Foto: Hector Retamal/AFP)

Miguel Borba de Sá narra o histórico da nação caribenha pré-Minustah e o legado “negativo” deixado pela operação da ONU

Por Emilly Dulce | Brasil de Fato

“Um povo que ousou fazer mais do que resistir”, é como o professor de Relações Internacionais Miguel Borba de Sá descreve os haitianos. A partir de uma revolução liderada por escravizados, o país conquistou sua independência em 1804, sendo o primeiro na América Latina a se desgarrar do imperialismo europeu. Desde então, o Haiti tem sofrido inúmeros golpes militares e intervenções políticas. Uma delas durou 13 anos (2004-2017) e teve o braço militar comandado pelo exército brasileiro, que enviou 37,5 mil militares ao país caribenho durante o período.

Há exatos dois anos chegava ao fim, oficialmente, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah). A missão era renovada anualmente, todo dia 15 de outubro. A data tornou-se simbólica para os apoiadores da operação, e, especialmente, para aqueles que lutavam contra a intervenção das potências estrangeiras no Haiti – movimentos e organizações populares do Brasil e do mundo entregavam todos os anos um abaixo-assinado na Organização das Nações Unidas (ONU) pela retirada das tropas e contra a renovação do mandato da missão.

“Em vez de defender os direitos humanos, os soldados da Minustah se converteram em violadores: estupros, repressão de manifestações, abuso de autoridade, interferência no processo eleitoral, dentre outros atos inaceitáveis amplamente documentados”, argumentava uma das cartas de rechaço à intervenção militar criada em 30 de abril de 2004.

Segundo Borba de Sá, as feridas deixadas pela operação continuam abertas por conta da espoliação sistêmica dos países dominantes. “O que está em curso hoje é um processo de recolonização do Haiti. Mas é difícil de ele ser realizado até o fim, porque é um povo que tem um histórico de luta e também um orgulho muito grande dessas lutas”, destaca o professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

Os saldos mais alarmantes da Minustah foram mais de 30 mil mortes em decorrência da cólera – doença jamais registrada no país até então –, mais de duas mil vítimas de abusos sexuais, entre outras violações de direitos humanos praticadas pela “indústria humanitária”, afirma Borba Sá.

Muitos dos primeiros contaminados pela bactéria da cólera morreram em cerca de duas horas. A epidemia assolou o Haiti após um terremoto de magnitude sete, que deixou mais de 200 mil mortos em janeiro de 2010.

“Uma epidemia dessa, realmente, teve efeitos devastadores e a ONU nunca aceitou a total responsabilidade por isso. De forma cínica, ela pediu desculpas por não ter feito o suficiente para ajudar, mas sabia que se aceitasse a responsabilidade poderia, inclusive, ser cobrada judicialmente”, critica Borba Sá.

O professor também integra a Rede Jubileu Sul, constituída por movimentos sociais, organizações populares e religiosas da América Latina e Caribe, África, Ásia e do Pacífico, responsável pela campanha “Dívida e Reparações para o Haiti e Porto Rico” que questiona e denuncia a “ilegitimidade da dívida pública de ambos os países e a retirada dos direitos humanos que se aprofundam a partir das ocupações militares”.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Borba Sá, autor da tese de doutorado “O Haiti no discurso político brasileiro: do Haitianismo à Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah)”, explica por que a saída das tropas militares, em 2017, não significou o fim da opressão à nação caribenha, mas o aprofundamento da crise social, política e econômica, que ameaça a soberania haitiana.

Pouco se fala sobre a história dessa nação situada na América Central. Uma breve pesquisa já é o bastante para perceber como, geralmente, o Haiti é retratado nas reportagens: “um dos países mais pobres do mundo”, “país mais pobre das Américas”. De fato, o Haiti encabeça rankings dolorosos, mas Borba Sá ressalta que as razões para isso estão diretamente relacionadas com o interesse geopolítico e geoestratégico dos Estados Unidos pela região do Caribe. Apesar do contingente de generais brasileiros no país, quem comandava o batalhão, na capital Porto Príncipe, eram os estadunidenses, como conta o professor.

Na avaliação dos militares brasileiros, no entanto, a Minustah teve êxito absoluto, especialmente na formação dos soldados. Em entrevista ao Jornal Nacional, durante a campanha eleitoral de 2018, o então candidato e hoje presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), definiu a experiência brasileira no Haiti como modelo de Segurança Pública. Militares que estiveram na linha de frente da Minustah foram convocados por Bolsonaro para integrar cargos importantes na Esplanada dos Ministérios: quatro deles se tornaram ministros.

“Nós, no Haiti, militares do Exército brasileiro, sem o preparo que tem o Policial Militar aqui, resolveu, pacificou o Haiti. Por quê? Nós tínhamos uma forma de engajamento: qualquer elemento com uma arma de guerra, os militares atiravam, 10, 15, 20, 50 tiros, e depois ia ver o que aconteceu. Resolveu o problema rapidamente”, declarou o capitão reformado.

“Hoje em dia, a gente vê que – desde a intervenção militar no Rio de Janeiro, há dois anos, quanto na formação do gabinete Bolsonaro – todos esses generais e outros oficiais quando são mencionados, até pela imprensa, antes da patente militar deles, vem sempre algum qualificativo: ‘que passou pelo Haiti’, ‘o general que comandou as tropas no Haiti’. Então, o Brasil ajudou a recredenciar – com a operação desastrada no Haiti – essas forças que hoje estão colocando novamente em risco a própria democracia brasileira”, alerta o pesquisador.

Confira a seguir a entrevista de Miguel Borba Sá, dividida entre os temas: Imperialismo europeuA quem essa exploração interessa?Dívida pública e a suposta ajuda humanitáriaGoverno BolsonaroAmeaças à soberania e Futuro.

Soldado brasileiro durante patrulha na capital Porto Príncipe (Foto: Hector Retamal/AFP)

IMPERIALISMO EUROPEU

Sempre quando a gente for falar de Haiti é importante saber que as crises atuais – políticas, econômicas e sociais – não começam hoje, mas desde o passado colonial do Haiti, que era a colônia mais rica do mundo no século 18, a colônia francesa, a pérola das Antilhas, inclusive desbancou o Nordeste brasileiro na produção de açúcar. E que conseguiu se libertar do jugo colonial da França com uma revolução de pessoas escravizadas, a primeira revolução bem-sucedida nesse sentido no mundo moderno, e o Haiti pagou muito caro por isso.

Teve uma dívida de independência que depois a França foi cobrar com armas – que já deixou o Haiti endividado desde o nascimento, não por um acordo, mas por uma coerção internacional – e ficou isolado do comércio internacional durante boa parte do século 19, não podendo se desenvolver.

Em 1915, o Haiti sofre a primeira intervenção norte-americana. Os americanos vão, pegam todo o dinheiro do Banco Nacional do Haiti e levam para Nova Iorque, dominam virtualmente o país, de todas as maneiras, para estabelecer uma base neocolonial na época da expansão norte-americana pelo Caribe: Porto Rico, Haiti, República Dominicana, Panamá, no início do século 20.

Só saem de lá durante a Grande Depressão (1929–1939), porque já não estavam com recursos para manter essa ocupação. Durante toda a Guerra Fria (1947–1991), os Estados Unidos sustentam uma ditadura brutal no Haiti em nome do combate ao comunismo, a ditadura da família Duvalier, o chamado Papa Doc e depois seu filho Baby Doc, que comandam um regime brutal de total exploração e concentração de poder com muitos recursos e apoio norte-americano.

Eles também permitem a instalação de empresas norte-americanas no país para disputar de uma mão-de-obra a baixíssimo custo e sempre reprimida, “domesticada” por esse regime altamente brutal. Então, a crise do Haiti tem esse panorama todo do século 20. Quando finalmente o país consegue, de alguma forma, se libertar dessa ditadura, em 1986, elege seu primeiro presidente democraticamente, o Jean-Bertrand Aristide, um padre da Teologia da Libertação que liderou o movimento contra a ditadura.

Ele sofre um golpe com meses de governo, consegue voltar para terminar seu mandato no final dos anos 1990, mas tem poucos meses de mandato. No início dos anos 2000, ele é eleito de novo, só que vai sofrer uma grande pressão internacional, principalmente das instituições financeiras – FMI, Banco Mundial –, que não gostam da postura dele por considerá-lo um sujeito difícil para o mercado e que não está aceitando todos os programas de privatização que essas instituições estão obrigando.

Então, toda a ajuda desses organismos ao Haiti, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, na verdade, é condicionada a uma série de ajustes estruturais, de porte neoliberal na economia, que o presidente não aceita como um todo e acaba ficando em uma situação muito complicada. O país sofre sanções, assim como hoje em Venezuela, Irã e outros países que não se adequam ao poder hegemônico nas relações internacionais.

O governo de Aristide fica fragilizado e acaba sofrendo um novo golpe em 2004, o que dá origem a Missão da ONU para Estabilização do Haiti, a Minustah. É um golpe destinado, antes de tudo, a restabelecer ou assentar as bases de um regime verdadeiramente neoliberal no país, e garantir os interesses, principalmente do capital estrangeiro de origem norte-americana, francesa e canadense no país.

Então, essa crise atual do Haiti não pode ser entendida sem esse panorama histórico e sem esse último golpe de Estado que, infelizmente, entre 2004 e 2017, o Brasil ajudou a consolidar liderando militarmente a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti que, na verdade, foi para a estabilização de um novo sistema político no Haiti, imposto contra a vontade da sua população.

O Aristide não tomou um golpe a toa, mas ele resolveu cobrar essa dívida colonial da França, fez várias campanhas no Haiti exigindo o pagamento dessa dívida colonial e ousou fazê-lo judicialmente em tribunais de Nova Iorque, e aí parece que isso foi o estopim para que esse presidente não pudesse mais ser considerado legítimo.

Não estou aqui, necessariamente, defendendo o Aristides, eu acho que ele pode ter vários problemas, os vários setores da sociedade civil, até da esquerda, tinham diferenças importantes com ele. Mas, é importante dizer que ele foi removido muito mais pelas suas qualidades do que pelos seus defeitos, e por ter ousado cobrar essa dívida colonial, uma dívida odiosa, como a gente chama quando uma dívida não é contraída voluntariamente e sim por coerção.

Mas, o papel da Minustah ainda é muito negativo. O discurso do sucesso, na verdade, é muito descolado da realidade local. Certamente, essa foi a imagem que foi transmitida e, durante minha pesquisa de Doutorado, que eu terminei no final do ano passado, eu estudei exatamente esse discurso do sucesso. É um discurso que já estava pronto em 2006, dois anos depois da Missão [ter começado], uma década antes da Missão realmente chegar a seu fim.

Em primeiro lugar, não havia guerra civil no Haiti. Quando, geralmente, você tem uma operação de paz da ONU é porque você tem algo que impeça a manutenção da paz, é para parar um conflito e conseguir estabelecer uma mediação.

Só que no Haiti não tinha guerra civil, teve foi um golpe de Estado. É uma outra coisa e um golpe de Estado imposto muito de fora para dentro, tendo em vista que o próprio Aristide, depois de tomar o primeiro golpe nos anos 1990, já tinha dissolvido o Exército. Então, foi uma intervenção muito acintosa nos assuntos internos de um país que, enfim, não era soberano o suficiente para resistir.

Essa ocupação da ONU, por exemplo, trouxe doenças que não existiam no Haiti, como cólera. A gente viu depois imagens horríveis na televisão, mas as pessoas, talvez, não tenham tido o direito à informação que foram os próprios soldados da ONU, que trouxeram o vírus do cólera por defecarem no rio Artibonite, o mais importante do Haiti, que alimenta e irriga boa parte do país e para os camponeses é um rio muito importante e para várias outras atividades econômicas e da subsistência da população local.

Então, eles estavam contaminados, defecaram no rio e gerou um surto de cólera que gerou mais de 700 mil pessoas infectadas e 30 mil mortes. É uma coisa muito complicada em um país que já vivia uma situação por conta desse histórico de espoliação internacional, colonial e imperial, quer dizer, uma situação econômica muito complicada em aliança com uma pequeníssima elite haitiana.

Uma epidemia dessa, realmente, teve efeitos devastadores e a ONU nunca aceitou a total responsabilidade por isso. De forma cínica, ela pediu desculpas por não ter feito o suficiente para ajudar, mas sabia que se aceitasse a responsabilidade poderia, inclusive, ser cobrada judicialmente.

A Minustah custava US$ 400 milhões por ano, em média, para ser mantida as Forças Armadas. A ONU tentou levantar US$ 400 milhões uma vez só para o combate ao cólera, e não conseguiu. Para a intervenção militar sempre houve dinheiro todo ano, mas para combater uma doença levada pelos próprios soldados não houve essa mesma disposição “à ajuda humanitária”.

Então, eu diria que o balanço é muito negativo, a gente pode citar, pelo menos, mais três aspectos. Um deles foi amplamente noticiado, mais fora do que dentro do Brasil, que foi o caso dos abusos sexuais. Mais de 2 mil vítimas de abusos sexuais praticados por soldados, funcionários civis da ONU e de toda essa indústria humanitária que gira ao redor das intervenções, que envolve ONGs e outras empresas e organizações.

Dessas duas mil, pelo menos 300 crianças, então uma situação muito inominável, na verdade, a pessoa que supostamente vem para te salvar, de algo que você não pediu, está te trazendo doença. Porque é uma intervenção que nunca foi requisitada pelas instituições competentes no Haiti.

Na verdade, o Senado haitiano votou, repetidamente, para a saída das tropas e sempre foi ignorado. Esses supostos salvadores vêm para praticar casos de abuso sexual em massa, trazerem doenças que devastam um grande contingente da população.

Só que também tem o aspecto político. Como eu falei, é uma intervenção destinada a garantir a estabilização de um sistema político golpista. Então, a Minustah atuou muito em função de controle de distúrbios, como eles chamavam. Ou seja, uma fusão de polícia à política. E sindicatos queriam se organizar, mas tinha a força da Minustah para dissuadi-los ou mesmo reprimi-los diretamente.

As mulheres que faziam alguma manifestação em prol dos seus direitos estava a força da Minustah para dissuadi-las ou reprimi-las diretamente. Eu mesmo quando visitei o Haiti, em 2017, para pesquisa, fui na base brasileira, em Porto Príncipe, no Brabatt [Batalhão Brasileiro no Haiti], e fui no treinamento de contenção de distúrbios. Foi uma coisa pavorosa. Você vê ensinando aos soldados falar: “venham, haitianos”. Você olha para ele, ele mira na perna e atira. Pow. Se tiver na manifestação atira.

Então, é um negócio, para que pese todo esse discurso humanitário e do Soft Power e essas coisas que a gente sempre ouvia de ajuda humanitária, a situação ali era destinada a garantir um sistema político bastante repressivo e restrito, no qual um presidente havia sido removido. No primeiro momento, ficou sem poder voltar ao país, sendo a figura política mais carismática e adorada pela população.

É um pouco como a situação do Lula aqui, mal comparando, apesar de que foi o próprio governo do Lula que teve participação nessa história no Haiti. O Aristide, todo mundo sabe que se deixarem ele ser candidato a presidente no Haiti ele ganha no primeiro turno. É um sujeito que não há comparação com o carisma e a popularidade que tem, e não a toa, com a população. Foi o presidente mais popular, ainda que a gente possa fazer várias qualificações sobre sua atuação.

Mas, é uma situação que também envolveu, em 2006, por exemplo, logo depois da Minustah, fraudes na eleição. Do primeiro para o segundo turno, mudaram as regras para empossar logo um presidente, interferindo diretamente, e de novo teve participação brasileira. Então, assim, em termos de democracia, direitos sociais, direitos das mulheres e crianças e, enfim, da saúde da população, o impacto é bem negativo.

Militar da Minustah durante patrulha em bairros pobres da capital haitiana (Foto: Thony Belizaire/Getty Images)

A QUEM ESSA EXPLORAÇÃO INTERESSA?

Não tenha dúvida. Isso faz parte totalmente da estratégia americana para a região, mas em 2003 você lembra que os Estados Unidos entraram naquela guerra contra o Iraque, uma guerra bem custosa e uma guerra bem penosa para os Estados Unidos também naquele momento.

E já, no âmbito da famigerada guerra ao terror, enfim, veio os dois atentados de 11 de setembro. Então, no ano seguinte, os Estados Unidos, por questões de credibilidade internacional e também por custos e recursos em termos de tropa e mesmo de dinheiro, terceirizam para o Brasil, a pedido da França, essa liderança da ocupação militar no Haiti.

Mas, o interesse é totalmente norte-americano e francês. Inclusive, um diplomata brasileiro – que não faz sentido mencionar o nome dele – que eu entrevistei em Porto Príncipe falou isso para mim: “a gente faz o trabalho sujo aqui e as nossas empresas nem entram, continuam sendo as empresas norte-americanas, canadenses e americanas comandando tudo aqui”.

Na base da ONU no Haiti, um general brasileiro falou algo similar para mim também, evidentemente com o microfone desligado: “aqui são os americanos que dizem o que a gente faz, a gente está no operacional, mas eles, todos os dias, eles dão um – de inteligência para a gente e dizem qual é a estratégia.

Então, na verdade, o Brasil, por motivos que a gente pode até discutir – e acho que hoje devia discutir muito –, acabou entrando em uma estratégia neocolonial de outros países, certamente dos Estados Unidos e da França que têm muito interesse no Haiti. E acho que, principalmente, os Estados Unidos tem um interesse geopolítico e geoestratégico pela região do Caribe.

E certamente isso é uma situação muito complicada também do ponto de vista econômico. Porque ela é neocolonial não apenas do ponto de vista do controle político, mas, como eu falei, essas empresas americanas se beneficiam de alguns setores, como a mineração de ouro e outros metais preciosos variados como bauxita, que é base do alumínio, do agronegócio, da especulação financeira, do turismo de luxo, das indústrias chamadas de maquiladoras, dos têxteis e da indústria de montagem final de mercadorias.

Então, são diversas indústrias que se beneficiam tanto das matérias-primas, dos recursos naturais em abundância no Haiti, quanto da sua mão-de-obra mantida a preços baixíssimos.

Missão no Haiti teria formado uma “casta” dentro das Forças Armadas brasileiras (Foto: Hector Retamal/AFP)

DÍVIDA PÚBLICA E A SUPOSTA AJUDA HUMANITÁRIA

Continua endividado até a ajuda humanitária que, supostamente, teria chegado depois do terremoto e boa parte dela não entra nem no Haiti, ela vai direto para as ONGs dos países que controlam esses recursos. Então ela, muitas vezes, nem entra no Haiti e quando entra não entra no Estado haitiano.

Atualmente, a dívida externa do Haiti está em torno de US$ 890 milhões, o que é muito para um país das proporções do Haiti. O Estado haitiano é, constantemente, dilapidado. E, durante a Minustah, o regime imposto tornou o Haiti mais um dos paraísos fiscais do Caribe. A gente sabe que não é o único, mas a especulação financeira está crescendo no Haiti, além do tráfico de drogas que, com a Minustah, curiosamente ou não, o Haiti tornou-se uma rota importantíssima do comércio de cocaína para os Estados Unidos.

Hoje estima-se que 11% dessa droga que vem do mercado americano passa pelo Haiti. Tem uma correlação muito forte, um parêntese, a história da América Latina. Aliás, de outros lugares: Afeganistão também. Entre a militarização e o tráfico de drogas. Mas, esse é um assunto à parte.

A Colômbia tem nove bases americanas e continua sendo o maior produtor de cocaína do mundo, só aumenta, bate o recorde todo ano. E o impacto disso na economia é muito grande. Você tem acusações contra o próprio presidente atual de pouso clandestino nas suas fazendas, aliás, ele é um típico empresário do agronegócio, exportador de banana, jovem, bonito, apresentado então como moderno por esse paradigma neoliberal e que está promovendo mais uma etapa, na verdade, da entrega de seu país aos interesses do grande capital internacional.

Há muito tempo, algumas décadas, isso é consolidado, algumas firmas da indústria têxtil norte-americanas tem no Haiti uma das suas melhores bases de produção. Então, essa calça jeans Levis, a famosa, durante muito tempo ela é produzida no Haiti. As roupas da Disney, casacos do Mickey Mouse, da Minnie Mouse, do Pato Donald, também. Tudo isso é produzido no Haiti, em grande medida, porque a mão-de-obra é muito barata e que não tem o direito de se organizar, por exemplo, sindicalmente com a liberdade que seria necessária.

Último contingente brasileiro na Minustah (Foto: Tereza Sobreira/Fotos Públicas)

Sobre a PetroCaribe, Venezuela e Cuba foram praticamente os dois únicos países da América Latina que não aceitaram participar da Minustah. Elas entendiam que não era com soldados, armas e tropas que você poderia prover algum tipo de ajuda ao Haiti. Inclusive, quase não existia guerra civil.

Nesse sentido, não enviaram tropas, mas não por isso desistiram de ajudar. Muito pelo contrário, Cuba sempre enviou muitos médicos para o Haiti. Aliás, tem quase um milhão de haitianos vivendo em Cuba, sempre enviou muito tipo de ajuda então no campo da saúde e da educação para o Haiti, como é praxe da diplomacia cubana, como a gente já sabe.

E a Venezuela, na época do Chávez, e depois continuou, fez um convênio da PetroCaribe, que incluía o Haiti, e foi praticamente o único país que se dispunha a financiar o próprio Estado haitiano, e não as suas próprias ONGs e não a ONU, atores não-estatais, como a gente fala nas Relações Internacionais.

Então, foi uma coragem muito grande, uma aposta, naquela época, da Venezuela, mesmo sabendo que era um governo de direita no Haiti, mesmo em um governo que tinha uma ideologia, diametralmente, oposta àquela do bolivarianismo, do chavismo. Financiar o Estado haitiano era algo tido como importante exatamente para poder dar uma chance à sociedade haitiana de se livrar dessa dominação tanto das empresas quanto das ONGs internacionais.

O Haiti tem o país, provavelmente, com mais ONGs internacionais do mundo, são mais de 10 mil contabilizadas, tem gente que chama até de Haitong. Então, para as ONGs que tem lá isso gera um impacto certamente no clientelismo que essas ONGs estabelecem na ponta, oferecendo serviços básicos que o Estado não consegue, e não vai conseguir oferecer enquanto essa máquina continuar a girar dessa forma.

E foi essa uma das ideias do governo Chávez de romper com esse fluxo e fortalecer o Estado haitiano. Esses governos de direita, neoliberais, empossados pela Minustah, muitos deles, simplesmente, pegaram todo esse dinheiro para enriquecimento pessoal e alimentação das suas próprias bases de poder.

É esse dinheiro do Convênio PetroCaribe agora que, com o dinheiro que deveria pertencer ao povo haitiano na forma do Estado haitiano, que a população finalmente agora está se rebelando para poder cobrar o que as tropas da Minustah deixaram no país depois de 2017. Não reconheceram seu fracasso, mas certamente querendo se dissociar dessa grande manifestação popular que já estava ganhando vulto.

Nesse momento, então, a população haitiana, sucessivamente, organiza algumas jornadas de lutas para tentar recuperar esses fundos e responsabilizar essa elite política que, certamente, boa parte dela de direita e extrema-direita no Haiti, desviou esses fundos para seus objetivos pessoais, políticos e econômicos próprios.

Minustah teve o braço militar comandado pelo exército brasileiro, que enviou 37,5 mil soldados ao Haiti (Foto: Pinterest)

GOVERNO BOLSONARO

Tem duas coisas para a gente pensar. A primeira é, quando a gente fala no sucesso do Brasil – muito repetido pelos militares, mas também foi muito repetido pelos governos anteriores no Brasil. A gente tem que perguntar: Sucesso para quê? Sucesso para quem? Tendo em vista que deixaram um país mais endividado, mais pobre, mais destruído, com um sistema político mais repressivo, e por aí.

Eu diria que o único sucesso realmente que a gente pode encontrar no Haiti é que o Brasil exportou suas políticas de classificação de populações pobres e identificadas como negras em sua maioria. Então, o Haiti é sempre racializado como negro, a República negra, então tem sempre essa ideia de que esse pessoal precisa ser contido e pacificado.

Então, a gente conhece, sobre o Rio de Janeiro, a gente conhece muito esse tipo de política pública que é uma política, ao mesmo tempo, de gestão e de extermínio, de controle dessas populações. As grandes comparações entre as favelas do Rio e as favelas do Haiti é programas de trocas de experiências entre as forças pacificadoras foram constantes ao longo das últimas duas décadas.

Então, eu acho que o único sucesso que pode ter acontecido é o Brasil emprestar suas técnicas de pacificação – que sabemos que não são nada pacíficas, sabemos, enfim, basta ver o que está acontecendo – e continua acontecendo algumas antes do Rio de Janeiro – sobre populações identificadas como pobres e negras.

Então, havia na comunidade internacional e o Brasil jogou com isso, vendeu isso , digamos, vendeu essa habilidade específica por saber lidar melhor com esse tipo de população, como eu já falei, identificada pela sua pobreza e sua negritude. Então , isso é algo que a gente não pode deixar passar. Mas, custou caro para os governos Lula e Dilma, que embarcaram nessa tentativa.

A gente pode especular quais foram as outras motivações, se era como se falava vaga no conselho de segurança, outros objetivos internacionais. No entanto, isso devolveu uma legitimidade às Forças Armadas em dois planos que elas não tinham de volta desde o fim do regime militar no Brasil.

Primeiro, foi uma legitimidade interna. Você formou uma nova geração de generais “experimentados” no campo de batalha no exterior, por mais que não tivesse muita batalha no Haiti. Você formou uma nova geração de quadros militares que, para dentro, começaram a ganhar uma respeitabilidade interna muito grande.

E, para fora devolveu às Forças Armadas o último selo de aprovação frente à sociedade brasileira como se fossem forças então relegitimadas participando de uma operação supostamente humanitária, para a paz, para o bem. E, desviando ainda mais do caminho do Brasil em relação aos outros países da América do Sul, que acertaram ou buscaram acertar as contas com as suas respectivas Forças Armadas.

Depois de suas respectivas ditaduras militares, no Brasil a gente sabe que esse processo foi muito mais tímido do que na Argentina, no Chile ou no Uruguai, por exemplo. E, a partir desse momento, ele fica cada vez mais dificultado por umas Forças Armadas que passam a se apresentar como uma força do bem, e isso ganha muito prestígio de novo para essa sociedade, pessoas que conseguem gerir países em situação de caos, depois de terremotos, em situações de muita dificuldade, conseguem organizar.

Então, toda essa imagem que o governo anterior – Lula e Dilma – ajudaram a reconstruir das Forças Armadas, talvez, ingenuamente acreditando que elas tinham realmente se profissionalizado, acreditando no seu próprio discurso de que elas tinham então se humanizado e que pudessem papéis progressistas e constitucionais.

E, na verdade, tudo isso voltou contra àqueles que, enfim, ajudaram a participar do golpe no Haiti e promoveram a militarização no país desnecessariamente. Hoje em dia, a gente vê que – desde a intervenção militar no Rio de Janeiro, há dois anos, quanto na formação do gabinete Bolsonaro – todos esses generais e outros oficiais quando são mencionados, até pela imprensa, antes da patente militar deles, vem sempre algum qualificativo: “que passou pelo Haiti”, “o general que comandou as tropas no Haiti”. Então, o Brasil ajudou a recredenciar – com a operação desastrada no Haiti – essas forças que hoje estão colocando novamente em risco a própria democracia brasileira.

Para Bolsonaro, a experiência brasileira no Haiti serve de modelo de Segurança Pública (Foto: Fernando Souza/AFP)

AMEAÇAS À SOBERANIA

A mim, parece muito perigoso. Inclusive, como eu falei, o que mais percebi no contato com esses militares lá era um orgulho muito grande de estar servindo aos interesses norte-americanos. Era um orgulho de ser reconhecido (isso está no capítulo 5 da minha tese) pelos militares americanos como alguém capaz, hábil como militar e cumpre o recado, mas não questiona as ordens.

Então, havia um certo orgulho dessa subserviência. Na diplomacia brasileira, eu não encontrei tanto isso. Como eu te falei, eu encontrei um certo desgosto, por parte da diplomacia de não estar recolhendo os frutos que se esperavam, pessoalmente em termos econômicos dessa participação.

Mas, os militares brasileiros me parecem muito encantados, de modo geral, claro que isso é uma generalização, não podemos dizer que todos são assim, mas parece que, de modo geral, muito encantados por essa associação subordinada aos Estados Unidos, encontrando nisso alguma ginástica argumentativa para justificar seu nacionalismo.

Eu acho que, hoje em dia, é difícil a gente falar de nacionalismo em uma situação como essa da Amazônia. O general Villas-Boas esta semana falando muito de nacionalismo, defesa da soberania nacional, quando, na verdade, a soberania nacional só vem nesses casos que parece que a gente quer ter o direito de fazer algo muito ruim. A gente quer ter o direito de queimar a Amazônia e ninguém poder interferir na nossa soberania.

Certamente, a França tem uma posição muito cínica nessa situação toda. Mas é muito complicado que o nacionalismo brasileiro valha para isso, mas não valha na hora da Base de Alcântara que está sendo negociada de novo a entrega dela exatamente para as Forças Armadas norte-americanas.

Isso me faz remontar novamente o século 19 como um dos primeiros momentos de nacionalismo brasileiro foi justamente aquele que se opunha às expressões inglesas para acabar com o tráfico de escravizados, por volta dos anos 1840 até finalmente a aprovação da Lei Eusébio de Queirós em 1850.

Então, foi algo que uniu a elite política brasileira naquele momento, tanto liberais quanto conservadores, queriam afirmar muito seu orgulho nacional contra àquelas opressões inglesas como se fosse para dizer, naquela época, “nós temos o direito de fazer a escravidão que a gente quiser, igual hoje dizem que a gente tem o direito de queimar a Amazônia do jeito que quiser, porque isso é a soberania nacional”.

Então, por mais que a França seja cínica hoje e a Inglaterra fosse cínica no século 19, a gente tem que ter muito cuidado com essas supostas arroubos nacionalistas, quando no fundo a estratégia é muito mais de inserção subordinada nessa ordem internacional dominada pelos Estados Unidos, do que uma estratégia realmente nacionalista.

A Minustah era renovada anualmente, todo dia 15 de outubro, durante 13 anos (Foto: Marcello Casal Jr./Arquivo/Agência Brasil)

FUTURO

A perspectiva é muito sombria, eu diria, nesse momento. Porque é um país que está constantemente ocupado e acossado na ocupação econômica, militar, política. Então, é uma situação que deixa legados, herança, uma marca. Você vai criando, inclusive, conexões muito poderosas com uma diminuta elite haitiana, que participa também da espoliação de seu próprio país, mas que, boa parte dela, já mora fora, em Miami. De helicóptero é muito rápido você chegar em Miami do Haiti.

Eu, quando estava lá, em 2017, na mesma rua que ainda estava cheia de escombros, pessoas comendo lixo na rua, catando nas latas de lixo para comer, já estava pronto um hotel cinco estrelas na mesma rua no centro de Porto Príncipe, construído depois do terremoto. Um hotel da Rede Menryork norte-americana e eu viu muita Ferrari no Haiti, Porsche, Mercedes… Eu vi muita riqueza no Haiti, muita riqueza extremamente concentrada.

Então, tem tanto uma elite estrangeira que vai passar férias no Haiti, é um lugar paradisíaco no Caribe, tem cruzeiros internacionais que param em praias no Haiti, que são totalmente militarizadas, que a população local não pode chegar, foram expulsos os camponeses que ali moravam, os pescadores.

Esses cruzeiros passam, ficam um dia todo ali e depois continuam seu caminho. Então, é uma situação muito complicada de uma espoliação contínua, uma desigualdade muito grande. Agora, por outro lado, é um povo que tem uma marca e um espírito de luta impressionantes.

Eu não diria nem de resistência porque é um povo que ousou fazer mais do que resistir, fez sua própria revolução e paga caro por isso até hoje. Mas, tem um espírito de luta impressionante, está mostrando isso mais uma vez neste momento, essas manifestações populares não apenas contra o governo do Jovenel Moïse, esse empresário exportador de banana, mas contra todo esse sistema político, neocolonial imposto. É um povo que dá exemplo então de um espírito de luta que, certamente, é um entrave para esses projetos de recolonização do Haiti que estão em curso.

Como diz um sociólogo haitiano, Frank Ferry, que fez o doutorado dele na Unicamp há alguns anos, o que está em curso é um processo de recolonização do Haiti, só que ele é difícil de ser realizado até o fim, exatamente, porque é um povo que tem um histórico de luta e um orgulho também dessas lutas muito grande.

Você conversa com as pessoas na rua no Haiti. Jean-Jacques Dessalines, que proclamou a independência haitiana em 1804, continua sendo um herói nacional e as pessoas falam do Dessalines como se tivessem falando de alguém da família. Com um orgulho muito grande, é uma inspiração muito grande, então a mim parece que se as perspectivas por um lado são sombrias dado todo esse arcabouço neocolonial, que chegou a incluir países como o Brasil, infelizmente, incluindo sua fase mais progressista, por outro lado, é muito difícil dobrar esse povo e que ele se renda porque ali tem um histórico de lutas acumulado muito grande, e que, certamente, é capaz de fazer frente a mais essa investida dos poderes dominantes nas Relações Internacionais.

O Haiti é marcado por diversas revoltas populares ao longo de sua história (Foto: Hector Retamal/AFP)

FICHA TÉCNICA:

Reportagem especial: Emilly Dulce | Edição de texto: Rodrigo Chagas | Edição de áudio: Katarine Flor | Artes: Wilcker Morais/Arquivo Brasil de Fato | Coordenação de Jornalismo: Camila Maciel, Daniel Giovanaz e Vivian Fernandes | Coordenação de Rádio: Camila Salmazio | Coordenação de Multimídia: José Bruno Lima

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