Região Central do Rio de Janeiro onde está localizado o Quilombo da Gamboa. Foto: Adriana Medeiros

Texto: Paulo Victor Melo | Especial para o JSB

10 de julho de 2001. Nesta data, há exatos 20 anos, era sancionada a Lei 10.257, denominada Estatuto da Cidade, regulamentando os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, sobre política urbana.

De acordo com o parágrafo único do seu artigo 1º, o Estatuto da Cidade deve estabelecer normas que regulem o uso da propriedade urbana “em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”.

Duas décadas depois, este objetivo confirmou-se? Como estão as nossas cidades no que diz respeito ao bem coletivo da sua população? Podemos chamar mesmo as cidades de “nossas”? O direito à cidade é, efetivamente, garantido ao conjunto das brasileiras e brasileiros?

Para buscarmos pistas sobre estas e outras questões, entrevistamos Marcos Brito, do Fórum Amazonense de Reforma Urbana.

No entendimento de Brito, a força econômica do setor imobiliário permanece como um dos principais obstáculos para a efetivação do estabelecido no Estatuto da Cidade. “Não conseguimos colocar em prática essa ferramenta tão poderosa e moderna, pois a elite brasileira não estava preparada para dividir os espaços e a riqueza com os mais vulneráveis de nossa sociedade, principalmente o setor imobiliário que viu nestes instrumentos ameaça de perda de recursos e poder”, afirmou.

O entrevistado  menciona a realidade da sua cidade, Manaus, como um exemplo das desigualdades no direito à cidade, particularmente no acesso à moradia digna. Para ele, “hoje, o centro do debate passa pela sobrevivência de famílias que estão nos bolsões de pobreza, nas ocupações de terra da periferia das cidades, seja nas favelas e, no caso do Norte, as famílias que estão nos igarapés, em casas construídas em palafitas e em estruturas flutuantes utilizadas como residência”.

Vale lembrar que, de acordo com o Censo do IBGE, 53,3% das famílias de Manaus vivem em aglomerados subnormais, com ausência de serviços de saneamento básico, como coleta de lixo, abastecimento de água e esgotamento sanitário por rede.

“Temos um instrumento como o Plano Diretor que traz o equilíbrio social e econômico e que a maioria da população não conhece e nem ouviu falar”, afirma Marcos Brito, membro do Fórum Amazonense de Reforma Urbana. Foto: Arquivo pessoal

Confira a íntegra da entrevista.

20 anos depois de promulgado o Estatuto da Cidade, qual a sua avaliação sobre a realidade do espaço urbano no Brasil?

Quando foi promulgado o Estatuto da Cidade, nossa grande expectativa era avançar através da “legalidade”, efetivar políticas públicas para o nosso povo que estava sendo perseguido e injustiçado nas ocupações, periferias e favelas em nosso país, pois acreditávamos ser possível mudar as cidades pelos planos e leis.

Poucos anos depois, conseguimos a criação do Ministério das Cidades, que chamou atenção do mundo para essa experiência que estava sendo construída junto ao Governo que se considerava democrático e popular (à época, o presidente era Lula). Tínhamos a certeza de que o Estatuto das Cidades era uma Lei que abrangia um todo, que tinha a concepção de participação da sociedade na discussão de suas necessidades, era uma lei atual, até os nossos dias, que conseguia amarrar a discussão com os cidadãos das cidades com mais de 20.000 habitantes através da elaboração do Plano Diretor.

Mas, mesmo tendo todo esse avanço em nossa lei, não conseguimos muitos avanços. Não conseguimos colocar em prática essa ferramenta tão poderosa e moderna, pois a elite brasileira não estava preparada para dividir os espaços e a riqueza com os mais vulneráveis de nossa sociedade, principalmente o setor imobiliário que viu nestes instrumentos ameaça de perda de recursos e poder.

Este setor não consegue perceber a importância de construir habitações para famílias da faixa de até dois salários mínimos, até hoje não tem interesse em discutir ou trazer propostas que possam contemplar os mais vulneráveis de nossa sociedade, que representam a maioria da população de nosso país.

Além disso, menos de 50% das cidades do país têm Plano Diretor e as que têm, na sua maioria, não tiveram a  devida formação,  esclarecimento e discussão com a sociedade. Podemos citar a cidade que moro, Manaus. No período de discussão da Revisão do Plano Diretor da Cidade de Manaus, as reuniões eram somente para constar, pois não tinha divulgação por parte da Prefeitura, alguns movimentos sociais ficaram sabendo em função de avisos da Defensoria Pública do Estado, que convidava o Fórum Amazonense de Reforma Urbana. Então, tivemos a oportunidade de discutir os espaços urbanos das nossas cidades, mas nos locais onde não houve abertura e vontade política a discussão e as decisões foram desfavoráveis aos seguimentos da sociedade que estão na faixa de até dois salários mínimo. Ou seja, passados 20 anos do Estatuto das Cidades não mudou muita coisa,  ainda lutamos pelo direito à terra, à moradia, à saúde, à mobilidade, à educação gratuita e de qualidade, aos direitos constitucionais.

Como você visualiza a questão do acesso à moradia neste contexto?

No Brasil ainda existe uma disputa de classes muito grande, principalmente nesta conjuntura de perda de direitos, negação da ciência, com um governo de extrema direita e cheio de indícios de corrupção. Neste cenário, as políticas públicas são cada vez menores para as famílias em vulnerabilidade social.

Hoje, o centro do debate passa pela sobrevivência de famílias que estão nos bolsões de pobreza, nas ocupações de terra da periferia das cidades, seja nas favelas e, no caso do Norte, temos também as famílias que estão nos igarapés [estreito ou pequeno canal natural entre duas ilhas, ou entre uma ilha e a terra firme, que só dá passagem a embarcações pequenas], em casas construídas em palafitas e em estruturas flutuantes utilizadas como residência.

Manaus é toda cortada por igarapés e próximo ao Rio Negro as famílias moram em flutuantes ou em palafitas. Nestes locais, o direito à moradia é quase inexistente. Temos governos (União, Amazonas e Manaus) que não discutem com a sociedade as prioridades para implantação dos nossos recursos públicos, definem projetos com técnicos e empreiteiros, sem a participação da sociedade civil, e realizam obras que, em sua maioria, não têm relação com as necessidades da cidade.

Podemos dizer que até temos cidades que em algum momento tiveram experiências “democráticas” nas regiões do Nordeste, Sudeste e Sul. No Norte ainda predomina a política do coronelismo, dos currais eleitorais, os governos não têm a disposição de discutir com a sociedade o planejamento urbano, sempre buscam deixar a população desinformada para se perpetuar no poder.

Em seu entender, quais os principais desafios para termos, efetivamente, cidades democráticas?

Acredito que  passa principalmente pela nossa formação e das futuras gerações, começando dentro de nossas próprias casas, com diálogo entre os familiares e em seguida indo às comunidades onde moramos e atuamos socialmente.

Temos um instrumento como o Plano Diretor que traz o equilíbrio social e econômico e que a maioria da população não conhece e nem ouviu falar. Este instrumento pode nos levar a tirar prioridades para a discussão junto à Lei Orçamentária (PPA, LDO e LOA) para defender que o dinheiro público, que é oriundo dos nossos impostos, possa ser priorizado em políticas para os mais necessitados de nossa cidade.

É fundamental também termos a capacidade de argumentar com o setor imobiliário, que não se contenta com o Plano Diretor e quer manter seu enriquecimento sem dar sua contribuição à sociedade. Precisamos também motivar o debate para que o setor imobiliário possa perceber que a maioria da população não tem moradia e que, por isso, deveria haver projetos alternativos para reverter esta realidade.

Outro grande desafio que devemos perseguir é a Regularização Fundiária. Na maioria das cidades brasileiras, as famílias que precisam de moradia realizam as ocupações por falta de ação do Estado. E, quando o Estado não faz a sua parte, a sociedade mais necessitada faz do seu jeito: ocupam terrenos, prédios, propriedades que não estão cumprindo sua função social e servem sobretudo para a especulação imobiliária de terrenos que, na maioria das vezes, são grilados ou ocupados pelo latifundiários, grandes comerciantes e empresários do setor imobiliário que enriqueceram com os benefícios do Estado.

Não podemos mais aceitar que sejam construídas estruturas em locais vazios, sem gente, enquanto há milhares de pessoas que não têm saneamento, não têm transporte, não têm iluminação legalizada, não têm água potável, não têm escolas, não têm garantido o direito à cidade.

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