‘Uma enorme multidão que não mora, acampa. (…) Por outro lado, quantas casas vazias. O luxo e a necessidade convivem lado a lado’. Confira o artigo do Pe Alfredo Gonçalves

Pe. Alfredo J. Gonçalves* – Portal Cepast

Sabemos que o costume dos jubileus remonta ao Antigo Testamento. Basta retomar o capítulo 25 do Livro do Levítico e, seguindo o espírito do ano jubilar, apontar algumas dimensões do resgate bíblico, no enfoque da Pastoral da Moradia e Favela.

A primeira se refere à terra, ao “resgate das propriedades”. Segundo este princípio, “a terra não será vendida perpetuamente, pois que a terra me pertence e vós sois para mim estrangeiros e residentes temporários”. De forma que, “para toda propriedade que possuirdes, estabelecereis o direito de resgate para a terra” (vs. 23 e 24). Procura-se, com isso, impedir a acumulação indevida e a concentração crescente. Semelhante orientação, aplicada hoje à estrutura fundiária do Brasil e de outros países, seguramente promoveria a fixação no campo, diminuiria o êxodo rural, as migrações em massa e a alta densidade nas periferias, ao mesmo tempo que aliviaria muitos problemas derivados da história do latifúndio.

Aqui, porém, não podemos esquecer, de igual modo, a questão da terra urbana. Nos tempos atuais, a população mundial se tornou majoritariamente urbana. No Brasil, quase 90% dos habitantes moram na zona urbana. Também neste caso muitas famílias, por dívida ou pelos mais diversos motivos, podem perder o “terreninho” onde construir a própria casa. O direito à moradia tem absoluta prioridade sobre a especulação imobiliária. Trata-se, na verdade, de duas reformas: a reforma agrária para a pequena produção e a reforma do espaço de habitação – ambas devem ser amplas e profundas, uma redistribuição da terra levando em conta aqueles que dela necessitam para trabalhar, morar e viver. Uma nova oportunidade a quem, ao longo da história, viu-se espoliado e expropriado dos próprios meios de sobrevivência. O jubileu da moradia pode ser a luta pela resistência na terra, a conquista de uma nova terra para trabalhar ou morar, estando onde estiver, a conquista dos direitos fundamentais ao trabalho e à moradia, à vida, a uma cidadania digna e plena.

Depois, vem o resgate dos frutos da terra. “O jubileu será para vós coisa santa, e comereis o produto dos campos” (v.12); “a terra dará o seu fruto, o comereis com fartura e habitareis em segurança” (v.19). Aqui, está em jogo uma política agrícola voltada para os interesses de toda a população, e não somente para poucos privilegiados. Está em jogo também a primazia do mercado interno sobre as monoculturas de exportação. O que e como produzir? De que forma organizar as relações de produção, distribuição, comercialização? Para quem devem estar orientados os produtos do campo? Como oferecer condições técnicas e financeiras para que o trabalhador possa cultivar a terra? – eis as perguntas que devem ser respondidas por uma reforma agrícola real e efetiva.

Com isso, quantos pequenos produtores permaneceriam em suas terras, sem precisar fugir para as cidades ou para outros países, ou passar fome nas periferias mais distantes? E quantos outros poderiam retornar à propriedade, abandonada por falta de meios para trabalhá-la? Vale a pena confrontar este texto com o sonho do profeta (Is 65,17-25), onde se lê que “os homens plantarão videiras e comerão os seus frutos”.

A terceira dimensão diz respeito ao resgate da moradia. “Haverá para elas [as casas] direito de resgate e o comprador deverá liberá-las no jubileu” (v.31). Também aqui, vale o confronto com o mesmo texto de Isaías, quando diz que “os homens construirão casas e habitarão nelas”! O déficit habitacional nos países do Terceiro Mundo, em especial na América Latina, é escandaloso sobre todos os aspectos. No Brasil, de acordo com estatísticas recentes, o déficit de quantidade e qualidade habitacional afeta cerca de 70 milhões da população. As pessoas que continuam chegando às periferias das cidades literalmente “se escondem” em cortiços e nas favelas, ou são rechaçados para periferias longínquas. Ou então perambulam pelas ruas e campos, “sem eira nem beira”. O vaivém frequente de pessoas e grupos familiares sem residência fixa, no Brasil, é algo surpreendente.

Rio de Janeiro (RJ), 04/07/2024 – Fachada da Ocupação Zumbi dos Palmares, no centro do Rio. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Uma enorme multidão que não mora, acampa; não possui casa, mas tenda ou barraco. De acordo com o vento das oportunidades de trabalho, é só levantar a tenda e pôr-se a caminho. Por outro lado, quantas casas vazias – mansões de férias no campo ou na praia, apartamentos, habitações abandonadas! O luxo e a necessidade convivem lado a lado.
Daí a necessidade de uma profunda reforma do solo urbano, o que, ao lado da reforma agrária e agrícola, poderia concretizar o sonho da “casa própria” e da estabilidade domiciliar de tantas famílias. A casa é a roupa da família. Sem ela, o grupo familiar vê-se nu e exposto em praça pública, com sua intimidade escancarada aos olhos dos curiosos. A privacidade fica comprometida, torna-se praticamente impossível manter a dignidade. O resgate da família passa pela cobertura de um teto, de um refúgio, de um lugar secreto e íntimo, enfim, de um lar.

O resgate das relações familiares vem a seguir. “Será para vós um jubileu: cada um de vós retornará a seu patrimônio, e cada um de vós voltará ao seu clã”. Retorna o tema da promessa feita por Deus a Abraão no capítulo 12 do Livro do Gênesis: um novo país e uma descendência numerosa constituem duas coisas inseparáveis. Terra e povo se complementam e se requerem mutuamente. A cidadania passa pelo uso livre e salutar da terra. Sobre esta, os laços humanos mais fortes e duradouros se mantêm e formam um “lar”. Fora dela, o relacionamento corre perigo. Árvore sem raiz definha e morre. A saída da terra natal, seja esta de trabalho ou moradia, constitui um golpe para muitos. Daí a solidão, a saudade, a anomia, a perda de valores e referências, a separação, o sofrimento tão presentes nas periferias urbanas.

A permanência na terra tende a garantir com maior solidez as relações familiares. Fora do solo onde enterraram seus mortos, os migrantes têm sérias dificuldades de manter a unidade familiar, comunitária, de compadrio. A solidariedade fica comprometida. Mais uma vez, a árvore busca o sol e produz fruto quando tem as raízes na terra. A família busca seu horizonte e desenvolve redes de defesa e de ajuda quando tem o chão debaixo dos pés. No espírito bíblico, as relações de parentesco ajudam a consolidar a verdadeira cidadania. Pátria e família se interpenetram, uma complementando, enriquecendo e sustentando a outra. Tais relações de parentesco, no caso da cidade, não raro se estreitam em ruas, quarteirões ou bairros mais ou menos homogêneos. A migração, instintivamente, realiza a “reunião familiar”, no sentido de manter a família unida enquanto vizinhança. Laços vulneráveis quando a especulação imobiliária decreta o despejo.

Entretanto, do ponto de vista da migração, terra pode ser também uma metáfora: “para o migrante a pátria é a terra que lhe dá o pão”, diz Scalabrini, o apóstolo dos migrantes. Esteja onde estiver, no campo ou na cidade, o migrante pode garantir a unidade de sua família se e quando conquistar condições reais de vida. Num mundo onde o capital e o comércio fluem sem fronteiras e os migrantes são sistematicamente barrados, a luta pela cidadania ganha caráter universal, significando não tanto a permanência neste ou naquele país, mas a possibilidade de vida em qualquer lugar do planeta.

Por fim, o resgate da pessoa humana. “Se o teu irmão se tornar pobre, estando contigo, e vender-se a ti, não lhe imporás trabalho escravo” (v.39). “Na verdade, eles [teu irmão e seus filhos] são meus servos, pois os fiz sair da terra do Egito, e não devem ser vendidos como se vende um escravo. Não o dominarás com tirania, mas terás o temor de Deus” (vs. 42 e 43). Nada justifica a escravidão, muito menos as dificuldades financeiras de alguém. Vem à lembrança as lamentações dos “homens do povo e suas mulheres” no livro de Neemias (5,1-6). Isso faz pensar na precariedade do trabalho, especialmente entre os migrantes. Ressurgem e multiplicam-se relações e formas de trabalho primitivas e arcaicas. Vejamos algumas: trabalho escravo e infantil, tão presente nos países pobres do Terceiro Mundo; trabalho temporário, que isenta as empresas de encargos sociais e acarreta instabilidade para a família; trabalho domiciliar ou autônomo, eufemismo para descrever a auto exploração; trabalho feminino, com salários inferiores para serviços iguais.

Andando de um lado para outro, num vaivém sem fim, depois de rechaçados em todos os lugares, quantas pessoas nas periferias acabam por aceitar os serviços mais difíceis, praticamente sem qualquer remuneração! A porta de entrada no mercado de trabalho, para muitos deles, é constituída pelas tarefas normalmente rejeitadas, sujas e pesadas. Por vezes, a condição de irregularidade e de clandestinidade os leva a submeter-se a condições de vida e trabalho extremamente desumanas, tanto nos países centrais quanto nos países periféricos. Resgatar as condições de trabalho é resgatar a dignidade humana. O jubileu da moradia e periferia passa necessariamente pelas relações de trabalho, chave indispensável na transformação da sociedade.

*texto elaborado a partir do original Jubileu dos Migrantes

Deixe um comentário