Roda de conversa com a pesquisadora Roberta Traspadini, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), abordou os métodos de dominação do ultranacionalismo estadunidense e a sua participação direta na reprodução de instabilidade democrática na América Latina e Caribe

Por Marcos Vinicius dos Santos* | Jubileu Sul Brasil

As eleições brasileiras de 2018 são um marco negativo na história do nosso país. O assassinato de Marielle Franco no dia 14 de março, o principal candidato às eleições preso no 8 de abril e Bolsonaro eleito em outubro do mesmo ano não podem ser analisados de maneira isolada, mas como parte um conjunto de ações com o objetivo desestabilizar o regime democrático brasileiro – fato comum em diversos países da América Latina e Caribe nos últimos anos.

A análise é da economista Roberta Traspadini no Encontro Regional “O contexto da América Latina e Caribe, projeto em curso na região: nós, os povos, construímos lutas e futura”, que reuniu virtualmente no último dia 8 articuladores do pensamento popular de vários países da região visando estudar o projeto em curso.

Professora e pesquisadora da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA), Roberta é educadora popular e estudiosa do pensamento social latino-americano, dos movimentos sociais e da luta popular na América Latina, ela contribuiu para o debate com uma análise de conjuntura coletiva da região, que sofre com os processos de “americanização” promovidos pelo modelo de capitalismo dos Estados Unidos e as mazelas históricas que são consequências desse processo.

A educadora fez a análise partindo de três pontos fundamentais: a idealização de uma imagem desses povos desde a sua invasão e início da exploração europeia; a produção de um discurso que classifica os povos originários como selvagens, submissos ao imperialismo nacionalista dos Estados Unidos; a propagação desse discurso com o fim de dominar e desestabilizar outras democracias.

A imagem do Caliban

Para definir o símbolo da intervenção estadunidense nos povos latinos, Roberta utilizou a figura do “Caliban”, personagem criada por Shakespeare na peça The Tempest, em 1611. A peça que era popular, apresentada no teatro de rua, tem inspiração no relato de um naufrágio nas Bermudas e descreve uma mítica ilha.

Os três personagens principais foram descritos pela pesquisadora como Próspero, aquele que está buscando seu poder fora da ilha ou em busca de uma nova ilha, ou seja, de um novo território, que é no Caribe; Ariel, que é o súdito de Próspero, e é aquele que é o mediador entre o que o Próspero precisa executar e aqueles que irão executar; o Caliban, que é o bom selvagem, aquele que conhecendo o território, conhecendo a Terra, será nominado como o servo contínuo da história.

“Essa peça explicita para nossa conformação narrativa uma história dominante que vai conformar na lógica das invasões coloniais e a estereotipação dos nossos povos como canibais, em especial os povos do Caribe. Essa imagem é potente na história recente porque vai definir todos aqueles e aquelas que estiverem numa lógica de desenvolvimento, que é do desenvolvimento mercantil, situados muito na natureza não tecnológica, ou nos moldes de tecnologia que entendem, terão como estereótipo este Caliban que não é só uma imagem, mas representação de um continente subsumido”, definiu a pesquisadora.

Produção do discurso imperialista

Dessa forma, o continente americano é definido como um território que precisa ser dominado, sob a ótica de esses grupos para a “civilidade”. A reprodução dessa imagem é importante, pois vai fazer parte de toda a história da formação dos estados americanos, ressaltou Traspadini. Durante mais de 500 anos, o colonizador vai se utilizar dessa ferramenta para definir o seu inimigo à luz do Caliban, mudando os seus alvos. Afinal, os territórios da América Latina e Caribe são espaços de incidência do imperialismo, mas também de efervescência de revoluções.

Parte da atuação dessa dominação da imagem é justamente para silenciar e apagar essas revoluções, impondo um sentimento de submissão – aqui com os meios de comunicação como parte fundamental nesse processo.

“Dos anos 60, o principal produtor da imagem materializada concreta sobre os nossos corpos é o imperialismo estadunidense, que já passou por duas guerras, já passou pela crise de 1929, tem um mundo em disputa com o socialismo na Guerra Fria e precisa plasmar a ‘América para os Americanos’. Portanto, quem produz a imagem de Caliban no século 20 para nós, sobre nós, contra nós, é os Estados Unidos. Por isso, vejam o problema, é impossível falar de imperialismo estadunidense sem falar do nacionalismo estadunidense e, no nacionalismo estadunidense, as correlações que estão acontecendo em toda a parte do mundo com o nazifascismo e lá, com uma produção imaginária de um discurso de democracia republicana”, explicou a pesquisadora da UNILA.

Por essa produção imaginária de um discurso, os Estados Unidos apresentaram, além do nacionalismo, um discurso ancorado no dever de levar democracia e paz para todos, que será representado na consolidação da Organização das Nações Unidas (ONU) e na participação irrestrita na formação de todos os tratados de paz e contra a guerra, quando são os principais produtores de guerra, criticou Traspadini.

A ampliação do imperialismo na geração de dependência

Os Estados Unidos vão assimilar a esse nacionalismo a construção da ideia de uma democracia libertária, que seria responsável por livrar o mundo de todo o mal, supostamente trazendo estabilidade e prosperidade. Essa idealização é acompanhada da introdução de regras tirânicas, impedindo outros regimes de estabelecer regras que deem participação popular, integrandos todos os setores da sociedade.

Essa imposição vai definir a história da construção do Estado nacional latino-americano como da contrarrevolução, da insurgência. Roberta Traspadini ainda pontuou que a própria democracia dos Estados Unidos é um espelho dessa construção nacionalista.

“É interessante como essa imagem reflete na própria imagem do país, onde se observa um imaginário produzido ao longo de muitos séculos, à luz de muitas guerras e de muito sangue, como ocorreu e ocorre com a população negra e dos povos originários da região e que tem os seus corpos e territórios constantemente atacados”, afirma.

Roberta concluiu lembrando que a produção de uma imagem no Caliban e a reprodução do discurso da democracia imperialista nacionalista estadunidense serão reproduzidas e ampliadas. O objetivo é a desestabilização de regimes de participação popular e não voltados para economia de mercado, criando diversas economias dependentes, conformando um retrato da política do século 20 e os diversos golpes no século 21, como se pôde acompanhar na história recente do Brasil.

*Com supervisão de Jucelene Rocha

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