Paulo Victor Melo | Especial para o JSB
Não faz muito tempo, seu moço
Nas terras da Paraíba
Viveu uma mulher de fibra
Margarida se chamou
E um patrão com uma bala
Tentou calar sua fala
E o sonho dela se espalhou.
A cantoria do artista cearense Zé Vicente, na música Canção pra Margarida, já nos diz muito sobre quem foi Margarida Maria Alves, camponesa de Alagoa Grande, na Paraíba, que nos ensinou que “medo nós tem, mas não usa”.
Num momento em que o Brasil é governado por ameaças de tanques, chantagens e acordões políticos, verborragias cotidianas, mentiras e ódio contra os grupos historicamente vulnerabilizados, a afirmação de Margarida Alves deve ser um farol, afinal, sim, somos humanos e, por isso, temos medo. Mas deixemos o medo de lado e lutemos porque são as nossas vidas que estão em jogo.
Nascida em 5 de agosto de 1933, filha de camponeses e descendente de indígenas (por parte do pai) e de negros (por parte da mãe), Margarida teve a própria vida – e dos seus – sob ameaça permanente.
Ainda na infância, Margarida viu sua família ser expulsa das terras em que vivia pela ação de latifundiários. A experiência familiar foi, certamente, fundamental para a trajetória de Margarida em defesa do direito à terra e ao território. Afinal, o que Margarida viveu era uma expressão do contexto enfrentado por camponeses e camponesas. O que ela enfrentou era uma questão coletiva.
Um indicador da dedicação de Margarida à coletividade é o fato de que, durante os 23 anos em que ela esteve na direção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, como tesoureira ou na presidência, a entidade sindical moveu mais de 600 ações trabalhistas.
“Eu via quando os trabalhadores rurais chegavam para contar sobre as ameaças. Ela estava sentada no birô dela, se levantava com o chapéu na cabeça, aquela sandália no pé, aquele vestido comprido franzido, também de manga comprida, e dizia: ‘Meu filho, isso não vai acontecer, não. E eu não tenho medo. Eu não tenho medo de falar.’”
Este depoimento, de quem conhecia bem a incansável Margarida, foi de Luzia Soares Ferreira.
O primeiro contato entre Luzia e Margarida aconteceu durante um curso de corte e costura oferecido pelo sindicato para a formação profissional de mulheres camponesas. O curso era parte de um programa mais amplo, que envolvia também atividades de alfabetização para adultos a partir dos métodos de Paulo Freire.
“Os trabalhadores todos eram analfabetos, tanto homens quanto mulheres. A gente ia pegar a assinatura deles, mas eles não sabiam escrever o próprio nome. Margarida então dizia: ‘Minha gente, vamos botar uma escola aqui para esse povo aprender’. Juntamos eu, ela e Carmelita, e montamos uma escola dentro do próprio sindicato”, relembrou Luzia, em uma entrevista concedida há dois anos para o jornal Brasil de Fato.
Luzia, que criou o Movimento de Mulheres Trabalhadoras da Paraíba junto com Margarida Alves em 1981, faleceu este ano.
Uma “flor” que incomodava os poderosos
Batizada com o nome de uma flor comumente vinculada ao amor, Margarida era uma verdadeira revolucionária, na acepção de Che Guevara, de que estas e estes são movidos por grandes sentimentos de amor.
Mas nas batalhas de Margarida em defesa de direitos trabalhistas como carteira assinada, jornada diária de oito horas, descanso semanal, décimo terceiro salário, educação dos filhos e filhas, licença maternidade dentre outros, além da sua luta pedagógica – que formava politicamente dezenas e dezenas de camponesas e camponeses – os poderosos passaram a odiá-la.
“Isso era uma facada no cofre dos patrões. Eles queriam os trabalhadores escravos, as filhas dos trabalhadores sendo as ‘negrinhas de cozinha’ deles até serem violentadas, seja por eles ou pelos seus filhos, caladas. Foi aí que surgiu a perseguição contra Margarida e contra todos os que defendiam os direitos dos trabalhadores”.
As palavras são de Maria da Soledade Leite, repentista que – ao regressar para sua Alagoa Grande em 1975, alvo de todo tipo de preconceito por sua condição de mulher recém-separada, com uma viola e duas filhas – encontrou em Margarida acolhimento e solidariedade.
Para Soledade, Margarida Alves era, acima de tudo, “uma mulher forte, de fibra, muito corajosa e uma grande lutadora”.
“É melhor morrer na luta do que morrer de fome”
Foi essa mulher, vale repetir, forte, de fibra, muito corajosa e grande lutadora que, na porta de sua residência, na mesma cidade em que nasceu, foi assassinada com um tiro no rosto, em 12 de agosto de 1983, poucos dias após completar 50 anos.
Como narra Luanna Louyse Martins Rodrigues, Margarida “comia uma espiga de milho na porta de sua casa, observando seu filho brincar na rua. Na ocasião, seu esposo, Severino Cassimiro Alves, assistia TV na sala quando foi surpreendido com o barulho do disparo e deparou-se com sua esposa caída ao chão, esvaindo-se em sangue, já sem vida. A cabeça de Margarida apresentava amplo ferimento, com destruição do crânio e do lado direito da face, provocado pela arma de grosso calibre que seus algozes utilizaram”.
Grupo da Várzea. Este era o nome de um “grupo” formado por 60 fazendeiros, três deputados e 50 prefeitos que tinha dentre os seus integrantes o usineiro Aguinaldo Veloso Borges, latifundiário e proprietário da Usina Tanques, a maior da Paraíba à época, o seu genro José Buarque de Gusmão Neto, conhecido por Zito Buarque.
Zito e Aguinaldo, que era avô do ex-ministro e ex-deputado Aguinaldo Velloso Borges Ribeiro, foram mencionados como mandantes do assassinato de Margarida. Um soldado da PM (Betâneo Carneiro dos Santos), os irmãos Amauri José do Rego e Amaro José do Rego e o motorista Biu Genésio, condutor do veículo que parou em frente à casa de Margarida, foram acusados como autores.
A ausência de condenação de qualquer um dos mandantes e executores do assassinato de Margarida Alves deve-se ao fato de que, como apontado na importante pesquisa de Luanna Rodrigues, “por trás desse disparo e dessa cena bárbara, está uma ampla estrutura que envolve o poder econômico/territorial e a rede de poder político-jurídico que dele resulta, garantindo a impunidade dos grandes proprietários de terra apontados como mandantes do assassinato”.
A semente Margarida
Dia 12 de agosto,
Nasceu um sol diferente
Um aspecto de tristeza
O sofrido ao invés de quente
Era Deus dando sinal
Da morte de um inocente (…)
Sabemos que Tiradentes foi morto e esquartejado
Jesus Cristo deu a vida para redimir o pecado
Margarida deu a vida em prol dos sacrificados.
Os versos de Soledade são uma dentre tantas manifestações de eternização da vida e da luta de Margarida Alves.
Uma das principais expressões da memória da camponesa e sindicalista paraibana que cursou a escola formal até a 4ª série, mas educou milhares de trabalhadoras e trabalhadores, é a Marcha das Margaridas.
Criada em 2000, a Marcha se tornou um marco da luta por direitos para as mulheres do campo, das florestas e das águas, sendo atualmente a maior ação conjunta de trabalhadoras da América Latina.
“É importante colocar que a Marcha não é só o momento em Brasília. Existe todo um processo de mobilização, formação e construção na base. É muito simbólico as mulheres marcharem onde está o centro do poder e dizerem quais as suas necessidades e os seus desejos”, explicou Mazé Morais, em entrevista concedida antes da última edição da Marcha a Brasília, em 2019.
Num cenário de pandemia, de aprofundamento das injustiças socioambientais, de crescimento da violência contra camponesas e camponeses, celebrar a memória e a história de Margarida Maria Alves e cobrar justiça e reparação história por seu assassinato seguem como tarefas essenciais.
Para saber mais sobre a vida e a história de Margarida Alves
O caminho das Margaridas
Série de conteúdos, em diversos formatos, produzida pela Agência Brasil, que viajou mais de 2 mil quilômetros, acompanhando mulheres de várias partes do país que participaram da edição de 2013 da Marcha das Margaridas.
Link: http://memoria.ebc.com.br/ocaminhodasmargaridas
Margarida, Sempre Viva
Documentário gravado em 1983, que registrou os primeiros passos da investigação do assassinato de Margarida Alves.
Link: https://www.youtube.com/watch?v=NA692LhytWU
Margarida, Margaridas
Livro de Ana Paula Romão de Souza Ferreira que reconstrói a memória de Margarida Alves a partir das práticas educativas da Marcha das Margaridas.
Link: http://www.editora.ufpb.br/sistema/press5/index.php/UFPB/catalog/view/451/735/4893-1
Nos caminhos de Margarida
Realizado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, o documentário mostra a trajetória de vida e militância de Margarida Alves, a partir de depoimentos e imagens que revelam um pouco da sua história.
Link: https://www.youtube.com/watch?v=sjxruyZt-eM
Dossiê Grupo da Várzea
Conjunto de artigos que detalha a formação do Grupo da Várzea e a relação com as oligarquias políticas e econômicas, o papel do grupo nos conflitos agrários e as constantes ameaças contra Margarida, que culminaram com o seu assassinato.
Canção pra Margarida
Música de Zé Vicente em celebração a Margarida Alves
Link: https://www.letras.mus.br/ze-vicente/988269/
Fundação Margarida Alves
Site da organização da sociedade civil criada em homenagem à memória e à luta de Margarida Alves.