“São as mulheres as credoras, desapropriadas ao longo da história de colonização patriarcal”. Confira a reflexão na revista dos 25 anos do Jubileu Sul
Magnólia Said*
Rosilene Wansetto**
Um pouco de história…
A dívida faz parte da nossa história de país colonizado. Quando o Brasil foi invadido e virou colônia de Portugal, além de matar e escravizar povos indígenas, eles tiraram daqui, só de ouro, 75 mil Kg, que significaram mais de U$ 5,5 bilhões, além de outros minérios. Para que o Brasil ficasse independente de Portugal, D. Pedro I colocou como condição que o governo assumisse a dívida que os portugueses tinham com a Inglaterra. E foi o que aconteceu.
O credor do Brasil passou a ser a Inglaterra. Essa dívida externa cresceu mais ainda com a guerra do Paraguai, pois o governo pediu novos empréstimos à Inglaterra para custear um conflito que também lhe interessava. Os juros foram crescendo e os governos que seguiram se endividando cada vez mais. Durante os mandatos de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart, até a década de 1960, a dívida chegou a US$ 3,8 bilhões.
É nessa crise que o governo Jango recorre ao Fundo Monetário Internacional (FMI) pela primeira vez, com pedido de empréstimo, mas o grande endividamento externo ocorre na década de 1970, quando são contratados empréstimos e financiamentos para expandir a economia nacional. Nesse período o governo brasileiro realizou grandes investimentos em infraestrutura para a indústria, mineração, rodovias, sem levar em conta os investimentos em direitos sociais.
Nessa última década, a dívida só cresceu. Em 2023, chegou a R$ 4,3 trilhões. Segundo a Auditoria Cidadã da Dívida (organização da sociedade civil que monitora o endividamento público), a dívida pública consumiu, em 2023, 43,23% do Orçamento Nacional. No mesmo ano, R$1,89 trilhões foram para o pagamento de juros e amortizações. Em 2024 foram reservados cerca de R$ 2,5 trilhões para o mesmo pagamento, equivalente a 45,98% do orçamento aprovado. Vale destacar que estes recursos reservados para o pagamento da dívida, juros e amortizações vão direto para o bolso dos chamados investidores e rentistas, que nada mais são do que especuladores, são os sanguessugas de recursos públicos, do dinheiro do povo. Lucram sem trabalhar.
O que está por trás dos empréstimos
Empréstimos de instituições financeiras multilaterais são mecanismos de interferência na estrutura político-organizativa e social dos estados nacionais, além de evidenciarem o papel de produtor e influenciador de uma cultura hegemônica, a serviço do capital financeiro. Geram uma dívida impagável promovendo enorme sangria nas finanças públicas dos governos, tanto pela retirada de um volume considerável de recursos orçamentários para pagamento de juros, amortizações e rolagem dessa dívida, como pela via da emissão de novos títulos públicos. É por esses empréstimos que os governos acabam se tornando escravos de uma dívida que só cresce e das imposições dos bancos internacionais.
Nos anos de 1980, para obterem empréstimos os países se submeteram a um Programa de Ajuste Estrutural imposto pelo FMI com objetivo de ajustar as contas, a organização e a estrutura desses países, os quais eram vistos como ‘gastadores de recursos e pouco desenvolvidos’ e, por isso, era necessário ‘enxugar’ os gastos, o famoso Estado mínimo. O bom desempenho do Programa de Ajuste por parte de um país era também condição para que fossem avalizados novos empréstimos com outras instituições.
Nos anos seguintes, em atendimento às medidas do Ajuste, o governo brasileiro abre o país à entrada de capitais estrangeiros, emitindo títulos da dívida pública, à custa da produção nacional. Aqui começa sua submissão às metas de superávit primário. Para cumprir essas metas, garantindo o pagamento dos juros e amortizações da dívida pública, o governo abriu nossas fronteiras, oferecendo territórios indígenas ao setor extrativo, mineiro e energético, descumprindo legislações que reconhecem os direitos desses povos. Oferecendo nossas empresas ao capital privado, abdicando da soberania do país sob a falsa alegação de que não tinha recursos para pagar as contas, pois o Brasil estaria “quebrado” – além de agregar à sua política de geração de renda iniciativas pautadas por uma lógica individualista e sem lastro estrutural, como é o caso do empreendedorismo. Essa ideia hoje não é só investimento dessas instituições, mas de todas as empresas e bancos que exploram e sugam as pessoas, em especial as mulheres e elas nem percebem.
O discurso da emancipação é o que fica, com aparente sinônimo de libertação. Essa justificativa tem sido utilizada até hoje, como se vê nas medidas anunciadas em 2023 pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad para cumprir o chamado Arcabouço Fiscal (versão atualizada do Ajuste Estrutural) que, além de abrir as portas para o fim das despesas obrigatórias com educação e saúde, aponta cortes nas áreas de saneamento, serviço social, proteção às mulheres, moradia, emprego… Ou seja, deixa-se livre os gastos com o pagamento da dívida pública, apertando o cerco do conjunto dos investimentos na área social.
O mais grave é que esses cortes se concentram em áreas com um número muito expressivo de mulheres e que dependem de mulheres. O país encontra-se dividido entre a dívida pública e os investimentos em políticas sociais, tendo o governo escolhido proteger o setor financeiro, garantir o pagamento dessa dívida impagável – favorecendo o 1% mais rico – e sacrificar as políticas sociais que afetam a maioria da população brasileira, especialmente mulheres, negros/as, povos indígenas e as periferias das cidades.
Lugar de mulher não é onde o sistema financeiro quer
As mulheres estão no topo da pirâmide como credoras de uma larga dívida histórica, ecológica, financeira, étnico-racial, social e de gênero. Temos sido vítimas históricas do método mais sutil e violento que o capitalismo já experimentou com as mulheres – o trabalho reprodutivo. E é nesse lugar, o lugar da casa onde as opressões se articulam, que se produz endividamento.
É por isso que o debate sobre a dívida não pode deixar de ser feito junto com a discussão sobre os direitos fundamentais, sobre o endividamento das famílias para terem acesso a esses direitos além de uma reparação histórica.
As pessoas se endividam na compra de alimentos, de medicamentos, para pagar tarifas públicas, para se comunicar. O endividamento é, portanto, o meio de sustentação da vida cotidiana, principalmente via empréstimos junto a bancos ou a agiotas. É desse endividamento forçado que o sistema financeiro se aproveita. E o ato de sustentar recai quase exclusivamente sobre as mulheres, porque nós temos uma relação com o dinheiro diferente da relação que os homens têm. Para os homens dinheiro é poder; para as mulheres é proteção, cuidado, direitos sociais garantidos.
Basta imaginarmos a partir das nossas casas o que o homem e a mulher fazem quando recebem dinheiro. Nós comprometemos mais nossas rendas do que os homens, assumindo o papel de principais provedoras da família. A dívida tem ainda, no caso das mulheres, um componente psicológico: ela gera culpa. Daí, para não se expor, elas se endividam mais ainda.
Estudo mais recente do SPC – Brasil (feito em 2018), mostra que de cada 10 devedores, 6 são mulheres, o que representa mais de 38 milhões de brasileiras. Os compromissos mais comuns que geraram a dívida foram: contas de água, luz, cartão de crédito, crediário, telefonia, aluguel e TV por assinatura.
Mais de 90% dessas devedoras, incluindo homens, pertencem às classes C e D – as que mais perderam rendimentos no período estudado. Isso não significa dizer que as mulheres não sabem controlar o dinheiro. Isso está relacionado à desigualdade salarial, proteção da família, juros altos, trabalho precário e publicidade abusiva. É importante observar que na relação salarial as mulheres, mesmo ocupando a mesma função que um homem, têm uma remuneração inferior. Isso é parte de um sistema de manutenção desse modelo de sociedade, sendo a dívida e o patriarcado pilares de sustentação das desigualdades e do próprio capitalismo.
O fato é que o sistema da dívida vem servindo ao longo do tempo para fortalecer o modelo patriarcal que o constituiu e cujo “modus operandi” se aprofundou mais ainda com o ultraliberalismo. Basta olhar as pesquisas relacionadas ao trabalho das mulheres em diferentes dimensões. Ao longo da história, elas sempre estiveram em posições subordinadas, seu trabalho físico e intelectual era invisibilizado, ignorado e mal remunerado.
O mercado, que é a mola impulsionadora do capitalismo, sempre foi regido pelas desigualdades de gênero. Essa matriz histórico-colonial que reúne, articula, produz e é produzida pelas diferentes estruturas de dominação, é atualizada constantemente, para se adaptar às novas exigências do capitalismo global.
Ocorre que como vivemos em uma sociedade patriarcal e machista que não reconhece o trabalho reprodutivo que a mulher realiza como sendo trabalho, o capitalismo se aproveita dessa cultura para continuar explorando seu corpo (pelos sentimentos, pela procriação e pela sexualidade) e sua força de trabalho. Inaugura novas condições de exploração e de lucro que impõem transformações no cotidiano das mulheres e atualiza o patriarcado que se junta com o poder do privilégio.
As políticas públicas, que poderiam contribuir para mudar essa condição das mulheres, são sempre substituídas pelo mais fácil – programas assistenciais que não se sustentam estruturalmente. A política de Ajuste Fiscal (EC 95 ou Arcabouço Fiscal) é a medida que mais tem contribuído para a exclusão das mulheres dos processos de desenvolvimento e inclusão social. Para ajustar os países à nova ordem econômica, essa política foi sendo efetivada usando a visão naturalizada de que a mulher é inferior ao homem em todos os aspectos.
Por isso, quando o governo vai definir quais políticas e projetos serão elaborados, é natural para um governo que é dirigido por homens brancos, que o lugar previsto para a mulher seja o da reprodução no campo do trabalho, o da responsabilidade com o cuidado da família e o de administradora de pequenos negócios, penalizando-a na sua capacidade de pensar, produzir e fazer política. Ou seja, tem sido pela via dos lugares de subalternidade das mulheres na sociedade e da exploração, que os governos e as instituições financeiras projetam o desenho de suas políticas, mantendo o trabalho não remunerado e/ou mal remunerado dessas mulheres, canalizando assim, mais lucros para o sistema financeiro e para os especuladores.
Essa visão sobre as mulheres se enquadra no neoliberalismo porque as políticas sociais neoliberais são marcadas pelo caráter compensatório e emergencial, planejadas para amortecer as tensões sociais que possam vir a ocorrer como resultado de medidas liberalizantes. Os programas de transferência de renda condicionada, como o Bolsa Família, também se enquadram nessa perspectiva e manejam, em grande medida, as tarefas reprodutivas das mulheres, tratando-as como “gestoras da pobreza”.
O neoliberalismo configurou uma inserção precária das mulheres no mercado de trabalho, sobrecarregando-as com responsabilidades e empregos em que são super exploradas, somadas ao trabalho reprodutivo que se mantém em larga medida sob a responsabilidade de mulheres negras e pobres.
De outro lado, para efetivação de sua política de gênero, o Banco Mundial em especial, manipulou conceitos e reivindicações históricas do movimento feminista, conseguindo durante muitos anos envolver muitas líderes dos movimentos de mulheres com uma falsa participação e falso poder de decisão.
Se formos recuperar tudo o que foi perdido durante décadas por influência dessas instituições, poderíamos chegar a mais uma conclusão: somos nós as credoras, as desapropriadas ao longo da história de colonização patriarcal, das políticas de fortalecimento e valorização de nossas capacidades, das políticas de proteção social, ambientais, financeiras e de gênero. É para as mulheres que devem ser restituídos e pagos juros, não ao mercado especulativo como tem sido recorrente.
Nada é impossível de mudar
O que cabe a nós, diante de um contexto à beira da insustentabilidade? Termos a capacidade de reverter essa lavagem cerebral que os instrumentos do capital tentam consolidar. Para enfrentarmos esse sistema de morte, é preciso que enfrentemos fundamentalmente o patriarcado, pois é em nome dele – do poder patriarcal – e por causa dele, que as mulheres seguem cada vez mais empobrecidas e que a violência doméstica e tantos feminicídios são praticados.
Nesse sentido, outra visão de economia nos desafia: a economia feminista. Ela traz o debate de gênero para as políticas macroeconômicas, na perspectiva de influenciar a economia em seus pressupostos, fazendo, portanto, uma crítica à economia convencional por esta querer que suas teorias sejam universais. Insistirmos que políticas para as mulheres estão sim, colocadas na categoria de políticas econômicas e, portanto, as mulheres devem estar envolvidas no pensar e produzir sobre essas políticas.
*Advogada agrarista, educadora feminista, com Especialização em Economia Ecológica e em Saúde, Trabalho e Meio Ambiente para um desenvolvimento sustentável pela Universidade Federal do Ceará. Coordenadora de projetos do Centro de Pesquisa e Assessoria – Esplar, membro da Rede Jubileu Sul Brasil.
**Mestra em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Militante feminista, educadora popular e aprendiz. Atua como Secretária Executiva da Rede Jubileu Sul Brasil desde 2001.
Artigo originalmente publicado na revista “Construindo resistências desde os povos e territórios“, confira a íntegra da publicação clicando aqui.
Referências
Esplar Centro de Pesquisa e Assessoria. Quanto vale uma vida? Povos indígenas e rurais exigem reparação das dívidas ecológicas e sociais. Fortaleza, 2021.
FURTADO, Fabrina. A dívida não acabou. Jubileu Sul Brasil. São Paulo, 2012.
JUBILEU SUL BRASIL. Cartilha 6: Como o orçamento e a dívida pública afetam a vida das mulheres? – 1ª Edição. São Paulo, 2023. Disponível em: http://jubileusul.org.br/eixos-prioritarios/divida-publica/cartilha-6-como-o-orcamento-e-a-divida-publica-afetam-a-vida-das-mulheres-2/
JUBILEU SUL BRASIL. Jubileu Sul Brasil 15 anos. História, reflexões e resistência contra toda forma de dominação. São Paulo, 2014.
JUBILEU SUL BRASIL. Revista Ação Mulheres. São Paulo, 2023.
JUBILEU SUL BRASIL. Manual para lideranças populares com atuação em realidades de violação dos direitos humanos. São Paulo, 2023. Disponível em: http://jubileusul.org.br/biblioteca/manual-para-liderancas-populares-com-atuacao-em-realidades-de-violacao-dos-direitos-humanos/
QUINTELA, Sandra e WANSETTO, Rosilene (org.) Brasil, 200 anos de (In)dependência e dívida. 1. ed. – Fortaleza: Karuá, 2022. Disponível em: http://jubileusul.org.br/biblioteca/brasil-200-anos-de-independencia-e-divida/
SAID, Magnólia. Economia com jeito de Mulher. Fortaleza. Esplar, 2014.
SAID, Magnólia. Revista “A Dívida Pública e seu impacto na vida das mulheres”. São Paulo, 2020. Disponível em: http://jubileusul.org.br/biblioteca/a-divida-publica-e-seu-impacto-na-vida-das-mulheres/