“Se essa rua, se essa rua fosse minha…” Nos territórios invadidos por grandes obras e megaprojetos, em diversas partes do país, a famosa cantiga popular infantil ganha significados de denúncia e reivindicação.
Invisibilizadas pela força do grande capital, que ergue e destrói coisas belas, como musicou Caetano, as crianças são vítimas de uma série de impactos ocasionados por empreendimentos financiados com recursos públicos e de grandes empresas, o que gera uma verdadeira dívida desse poder capital com as comunidades e suas futuras gerações.
Diferentes pesquisas sobre a temática têm enumerado uma série de violações de direitos sofridas por crianças em obras realizadas no Brasil, a exemplo da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e das arenas construídas à época da Copa do Mundo de Futebol: exploração sexual, prejuízo à convivência familiar e comunitária, consumo e tráfico de drogas, exploração do trabalho infantil e abandono ou déficit de acesso à educação escolar, dentre outras.
Casa da Gente?
Em São José dos Campos, cidade do Vale do Paraíba, no interior de São Paulo, um projeto habitacional construído no início dos anos 2000 segue como emblemático quando o assunto é violência contra famílias em situação de pobreza e, de um modo particular, as crianças dessas famílias.
Batizado de “Casa da Gente”, um projeto habitacional coordenado pelo Executivo municipal e financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), foi apresentado com o objetivo de reassentar 453 famílias. Porém, conforme denúncias feitas por organizações da sociedade civil, o que ocorreu foi uma agressiva remoção de mulheres, homens, meninas e meninos que moravam na região central da cidade.
Prometendo dias melhores às famílias, a partir do anúncio da garantia de escola, transporte e emprego, dentre outros direitos, o “Casa da Gente” se revelou, em essência, como mais uma articulação entre poder público e mercado para enganar, afinal o que tem restado para as famílias – desde os primeiros anos do projeto – é crescimento da violência, aumento do tráfico de drogas e atuação autoritária da Polícia Militar que identifica o local onde as famílias estão como CDD – Cidade de Deus, uma referência preconceituosa a um famoso bairro alvo de violência no Rio de Janeiro.
No que diz respeito especificamente às crianças do bairro Jardim São José 2, criado através do “Casa da Gente”, as violências tiveram início ainda antes das remoções forçadas. “As crianças sofreram discriminação desde quando começou o projeto. Na escola tentaram separar as crianças na sala de aula e a assistente social deixava recados dizendo que o trator ia derrubar a casa deles. Antes, as crianças moravam perto de tudo, quando mudaram – para um lugar afastado mais de dezesseis quilômetros – não tinham mais todas as opções de lazer que tinham no bairro próximo do centro. Depois de muita denúncia, levaram uma escola onde tinha reforço e atividades interescolar”, relata Angela Silva, da Associação de Favelas de São José dos Campos.
Angela conta também que, na ausência de políticas públicas efetivas, muitas crianças – e jovens – foram recrutadas para o tráfico de drogas e, a partir disso, tornaram-se alvo de violências policiais, incluindo assassinatos, que apenas têm se intensificado com o passar dos anos. Mães de alguns desses adolescentes, acompanhadas por entidades de direitos humanos, declararam que preferem não lembrar esses episódios pela dor que ainda provocam.
Evidenciando o caráter sistemático da negação de direitos, é também constante, logo após os episódios de violência policial, a suspensão de circulação dos ônibus pelo bairro, prejudicando o deslocamento de crianças até a escola e de suas mães e pais até os respectivos locais de trabalho.
Crianças devem participar das decisões
No entendimento de Assis da Costa Oliveira, professor da Universidade Federal do Pará, que realiza estudos sobre a temática, crianças – e adolescentes – têm seus direitos desconsiderados já na tomada de decisão das obras, o que, fosse diferente, poderia contribuir na prevenção das violações. Em artigo publicado na Le Monde Diplomatique Brasil, o especialista frisa que “o desafio é o planejamento de como cada agente pode agir no sentido de fortalecer a governança do território para melhoria das condições de vida e suporte às mudanças demográficas advindas com os empreendimentos e as obras, e, ao mesmo tempo, como fazer com que os negócios mudem sua lógica de atuação para prevenir e minimizar os impactos negativos, e potencializar os impactos positivos nos direitos de crianças e adolescentes”.
Desse modo, para Oliveira, é fundamental que a consideração dos direitos das crianças e adolescentes se dê não apenas na fase de licenciamento das obras, quando algumas das violações já são irreversíveis, mas de modo transversal em todas as etapas de decisão, do planejamento até a finalização das atividades.
Na perspectiva do defendido pelo pesquisador, vale lembrar que a Resolução nº 215 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), em sintonia com o conceito de proteção integral da infância, estabelece parâmetros e ações para a responsabilização do Estado, das empresas e instituições financeiras no sentido de assegurar os direitos de crianças e adolescentes no contexto de obras e empreendimentos, além de apontar medidas que garantam a participação desse público na tomada de decisões.
Outras violências
No caminho oposto ao que aponta a Resolução do Conanda, a realidade enfrentada pelas crianças do São José 2, em São José dos Campos, e pelas meninas e meninos das famílias brutalmente removidas em função de inúmeras grandes obras soma-se a outros fatos que escancaram o aprofundamento das violações de direitos das crianças.
Um exemplo disso é o aumento, segundo dados do Disque 100, de 14% nos registros de diversas violações contra crianças e adolescentes. Negligência, violência física, psicológica, sexual e institucional foram as motivações das quase 87 mil denúncias feitas apenas em 2019.
Não diferente, dados divulgados pelo UNICEF no último mês de agosto alertam para a intensificação do trabalho infantil no Brasil. Apenas em São Paulo, segundo levantamento do organismo das Nações Unidas, a incidência de trabalho infantil aumentou 26% entre abril e julho deste ano.
Em nota pública a respeito desses dados, o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil expressou que esses números estão diretamente ligados a “problemas estruturais da sociedade brasileira como a pobreza, o desemprego, a informalidade, a concentração de renda, o racismo e a exclusão escolar”, questões sociais que se agravam no cenário atual.
Assim, além de reflexo de decisões conjunturais, todo esse cenário expressa as históricas dívidas sociais do Estado brasileiro com aquelas que são, apenas no discurso, tratadas como “o futuro do país”. Denunciar isso em pleno 12 de outubro, Dia das Crianças, é um imperativo democrático.
Os direitos das crianças querem raízes
Em nível internacional, uma iniciativa que se apresenta como resposta à negação de direitos das crianças e contribui na construção de outra perspectiva sobre a infância e a relação com os territórios é a Campanha “Os direitos das crianças querem raízes”, promovida pela DKA, organização com sede na Áustria e parceira do Jubileu Sul, que empenha esforços em mobilizações para garantia de direitos de meninos e meninas. A campanha está nas redes sociais com a hashtag #raicesparaelfuturo.
Partindo do entendimento de que o bem estar das crianças é inseparável da proteção ambiental, a campanha busca estimular a plantação de árvores, flores e sementes por crianças em diversas partes do mundo, como ação estratégica que articula três dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU: Objetivo 2 (fome zero e agricultura sustentável); Objetivo 12 (consumo e produção responsáveis) e Objetivo 13 (ação contra a mudança global do clima). Informações sobre a campanha podem ser encontradas em: https://www.dka.at/pflanzaktion
E como parte desses esforços, a rede Jubileu Sul Brasil, Américas e o Instituto PACS estão propondo que neste mês de outubro as crianças sejam motivadas a gravar pequenos vídeos onde elas manifestem-se sobre esse futuro, o que elas desejam. Podem ser desenhos, pequenos textos, ao passo que possamos semear as sementes do amanhã e plantando árvores são algumas das ações que envolvem a campanha. Essa produção poderá ser enviada para à Secretaria da Rede, que organizará e publicará com a autorização dos responsáveis. Para envio do material: faleconosco@jubileusul.org.br