Karla Maria | Rede Jubileu Sul Brasil
Chovia na madrugada do último dia 4 em Porto Alegre (RS). No bairro Sarandi, zona norte da capital gaúcha, fazia frio e mais de 100 famílias eram despejadas de uma área privada, na qual estavam vivendo a cerca de 4 anos. Era a Ocupação Progresso, uma área formada por 105 terrenos com muitas famílias, 60 a 70% delas haitianas e outras brasileiras.
A ocupação começou em julho de 2014, quando a área estava abandonada pelos proprietários: BWR Industrial Reitz e Manuel Claudio Silveira. Moradores que foram tirados da área afirmaram em reunião com o Ministério Público Federal (MPF), no último dia 5, que chegaram a pagar R$ 2 mil cada terreno. Pagamento feito para um brasileiro conhecido por “carioca”. As famílias possuem recibos da compra.
O haitiano Simeon Jideon, um dos moradores retirados de sua casa, contou em um vídeo da Ocupação Progresso que gastou cerca de R$ 20 mil na construção dela. A casa simples ainda com reboco e tijolos aparentes denuncia que as obras estavam em andamento. “Gastei muito dinheiro para fazer isso. São três peças para dormir”, disse o jovem.
A decisão da retirada das famílias foi da juíza Patrícia Hochheim Thomé, da 2ª Vara Cível do Foro Regional Sarandi. Para ela, não cabia ao Poder Judiciário, nem ao proprietário da área, que estava abandonada, promover uma política de moradia. “Os órgãos municipais são os responsáveis pela realocação dos moradores da referida invasão (e que deve ser feita), não podendo tal fardo ser suportado apenas pelo proprietário do local”, completa Patrícia no processo, que tramita desde 2014 no Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RS).
O despejo aconteceu e as famílias foram colocadas na rua, sem uma orientação para onde ir. Crianças em período escolar e trabalhadores foram para as ruas da cidade. “Muita gente não tinha para onde ir. Foi desolador”, disse a gaúcha Claudia Favaro, em seu carro com mãe e filha haitianas que não tinham para onde ir. “Estou tentando achar uma casa de aluguel para ela”, com sua solidariedade.
Procurada pela reportagem da Rede Jubileu Sul Brasil, a Prefeitura de Porto Alegre destacou que a área é privada e que, por não ter feito a solicitação de reintegração, “logo a prefeitura não é responsável pela retirada”. Em nota, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Esporte (SMDSE) informou que, junto à a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) e à diretoria dos Direitos Humanos, colocou a Rede de Assistência à disposição das famílias da Ocupação Progresso.
“As equipes realizaram o cadastramento das 90 famílias, 60 de haitianos e 30 de brasileiros. A equipe do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) da região está a postos para o atendimento das demandas. Cadastro único e orientação para regularizar documentos foram disponibilizados para que possam ter acesso aos programas federais. Não há demanda de acolhimento institucional. Até o momento nenhuma família buscou o atendimento da Rede”.
A Prefeitura disse ainda que, por tratar-se de um significativo número de haitianos, a Coordenadoria dos Povos Indígenas e Direitos Específicos foi envolvida, e que o coordenador dos Direitos Específicos, Guilherme Führ, acompanha o processo e a equipe da rede assistencial permanecerá à disposição para avaliar as demandas.
A Rede Jubileu Sul Brasil emitiu nota de repúdio ao modo como as famílias brasileiras e haitianas foram despejadas da área. “Independentemente da área ser privada ou não, as famílias precisam ser encaminhadas pelos órgãos públicos, precisam ser respeitadas. Não podem ser tiradas de suas casas e serem colocadas na rua, sem nenhuma orientação”, disse Rosilene Wansetto, coordenadora da entidade.
A nota foi enviada para o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, responsável pelo processo, Nelson José Gonzaga, para o ministro, conselheiro, encarregado de negócios da Embaixada da República do Haiti no Brasil, Mario Chouloute, e ao Ministro dos Direitos Humanos, Gustavo Rocha.
A entidade também informou a situação dos familiares à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Como resultado de toda a mobilização local e em rede, 14 haitianos acompanhados por Ariane Leitão, da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa gaúcha, e de IIsiane Vida, vizinha da ocupação que já tinha prestado ajuda à comunidade com traduções e outras necessidades, se reuniram com a procuradora regional dos Direitos do Cidadão substituta, Ana Paula Carvalho de Medeiros.
Na ocasião, segundo ata registrada pelo Ministério Público Federal (MPF), as famílias denunciaram a truculência da Brigada Militar durante a reintegração de posse e pediram providências ao MPF em relação à obtenção de uma área para moradia.
Até o fechamento dessa reportagem, a Prefeitura de Porto Alegre não informou para onde foram encaminhadas as famílias, dizendo apenas que nenhuma delas tinha buscado abrigo e que devem procurar informações no CRAS Santa Rosa (Rua Senhor Bonfim, 956).
A comunidade havia negociado a compra da área com os proprietários, mas apenas duas parcelas foram pagas e houve o desinteresse na venda e o pedido de reintegração na Justiça. “Os proprietários que inicialmente queriam negociar, vender a área, colocaram no processo que não querem fazer negócio. Agora as famílias passam por este trauma de ver as suas casas destruídas, seus vínculos com a comunidade de quatro anos desfeitos, fora a falta de amparo da Justiça e da Prefeitura para negociar a área. Nós só precisamos de tempo para nos organizarmos e sair daqui de uma forma mais ordeira, digna, humana”, disse Ilsiane, a vizinha que vestiu a camisa da Ocupação Progresso.
A Prefeitura de Porto Alegre tem que nos ajudar, tem que ajudar imigrante. Precisamos ter casa para dormir. Nós que respiramos, temos duas pernas, duas mãos igual a todo mundo, tem que nos ajudar também. Não dá pra nos largar assim”, desabafou Simeon Jideon, em sua casinha sem acabamento, horas antes de ser retirado dela pela Brigada Militar.
“Destacamos que para a construção de novas unidades habitacionais que atendam as necessidades da população, e especialmente desta comunidade Progresso, são necessários recursos públicos como o financiamento habitacional Minha Casa Minha Vida, os quais estão suspensos dentro da nova ordem de austeridade implementada pelo atual governo federal e assumido pelos governos locais”, escreveu a Rede em nota assinada por diversas outras entidades.