Durante seminário que debateu a transição energética, organizações sociais visitam comunidade impactada por megaprojetos e alertam sobre a energia renovável que gera risco
Por Cláudia Pereira | Articulação das Pastorais do Campo – APC
“Água sim, urânio não, água para o povo e não para a mineração e o vento não está para venda não”. A frase ecoou na abertura do seminário que debateu os modelos de transição energética no Brasil, realizado entre os dias 2 e 4 de abril, em Fortaleza (CE). O tema “transição energética” é um dos assuntos mais comentados atualmente, em razão da crise climática. Mas afinal o que significa transição energética? Seguindo o significado da primeira palavra que é indicativo de mudanças, parece fácil de entender se o tema não fosse tão complexo e agressivo para o modo de vida dos povos e comunidades tradicionais.
A transição energética é um conceito aplicado às mudanças de estruturas das matrizes energéticas que pode ser de curto a longo prazo. Esmiuçando o seu significado, a transição energética faz referência à mudança de uma matriz que tem como sustento os combustíveis fósseis, a exemplo do petróleo, carvão e o gás natural, para fontes de energia que se “regeneram” no meio ambiente, também chamadas de renováveis.
O Seminário “Transição ou transação energética? Agenda internacional, financiamentos e repercussões” aprofundou a reflexão sobre os modelos de transição energética e os impactos socioambientais provocados pela exploração de energia renovável diante ao cenário da crise climática. O estado do Ceará, nos últimos três anos, tem investido em negociações, acordos e legislações para participar do mercado de exportação de hidrogênio verde. O Novo Programa de Aceleração do Crescimento (Novo PAC), estimou o valor de R$ 22 bilhões para a implantação da modalidade de energia eólica no setor privado. Só no estado do Ceará, é previsto o total de 10 empreendimentos para os próximos anos.
Com o questionamento “Transição ou transação energética?”, o seminário começou com intercâmbio nas comunidades impactadas por megaempreendimentos relacionados à energia. Os participantes se dividiram em grupos e visitaram o assentamento da reforma agrária de Queimadas, em Santa Quitéria, que enfrenta a especulação de exploração de urânio; o Conjunto Palmeiras, em Fortaleza, que buscou alternativas agroecológicas frente à especulação imobiliária que destruiu uma área de preservação; a comunidade quilombola do Cumbe, em Aracati, que enfrenta um campo de energia eólica e a carcinicultura (técnica de criação de camarões em cativeiro). A reportagem da Articulação acompanhou a comitiva que visitou a comunidade do Cumbe.
Intercâmbio na comunidade quilombola
Sob um sol forte, temperatura de 32º e sensação térmica de 40º que fazia naquele segundo dia do mês de abril, a comunidade quilombola recebeu a comitiva formada por representantes de organizações sociais. Após a acolhida, os integrantes participaram do momento de escuta das lideranças. A visita ao território teve como objetivo analisar os modelos hegemônicos de transição energética, suas relações com a política climática e a política de financiamento da transição que impactam a vida dos povos da cidade, do campo, das florestas e das águas.
A comunidade quilombola de pescadores/as artesanais e marisqueiros/as fica a 150 km de Fortaleza e ao lado de Canoa Quebrada, ponto turístico mais famoso do estado do Ceará. A comunidade é composta por mais de 110 famílias que se reconhecem como quilombolas. Uma série de violações de direitos humanos compõem os enfrentamentos no território, que compromete inclusive a produção de alimentos para consumo da comunidade. Os geradores destes conflitos envolvem a usina eólica, a carcinicultura e políticos da região.
“Nós começamos a reparar a mortandade dos caranguejos, peixes e mariscos que colhíamos”
O território possui muita água, mas o abastecimento é de baixa qualidade. Existe produção de energia, porém as famílias pagam caro pelo serviço. A fazenda de produção de camarão, além de invadir o território, causou impacto socioambiental gigantesco. Os grandes empreendimentos que chegaram na década de 1990 com a carcinicultura se intensificaram nos anos 2000 com a implantação da usina eólica. O impacto ambiental gerado pela usina é comprovado pela Universidade Federal do Ceará (UFC), que alertou para o desastre causado pelo desmatamento e soterramento de dunas que passaram pelo processo de terraplenagem; ou seja, as lagoas foram soterradas e os manguezais, que já sofriam com a degradação da carcinicultura, foram mortos.
“Nós começamos a reparar a mortandade dos caranguejos, peixes e mariscos que colhíamos. Não entendemos a razão. Ficamos nos questionando o que estava acontecendo. Aqui é um aquífero de água doce que inclusive abastece a região. Depois percebemos que a morte dos peixes e mariscos era decorrente da carcinicultura. A água de dejetos das fazendas contaminou o mangue, contaminou tudo. O nosso sustento estava ameaçado, e nesse momento aumentou ainda mais a nossa luta”, partilhou Luciana dos Santos, integrante da comunidade.
Assista a vídeorreportagem sobro Quilombo do Cumbe:|
Entre os enfrentamentos constantes em defesa do território, por um tempo a comunidade ficou sem utilizar de seu próprio espaço: as famílias foram impedidas de realizar atividades e frequentar a praia. A comunidade articulada e organizada paralisou a usina por 19 dias e o resultado foi uma vitória importante. Após a empresa perder bilhões, foi realizada uma audiência no município para reivindicar direitos e resultou na assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) pela empresa, garantindo “redução de danos” e permitindo o direito de usufruir do espaço que sempre foi da comunidade centenária e quilombola.
“Imagina a situação. Somos pertencentes deste território e chega alguém que instala seu empreendimento e impõe regras de como devemos nos comportar. Nós, povos tradicionais, tínhamos que deixar de pescar e de praticar as nossas atividades por causa de imposições. Denunciamos as diversas violações da usina eólica e foi assinado um termo de conduta do qual a empresa responderá por qualquer dano causado contra a comunidade”, comentou João do Cumbe, historiador e ambientalista do Quilombo do Cumbe.
Após o momento de partilha, a comunidade realizou uma visita com a comitiva na área da usina eólica que foi obrigada a liberar o acesso para a comunidade. O início do empreendimento foi realizado pela empresa Bons Ventos e atualmente é administrado pela empresa CPFL Renováveis, que tem sede no estado de São Paulo. A CPFL obteve lucro de R$ 1,32 bilhão só no quarto trimestre de 2023, segundo informações da Bolsa de Valores de São Paulo.
Enquanto a comitiva visitou a comunidade, carros e seguranças da empresa observavam a movimentação e anotaram as placas dos carros que entraram na área das torres eólicas.
Reflexões dos modelos de transições e a realidade das comunidades impactadas
De volta à Fortaleza, no dia seguinte os grupos partilham as experiências no debate que foi realizado no Auditório Murilo Aguiar, da Assembleia Legislativa do Ceará. Na apresentação dos painéis, o sinal de alerta foi apontado diversas vezes. Entre os alertas, destaque para observar com atenção a narrativa do debate e ações que se referem à pauta sobre a transição energética, que será inserida na agenda internacional nos próximos dois anos nas cúpulas do G20, Brics e na COP 30, que será realizada no Brasil em 2025.
Os grandes empreendimentos que envolvem o setor de energia eólica, fotovoltaica, mineração e outros que impactam as comunidades, são realizados com anuência do Estado, recursos públicos, sem consulta aos territórios, e beneficiam grandes corporações e o agronegócio. “O aumento da oferta de energia renovável pode causar risco de segurança de abastecimento. Além dos impactos ecológicos, existe a questão do equilíbrio elétrico”, expressou a economista Clarice Ferraz, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que contribuiu para as reflexões no seminário.
De acordo com os dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), o país possui mais de 900 usinas eólicas e 80% instaladas na região nordeste. O governo investiu mais de R$ 175 bilhões para acrescentar 25 gigawatts (GW) de potência que foram contratados em leilões. O que significa que a implementação das usinas eólicas sem consulta continuará impactando a biodiversidade e gerando riscos profundos para os povos e comunidades tradicionais da costa brasileira.
Em dois dias de reflexões, o seminário analisou o contexto atual, a atuação das instituições que financiam os grandes empreendimentos, o papel do governo brasileiro diante aos grandes grupos econômicos e principalmente o racismo ambiental que os povos vivenciam diariamente e são os que mais sofrem diante dos megaprojetos.
“O que está sendo projetado para ser ocupado no mar equivale a 55 cidades de Fortaleza. Estão sendo projetadas 27 usinas no estado do Ceará e mais uma quantidade no estado do Rio Grande do Norte. Isso irá destruir a pesca artesanal e é isso que precisamos fazer ecoar no G20”, alertou Soraya Tupinambá, socioambientalista do Instituto Terramar.
O seminário finalizou com preposições que surgiram das reflexões e dos questionamentos referentes às ações das agendas a nível local, nacional e internacional, que inclui o G20 e a COP30. Foram indicados vários elementos que serão organizados e encaminhados para traçar caminhos de enfrentamento e dar visibilidade para as denúncias de danos ambientais e as diversas violações contra a vida dos povos. A expansão energética de renováveis beneficia grupos de interesse do capital, a energia eólica não é limpa, degrada e a exploração de urânio ameaça toda forma de vida.
A organização do evento disponibilizou materiais com conteúdos ricos a exemplo do Caderno para entender o G20 e do ebook Da transição energética à transição ecológica: a contribuição da justiça ambiental e um convite ao debate. No último dia, foi exibido o curta-metragem o “Maré braba”, uma animação dirigida por Pâmela Pelegrino, que retrata a reação das águas do mar às mudanças climáticas:
Confira as imagens das visitas: