Por Mariana Simões, da Agência Pública
Depois de quatro anos sendo investigados e processados na Justiça, 23 manifestantes que participaram das jornadas de junho de 2013 no Rio de Janeiro foram condenados a até 7 anos de prisão pelos crimes de associação criminosa e corrupção de menores. A sentença, que foi assinada ontem pelo Juiz Flávio Itabaiana, da 27a vara criminal, cita entre os delitos dano qualificado, resistência, lesões corporais e pose de artefatos explosivos.
“Eu fiquei em choque. Eu travei. Literalmente travei”, diz a advogada Eloisa Samy sobre a notícia da sua condenação. Ela está entre os 20 manifestantes que foram condenados a 7 anos na cadeia. Outros 3 dos condenados à pena de 5 anos e dez meses de prisão. Todos podem recorrer em liberdade.
Durante as manifestações que tomaram as ruas do Rio, Eloisa Samy prestava auxílio jurídico, dando conselhos àquelas que tinham sofrido algum tipo de violação de direito. Sua inclusão no processo se deve aos depoimentos fornecidos por Maurício Alves da Silva, um policial brasiliense, integrante da Força Nacional, que se infiltrou entre os ativistas para passar informações para o Centro Integrado de Comando e Controle (CICC).
A advogada conversou com a Agência Pública sobre a sentença e conta porque vê várias irregularidades no procedimento judicial. Ela acredita que existe uma agenda política por trás do processo dos 23: calar o movimento que pede a liberdade do ex-presidente Lula. O recado é este: “não adianta se mobilizar. Não se mobilizem porque o que vocês fizerem, nós vamos processar e nós vamos condenar”, diz.
Faltando duas semanas para completar 50 anos, a Eloisa Samy enfrenta a condenação e diz que vai recorrer.
Como você se sentiu quando soube da notícia da sentença?
Eu fiquei em choque. Literalmente travei. Como já não sou novinha, estou a duas semanas de fazer 50 anos, eu tenho artrite. Aí começou a me dar uma dor horrível no ombro que me pegou o braço todo. Mas eu sobrevivi a 2013, 2014. Eu superei toda aquela história. Eu também vou sobreviver a 2018.
Como advogada, como você avalia o processo em si? Esperava esse resultado?
Todos nós dávamos como certa a condenação. Disso não havia a menor dúvida. Mas não houve nessa sentença individualização das penas. Foram 7 anos para todos. Só três tiveram uma pena de cinco anos e dez meses. Ele [o juiz Flávio Itabaiana] considerou todo mundo dentro de uma mesma situação. Não considerou circunstâncias atenuantes pra uns ou causas de diminuição de pena para outros. Não considerou absolutamente nada. Colocou todo mundo num bolo só de 7 anos.
Quais os próximos passos?
Meus advogados vão recorrer. Eu falei com o meu advogado ontem, assim que eu recebi a notícia da sentença. Ele me falou que há várias ilegalidades na sentença. E vamos aguardar. A sentença não é definitiva. O importante agora é aguardar o recurso que virá e a decisão de segunda instância. Ainda tem um habeas corpus para mim no STF. Está nas mãos do Ministro Gilmar Mendes.
Mas a forma como o processo tramitou foi correta?
Não foi correta. Por exemplo, teve uma emenda à denúncia já com a defesa adiantada, para incluir corrupção de menores. E não houve uma instrução específica para que a gente se defendesse da acusação de corrupção de menores. Corrupção de menores eu quero dizer: a gente estava em uma manifestação com milhares de pessoas em que havia também menores. Pinçam dois menores pra configurar a corrupção de menores. É tanto absurdo nesse processo. Eu digo desde o início que esse processo é kafkiano.
Em que sentido?
Nos absurdos de como se conduziu. Eu consegui inclusive recentemente a minha folha de prisão e aparecia lá quando eu fui presa que não foi por formação de quadrilha e corrupção de menores. Não. Apareceu ‘crime contra propriedade imaterial’. Eu fui presa, e todos os demais que foram presos comigo em 2014, nós fomos presos por pirataria de software. Sim, pirataria de software. O processo inicial era esse.
Esse processo não foi transparente. Em diversos momentos violou-se o princípio do devido processo legal. Nós estamos aguardando há quase quatro anos uma sentença. Excederam muito a razoável duração do processo. Porque que a sentença veio nesse momento específico? Ele [o juiz] teve tempo. Ele esteve com os áudios no gabinete esse tempo todo. Isso estava à disposição dele desde de 2015. São três anos e meio. A nossa última audiência foi em dezembro de 2014.
Você acha que existe alguma justificação política para a sentença ter vindo agora?
Eu acredito que sim. E eu acredito nisso por causa de uma observação que o Juiz fez no processo. E está lá pra todo mundo ver. Ele disse que foi um absurdo escandaloso que o então governador Sérgio Cabral e sua família fossem impedidos do seu direito de ir e vir durante as manifestações do Ocupa Cabral. O Cabral pegou uma pena de 100 anos! Está cumprindo uma pena de 100 anos! Por causa das denúncias do Ocupa Cabral. Que, além disso, foi um dos primeiros a levantar a bandeira pelo Amarildo. As pautas do Ocupa Cabral eram o “Fora Cabral” e o “Cadê o Amarildo?”
A acusação contra vocês é de associação criminosa. Como você avalia essa acusação?
Eu nem conhecia a maioria daquelas pessoas. Já me perguntaram “você tem o telefone de alguém?” Eu não tenho o telefone de ninguém. A maioria deles [dos 23] eu não conhecia nem de vista. Por contatos eventuais que eu tinha com a Elisa [Quadros] na época que ela estava no Ocupa Câmara ou encontrava nas manifestações, contatos absolutamente eventuais, foi isso que o juiz considerou para caracterizar a minha culpa no crime.
Com relação à corrupção de menores, um dos menores citados no processo, o David Paixão, eu adotei. Ele estava em situação de rua em 2014. Estava em situação de vulnerabilidade. Eu entrei com um pedido de guarda provisória porque ele estava com 17 anos nessa época. Ele passou um ano e meio morando comigo. Hoje está com 22 anos. O juiz não considerou esse fato, que é importantíssimo. Como que eu vou ser acusada de corrupção de menores se eu pego o menor que está morando na rua e adoto?
E o caso do policial infiltrado que entregou as provas contra você?
Contra a declaração dele eu tenho 20 testemunhas. Eu apresentei 20 testemunhas que disseram que nunca me viram agindo um milímetro fora da minha atuação como advogada.
Porque você acha que 23 manifestantes foram condenados? Esse número surgiu de onde?
Isso eu também realmente até hoje eu não sei. Eles pinçaram algumas pessoas e disseram ‘olha são esses que nós vamos alçar à condição de líderes das manifestações’, de um movimento que não tinha liderança. As manifestações nasceram de uma forma espontânea.
Você acha que essa tática de terror psicológico continua tendo repercussão até hoje?
Continua sim e está aí o recado. E por que isso? Por causa do Lula. As pessoas querem o Lula solto. Estão se organizando manifestações pelo Brasil inteiro. Os movimentos sociais querem se organizar para que o Lula seja livre e ele seja aceito como candidato. Isso foi um recado para esses manifestantes, para esses movimentos sociais: “olha esses aqui já estão presos, tá? Esses daqui a gente já condenou.” Eu tenho certeza. Isso é um movimento do MDB.
Não é possível, o recado é muito claro! Neste momento em julho? Agora em agosto, daqui algumas semanas começam as candidaturas oficiais.
Você esperava que a sentença vinha neste momento?
Nenhum de nós esperava.
Por que você acha que ele prolongou tanto a sentença?
Essa sentença era para surgir em um momento específico. Era para surgir nesse momento de anseio popular de uma nova mobilização da esquerda em prol do Lula. O recado é este: “não adianta se mobilizar. Não se mobilizem porque o que vocês fizerem, nós vamos processar e nós vamos condenar”.
Você vê injustiça em tudo isso?
A língua portuguesa deveria contemplar uma outra modalidade, alguma outra forma de se expressar para além do que seja injustiça. Porque é o que está acontecendo nesse processo hoje não é só injustiça, é uma enorme arbitrariedade.
Qual é a diferença ente o jogo político que estava em curso em 2013 e o que está em jogo agora?
O que está em jogo agora é a Presidência da República. É um projeto de poder. Mas desde 2013 já se usava táticas de pressão psicológica para poder conter as manifestações…Sim, sempre foi. Se fosse só pressão psicológica a gente tinha passado bem. Prenderam, processaram e agora condenam. Isso é uma violação clara.
Na época, diziam que as manifestações que os manifestantes afrontavam o Estado democrático de direito. Pelo amor de Deus! A democracia é nossa, não é do Estado. A democracia pertence ao povo. É o Estado que afronta a democracia impedindo o direito a livre manifestação. Essa decisão é que é uma verdadeira afronta ao Estado democrático de direito. Não fomos nós.
Os manifestantes de junho de 2013, das Jornadas de Junho pediam saúde e educação. Pediam direito a terra, o direito a moradia. Nós fomos presos por pedirmos o básico. Nós fomos presos porque pretendíamos atender a um princípio de dignidade humana. Eu espero que os movimentos sociais acordem para esse fato. Ou os movimentos sociais se colocam e se levantam para dizer “nós existimos e nós vamos protestar, a gente não vai aceitar calado”, ou nós vamos entrar num Brasil de autoritarismo.