pela pluralidade e pelo alcance nacional – buscou evidenciar que os recursos destinados aos credores externos eram subtraídos de áreas essenciais para a promoção da dignidade humana.
Em articulação com a 3ª SSB, mas com uma composição ainda mais ampla, aconteceu entre 21 e 23 de julho de 1988, em Brasília, o Simpósio Nacional sobre a Dívida Externa, em que militantes sociais e especialistas da América Latina debateram a problemática do endividamento público, constatando que era urgente romper com as estruturas de dominação que destruíam a economia e a soberania nacionais.
Foi nesse Simpósio que se aprovou a organização do Tribunal da Dívida Externa, que ocorreu dos dias 26 a 28 de abril de 1999, no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. Ao final de três dias de intensos debates, o veredito das 1200 pessoas presentes foi: “a dívida externa brasileira, por ter sido constituída fora dos marcos legais nacionais e internacionais, e sem consulta à sociedade, por ter favorecido quase exclusivamente as elites em detrimento da maioria da população, e por ferir a soberania nacional, é injusta e insustentável ética, jurídica e politicamente”.
Como expressão de que o tema da dívida se demonstrava um problema não apenas brasileiro, o Tribunal se integrava à Campanha do Jubileu 2000, lançada em 1998 por uma coalizão internacional de igrejas e grupos de ativistas, em favor do cancelamento da dívida dos países de baixa renda e mais endividados.
Os frutos que são também sementes
Foi nesse contexto histórico de mobilização nacional e internacional que produziu-se, na Semana da Pátria (que deveria chamar-se Mátria, dado o papel protagonista das mulheres para o nosso desenvolvimento), um Plebiscito que teve a participação de mais de seis milhões de brasileiras e brasileiros, à época algo equivalente a 5,16% do eleitorado do país.
Durante aqueles dias, mais de 90% das pessoas que se manifestaram nas 50 mil urnas instaladas por 100 mil voluntários em 3 mil municípios do país disseram: não ao pagamento da dívida externa, disseram não à manutenção do acordo firmado pelo governo federal com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e disseram não ao comprometimento do orçamento público com o pagamento da dívida.
Demonstrando a conexão entre diversas mobilizações populares, o último dia de votações do Plebiscito foi a data da 6ª edição do Grito dos/as Excluídos/as, que teve o tema “Progresso e Vida, Pátria sem Dívida$” e problematizou o sistema de dependência financeira que subjugava o Brasil e demais nações empobrecidas.
Dois anos depois, entre 1 e 7 de setembro de 2002, mais de 10 milhões de cidadãs e cidadãos em 3.894 municípios disseram: não à adesão do Brasil à Área de Livre-Comércio das Américas (ALCA); não à permanência do governo nas negociações para a formação do bloco econômico; e não à cessão da base de Alcântara, no Maranhão, aos Estados Unidos.
Assim como o Plebiscito de 2000, o último dia de votações coincidiu com a realização do Grito dos/as Excluídos, naquela ocasião em sua oitava edição. Com o lema “Soberania não se negocia”, o Grito alertou que a ALCA era uma forma de negociar as riquezas dos países das Américas aos interesses do imperialismo estadunidense.
Meses antes do Plebiscito da ALCA e da 8ª edição do Grito, em janeiro de 2002, no âmbito do II Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, o Tribunal Internacional da Dívida – formado por militantes e intelectuais de diferentes países do Sul Global – considerou ilegítima, injusta e insustentável ética, jurídica e politicamente a dívida externa dos países do Sul, apontando os bancos, as corporações transnacionais, os governos dos Norte, o FMI, o Banco Mundial e outras instituições financeiras internacionais como promotores das medidas que subalternizavam as nações empobrecidas.
Reivindicando um Brasil a serviço dos seus povos e com o tema “Mutirão por um novo Brasil: articulação das forças sociais para a construção do Brasil que nós queremos”, a 4ª Semana Social Brasileira, entre 2004 e 2006, propunha a elaboração de um projeto alternativo de sociedade solidária, sustentável, economicamente justa, politicamente democrática e culturalmente plural.
Na efervescência das mobilizações da 4ª SSB que mais de oito mil integrantes de dezenas de organizações e movimentos sociais encontraram-se em Brasília, em outubro de 2005, para a 1ª Assembleia Popular, que objetivou convergir ideias e propostas para a formulação de um Projeto Popular para o Brasil, sendo uma das sínteses o texto “O Brasil que queremos. Assembleia Popular: Mutirão por um novo Brasil”.
Dois anos depois, na semana do 7 de setembro de 2007, a população brasileira voltou a exercitar a democracia direta por meio do Plebiscito Popular A Vale é Nossa, em que 94,5% dos cerca de 3,7 milhões de brasileiros e brasileiras que foram às urnas defenderam a reestatização da Companhia Vale do Rio Doce.
Repetindo as positivas experiências de 2000 e 2002, a votação do Plebiscito de 2007 foi encerrada no dia do Grito dos/as Excluídos/as, que em sua 13ª edição teve o tema “Isto não Vale: queremos participação no destino da Nação”, fomentando debates sobre os aspectos que contribuíam e os que prejudicavam a construção de um projeto popular de Brasil.
Já após a virada da primeira década do novo milênio, a 5ª Semana Social Brasileira, entre 2011 e 2013, pautou a necessidade de fortalecimento da democracia participativa e direta, chamando todos e todas, a partir do tema “O Estado que temos e o Estado que queremos”, a construir, de forma coletiva, uma sociedade do bem viver, amparada nos fundamentos da solidariedade, da fraternidade e da sustentabilidade.
No último ano da 5ª SSB, e como parte daquela iniciativa, a 19ª edição do Grito dos/as Excluídos/as, que teve o tema “Juventude que ousa lutar constrói o poder popular”, denunciou os problemas enfrentados pelas juventudes brasileiras, em especial as que viviam nas periferias urbanas e rurais, e ao mesmo tempo anunciou que um novo país passava fundamentalmente pelo protagonismo desses/as jovens.
Naquele 7 de setembro de 2013, na Basílica de Aparecida, em São Paulo, o Grito se juntou à 26ª Romaria dos/as Trabalhadores/as que, sob o lema “Mãe Aparecida, ajude a libertar a juventude esquecida”, reuniu mais de 120 pessoas.
2020 e depois…
É com a inspiração de toda história diversa e plural que teve início, este ano, a 6ª Semana Social Brasileira, articulação promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que se estenderá até 2022, com o tema “Mutirão pela Vida: por Terra, Teto e Trabalho”, direitos fundamentais, mas ainda negados à maioria da população. Os três “Ts” do tema são uma referência ao dito pelo Papa Francisco, em 2014, durante o 1º Encontro Mundial de Diálogo com os Movimentos Populares: nenhuma família sem teto; nenhum camponês sem terra; nenhum trabalhador sem direitos.
Num momento em que representantes públicos e empresas naturalizam milhares de mortes pela Covid-19 e pela necropolítica do governo federal, a 26ª edição do Grito dos/as Excluídos/as, realizada no último 7 de setembro, afirmou-se como um ato de resistência ao enfatizar “Vida em primeiro lugar”, denunciando a morte enquanto projeto de Estado.
Vale ressaltar que, em respeito ao necessário distanciamento físico como medida de proteção da saúde e das vidas, o Grito ocorreu tanto virtual quanto presencialmente, neste último caso garantindo-se todos os protocolos e recomendações das autoridades públicas de saúde.
Lançada em julho deste ano, entre o início da 6ª SSB e o 26º Grito, a Campanha A Vida acima da Dívida é a mais recente ação em nível regional de luta pelo não pagamento, anulação e reparação das dívidas financeiras dos países da América Latina e do Caribe.
Coordenada pelo Jubileu Sul/Américas e articulada no Brasil pela Rede Jubileu Sul, a campanha reúne uma multiplicidade de movimentos populares, pastorais sociais, organizações e coletivos de direitos humanos.
Com diversas iniciativas em curso por todo o Brasil e outros países latinoamericanos e caribenhos, por meio de ações de educação popular, mobilização social, incidência e articulação política, o propósito é “evidenciar o impacto destrutivo do acúmulo e pagamento de dívidas públicas ilegítimas na vida de nossos povos e da natureza”, conforme consta no documento político da campanha.