Por Angela Mendonça, do Brasil de Fato
Na última sexta-feira (13), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 28 anos. Com ele vivemos, ou deveríamos viver, “novos tempos” na infância e juventude brasileiras. A partir dele, ocorreram muitas alterações na concepção de infância, adolescência, família e na responsabilização pela implementação e controle social de políticas garantidoras de uma vida plena e feliz. Mas ainda temos muito que caminhar. Entenda por quê:
1- “Pobreza não é defeito!” – Isso é dito popular. E concorda com o texto do ECA, que afirma, no artigo 23, que “a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar. Não existindo outro motivo que, por si só, autorize a decretação da medida, a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, que deverá, obrigatoriamente, ser incluída em serviços e programas oficiais de proteção, apoio e promoção.” Infelizmente, os dados nacionais indicam que grande parte das crianças e adolescentes brasileiras acolhidos em instituições de atendimento ainda são oriundas de famílias empobrecidas e o motivo do afastamento é a denominada “negligência familiar”, muito caracterizada pelas dificuldades de sustento.
2- “Criança e adolescente também é gente! É o que diz a voz do povo. O ECA, estabelece no artigo 3º que “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por Lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”.Entretanto, cotidianamente, observa-se, tanto no âmbito doméstico quanto das instituições – como escolas, serviços de convivência, shoppings centers, praças e ruas – muitas formas de discriminação em razão das roupas, do uso de adereços, de tatuagens, etc.
3 – Criança tem direito à infância! Sabemos como isso é importante. No artigo 16 do ECA identificamos essa garantia. “O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais; direito à opinião e expressão; crença e culto religioso; brincar, praticar esportes e divertir-se; participar da vida familiar e comunitária sem discriminação; participar da vida política na forma da lei e buscar refúgio, auxílio e orientação.” É lamentável, no entanto, reconhecer que parcela importante de nossas crianças e adolescentes têm cerceado o direito ao brincar, participar de atividades comunitárias e divertir-se em razão da violência urbana, da inclusão no trabalho precoce e precarizado e da “adultização e erotização” da infância.
4 – Criança precisa de carinho! Os maus tratos e a violência contra crianças e adolescentes causam bastante preocupação na comunidade. A maioria das pessoas acredita que crianças e adolescentes precisam de afeto, cuidado e presença positiva dos adultos. E esse direito está plenamente garantido no artigo 17 do ECA. “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. Segundo o Estatuto, “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.” Infelizmente, muitas crianças e adolescentes ainda têm esses direitos básicos diariamente violados.
5- “Família é tudo!” Toda criança e adolescente tem o direito a ter uma família natural, ampliada, afetiva ou substituta. Ser bem cuidado por uma família, aprender a conviver e estabelecer vivências positivas traz para crianças e adolescentes o sentimento de segurança e pertencimento tão necessários para o desenvolvimento pleno, assim como os cuidados físicos e educacionais. Por isso, o ECA prevê no artigo 19 que “é direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral.” Assim, não importa o “desenho familiar”. O importante é sua função! Pode ser família com diferentes configurações (pai, mãe e filhos, mães e filhos(as), pais e filhos(as), avós, irmãos mais velhos, tios). O que, de fato, precisam é de um lugar seguro e acolhedor, com pessoas que possuam vínculos afetivos e presença significativa para que possam crescer com afeto e limites”, diz o texto. Novamente, não é preciso muito para reconhecer que o Brasil ainda deixa bastante a desejar na garantia dessa condição.
5- “Filho(a) é filho(a) sempre! Os relacionamentos e casamentos não são eternos, mas filhos nos vinculam para sempre. Não há divórcio de filho e ambas as partes de um relacionamento têm igualdade de direitos e deveres, diz a linguagem popular. O ECA também entende a situação dessa maneira. Os artigos 20,21 e 22 do Estatuto afirmam que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. E continua, ao dizer que “o poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência”. No artigo 22 está explícito que “aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais”. “A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança, devendo ser resguardado o direito de transmissão familiar de suas crenças e culturas, assegurados os direitos da criança estabelecidos nesta Lei”. Observa-se, todavia, que a violação do direito pleno à convivência familiar acaba materializada pela incidência cotidiana da alienação parental e as dissoluções de relacionamentos e casamentos em muitos casos, em razão dos conflitos do mundo adulto, tem significado para muitas crianças e adolescentes, intenso sofrimento psíquico e abandono material e afetivo.
Muitos estudiosos têm afirmado que nunca antes na história da humanidade ocidental se estudou tanto a infância e a adolescência, reconhecendo este tempo humano em sua dimensão cultural e social, podendo denominar-se “infâncias e adolescências” considerando suas singularidades e peculiaridades. Aspectos como o desenvolvimento, a psiquê infantil, saúde física e mental, impactos da publicidade e mídias e a importância deste período, considerado “infância e adolescência”, nunca foram tão pesquisados e estudados como atualmente. Por outro lado, paradoxalmente nunca se viveu tão pouco este tempo. Vivemos o denominado “encurtamento da infância” e o “entristecimento da infância”.
Nesse sentido, o Estatuto é, portanto, mais um dos importantes instrumentos de reafirmação deste tempo próprio, único e profundamente marcante da experiência humana e do processo civilizatório. Mas ainda temos muito que fazer. Os 28 anos do ECA do ponto de vista histórico são “quase nada” perto dos mais de 500 anos de violação de direitos da criança e do adolescente no Brasil e representam contraditoriamente, um grande legado em razão da implementação e tradução de um novo olhar e uma nova perspectiva humanizadora. Assim, parte importante do contexto atual de “comemoração do ECA” diz respeito à necessidade que temos, enquanto país, de resistir à onda de “desproteção e retrocesso social” em voga na atualidade e que pode ser percebida pela crescente manifestação por projetos que defendem a redução da maioridade penal, a criminalização da pobreza e a diminuição da proteção estatal às populações vulneráveis.
Temos, como sociedade, a obrigação histórica, ética e ideológica de não abrirmos mão daquilo que representa, em última análise, um projeto de país que caiba a todos(as) e onde todos(as) têm lugares, principalmente, as crianças e os adolescentes.
Angela Mendonça é pedagoga bacharel em Direito, especialista em Administração Pública e Direito educacional, assessora no Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança, Adolescente e Educação do Ministério Público do Paraná e parceria do Instituto Aurora.
Edição: Laís Melo