O mapeamento global traz o caso da comunidade quilombo do Cumbe (CE), impactada pelo projeto de energia eólica Bons Ventos
Por Redação – Instituto Terramar
A publicação “Energias renováveis e represálias: defensores em risco na transição para a energia verde no Brasil, Honduras, Moçambique e Filipinas”, produzida pela ONG sueca SwedWatch, é um grande estudo internacional sobre os riscos enfrentados pelos defensores e defensoras dos direitos humanos decorrentes da transição global para as energias renováveis. De acordo com o documento, a expansão das renováveis está associada a graves violações em vários locais do mundo, em particular em países com o espaço cívico obstruído e com democracias disfuncionais.
Com lançamento neste 29 de abril no formato virtual, o relatório é baseado em um mapeamento global e revela que defensores dos direitos humanos e do meio ambiente enfrentam sérias ameaças e represálias em países onde os projetos de energia renovável estão sendo rapidamente desenvolvidos. No Brasil, o caso contemplado foi o da comunidade quilombola do Cumbe, na cidade de Aracati (CE), impactada pelo projeto Bons Ventos, de geração de energia eólica.

Confira a íntegra do relatório clicando aqui e também no final do texto.
Embora a ampliação da energia eólica, solar e hidrelétrica seja essencial para limitar o aquecimento global, esses projetos requerem grandes áreas de terra, afetando frequentemente comunidades locais, ecossistemas e meios de subsistência e violando garantias e direitos fundamentais de muitas populações.
A publicação faz uma compilação de quatro casos de projetos de energia renovável que ocorreram em países com espaço cívico restrito e onde há fragilidades em termos de proteção e afirmação dos direitos humanos. Nesses locais, os ativistas que denunciam as violações dos projetos frequentemente enfrentam assédio, perseguição legal e, em alguns casos, até mesmo violência mortal.
“Não podemos construir um futuro verde às custas daqueles que são silenciados ou deslocados. A transição para a energia renovável não deve ocorrer à custa dos direitos humanos. Os defensores não são obstáculos – eles são aliados essenciais para garantir que isso seja justo, equitativo e sustentável”, diz Alice Blondel, Diretora da Swedwatch.
A autoria é da Swedwatch com a contribuição do Instituto Terramar, da Red de Abogadas Defensoras de Derechos Humanos e do Jalaur River for the People’s Movement (JRPM).
Metodologia: Uma abordagem colaborativa e orientada por dados.
Para identificar riscos pouco documentados para defensores no setor de energia renovável, a Swedwatch realizou um mapeamento global de áreas de alto risco para defensores, focando na expansão da energia eólica e solar. A análise combinou dados sobre espaço cívico da CIVICUS, aliança global de organizações e ativistas da sociedade civil, com projeções de expansão da energia renovável do Global Energy Monitor, ONG que cataloga projetos de combustíveis fósseis e energias renováveis em todo o mundo, e TransitionZero, organização sem fins lucrativos que desenvolve ferramentas tecnológicas para projetos de transição energética.
Para ilustrar os impactos e riscos que os defensores podem enfrentar no setor de energia renovável, foram realizadas entrevistas com defensores e membros de comunidades afetadas em Moçambique, Honduras, Brasil e Filipinas.
Os casos e entrevistados foram identificados em conjunto por quatro das organizações-membro da Swedwatch, incluindo a Sociedade Sueca para a Conservação da Natureza, Diakonia, Afrikagrupperna, e Act Church of Sweden, que também forneceram contribuições para o relatório. Além disso, a organização-membro da Swedwatch, a Solidariedade Suécia-América Latina, também apoia o relatório.
Os casos foram selecionados para evidenciar situações representativas do alto risco enfrentado por defensores dos direitos humanos no setor de energia renovável. Nesse sentido, a escolha se deu para contemplar 1) diferentes formas de energia (solar, eólica e hidrelétrica), 2) diferentes regiões geográficas e 3) diferentes tipos de restrições ao trabalho dos ativistas.
A seleção não se propõe a ser um mapeamento exaustivo, mas uma ilustração de como os defensores podem ser impactados em projetos de energia renovável quando o espaço cívico é restrito desde o início dos empreendimentos e as salvaguardas relacionadas aos defensores são negligenciadas.
Principais apontamentos do relatório da Swedwatch
- Mais da metade da futura capacidade de parques eólicos do mundo e dois terços da capacidade de parques solares estão projetados para serem desenvolvidos em países com espaço cívico restrito;
- Vários dos principais países visados por projetos de transição para energia renovável também têm as maiores taxas de assassinatos de defensores: incluindo Brasil e Filipinas para a capacidade prospectiva de parques eólicos, e Brasil, Filipinas, Colômbia e México para a capacidade prospectiva de parques solares;
- Estudos de caso de Moçambique, Honduras, Brasil e Filipinas apontam falhas na consulta às partes interessadas, transparência e respeito pelos direitos dos defensores. À medida que a transição ganha velocidade, é necessária uma documentação mais sistemática dos riscos enfrentados pelos defensores;
- Empresas e investidores frequentemente falham em integrar completamente a devida diligência em direitos humanos (HRDD) e os riscos ao espaço cívico em suas práticas comerciais, e em integrar os defensores como partes interessadas valiosas.
- Os governos devem tomar medidas decisivas para proteger os defensores e manter os padrões internacionais de direitos humanos no setor de energia renovável.

O caso brasileiro: impactos socioambientais e ausência de reparação para a comunidade quilombola do Cumbe diante do projeto Bons Ventos de geração de energia a partir das eólicas terrestres (Aracati-CE).
No Brasil, o projeto de energia eólica Bons Ventos foi implantado sem a realização da consulta prévia, livre e informada, nem de estudo de impacto ambiental junto à comunidade quilombola e de pesca artesanal do Cumbe (Ceará). O empreendimento tem causado danos socioambientais contínuos e violações de direitos humanos, afetando o modo de vida, o território e os vínculos culturais da comunidade.
Para a comunidade quilombola, a chegada do empreendimento eólico Bons Ventos aconteceu de surpresa. Não foi feito contato com a comunidade, como seria obrigação tanto dos atores financeiros envolvidos quanto do Estado brasileiro, sobretudo por se tratar de uma comunidade tradicional. O projeto, que no início pertenceu à Bons Ventos Geradora de Energia S.A., teve início em 2008, e em 2012 foi vendido para a CPFL Energias Renováveis, atual dona. A usina de 67 turbinas instaladas contou com o financiamento de 50 milhões de dólares pelo NIB (Nordic Investment Bank) e foi cofinanciada pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e BNB (Banco do Nordeste do Brasil).
A comunidade, desde o início, manifestou seu posicionamento contrário ao empreendimento e à maneira de apropriação sobre o território. Ao longo do empreendimento, também denunciou o ostensivo trabalho da empresa na cooptação de sujeitos da comunidade, o que provocou sua cisão. Uma das pessoas entrevistadas para o relatório, que pediu anonimato, reiterou: “Essa prática é muito antiga, desde a colonização, dividir para ter o controle”. Ela complementou ainda que os defensores que lideraram o processo de oposição ao empreendimento sofreram com perseguição e criminalização.
O Instituto Terramar colaborou para a publicação, e em nota escrita para o relatório destaca que o número de defensores incluídos no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos oriundos da zona costeira tem “aumentado nos últimos anos, abrangendo vários setores econômicos, incluindo as empresas de energia eólica”. De acordo com a ONG, as disputas territoriais estão se intensificando, “com as empresas de energia eólica utilizando diversas estratégias para enfraquecer a organização comunitária e intensificar as disputas entre as pessoas que vivem lá”.
Em 2023, o Brasil foi o segundo país com o maior número de mortes de defensores de terra e meio ambiente do mundo (dados da ONG Global Witness) apesar da existência do Programa de Proteção para Pessoas Defensoras de Direitos Humano desde 2004. O Brasil é também um dos países com percentual mais alto de geração de energia a partir de matriz renovável, e vem expandindo projetos de geração a partir das matrizes solar e eólica, com projeção de projetos de novas fontes como energia eólica offshore (marinha) e hidrogênio verde. Todos os documentos oficiais indicam que essa produção de hidrogênio verde projetada será destinada à exportação e não à demanda doméstica.
As escolhas de localização para a instalação de projetos de parques eólicos no Ceará estão concentradas em áreas onde vivem comunidades tradicionais de pesca, extrativistas, quilombolas e indígenas, muitas vezes em situação socioeconômica vulnerável.
O relatório questionou as instituições financeiras sobre os dados levantados pela pesquisa, das quais apenas o NIB e BNDES responderam: o primeiro destacando que seguiu todas os procedimentos de diligência social e ambiental; e o segundo que têm acompanhado as críticas que têm surgido nos últimos anos sobre os projetos de energia renovável, especialmente no nordeste, e que tem promovido discussões internas e externas visando à mitigação desses impactos.
Os casos de Filipinas, Honduras e Moçambique
Filipinas: Defensores indígenas das comunidades Tumandok foram supostamente ameaçados, assediados e mortos quando a polícia nacional e as forças armadas invadiram suas comunidades após líderes comunitários criticarem o projeto do reservatório hídrico Jalaur River Multipurpose, segundo uma organização da sociedade civil que atua na área. Defensores que relataram sobre o projeto da represa descreveram perseguição, vigilância e “red-tagging” – rotulação de terror pelo governo acusando defensores de serem insurgentes comunistas, criando um ambiente de medo e impunidade.
Moçambique: De acordo com entrevistas no relatório, o planejamento do projeto hidrelétrico Mphanda Nkuwa foi marcado por avaliações de impacto social e ambiental inadequadas, falta de transparência e supressão do engajamento cívico. Os defensores relataram ameaças, violação da liberdade de reunião e um desrespeito geral pelo seu direito de participar dos processos de tomada de decisão.
Honduras: Defensores dos direitos humanos enfrentaram intimidação legal por meio de SLAPPs (Ações Judiciais Estratégicas contra a Participação Pública) por sua crítica ao projeto solar Los Prados, segundo um grupo de advogadas de direitos humanos. Membros da comunidade envolvidos em protestos supostamente foram vigiados e submetidos a ações repressivas por forças de segurança. Os defensores também relataram campanhas de difamação na mídia, restringindo ainda mais sua capacidade de expressar preocupações.
Recomendações da Swedwatch
À medida que o mundo corre para cumprir as metas climáticas, uma transição justa deve incluir as vozes daqueles mais afetados por projetos de energia, e os defensores são essenciais para garantir que os projetos de energia renovável respeitem os direitos humanos e o meio ambiente.
“Governos, empresas e instituições financeiras devem trabalhar juntos para garantir que os direitos humanos sejam protegidos e que os defensores possam atuar sem medo de repressão ou violência. Engajar-se com defensores como parceiros valiosos, em vez de adversários, pode ajudar governos e empresas a garantir que os projetos de energia renovável estejam alinhados com as obrigações internacionais de direitos humanos, mitigar conflitos e promover o desenvolvimento sustentável”, diz Jessica Johansson, membro do programa da Swedwatch e autora principal do relatório.
Recomendações detalhadas para diferentes atores podem ser encontradas no relatório, abaixo as principais estão resumidas:
Recomendações para os governos:
- Adotar legislação sobre a devida diligência em direitos humanos (HRDD) obrigatória para as empresas, destacando os riscos para os defensores e a consulta significativa com os defensores.
- Adotar leis sobre transparência das empresas e acesso à informação.
- Estabelecer e fazer cumprir proteções para os defensores, garantindo que possam atuar sem medo de retaliação, e fornecer remédios legais eficazes para aqueles afetados por violações.
Recomendações para empresas e investidores:
- Fortalecer seus processos de HRDD integrando riscos ao espaço cívico e garantindo um engajamento significativo das partes interessadas com os defensores.
- Adotar e fazer cumprir uma política de tolerância zero contra retaliações direcionadas a defensores (e comunidades afetadas).
- Tomar as medidas apropriadas quando parceiros comerciais ou terceiros cometerem violações em relação às suas atividades comerciais.
Confira a íntegra do relatório: