A Assembleia Geral das Nações Unidas deu início formal, no começo de fevereiro , à negociação de um marco jurídico multilateral para a reestruturação de dívidas públicas. Há tempos que esse organismo vem debatendo o assunto, mas foi a negativa do governo dos EUA, ao tirar o salva-vidas esperado pelo governo argentino em sua peleja pelos fundos abutres, e a sucessiva mudança de estratégia da Argentina, em junho de 2014, o que galvanizou o apoio dos países “em vias de desenvolvimento” – o G77+China – e tornou possível aprovar em setembro um processo de redação desta nova proposta regulatória.
O objetivo planejado, segundo seus incentivadores, é “aumentar a eficiência, estabilidade e a previsibilidade do sistema financeiro internacional, e conseguir um crescimento econômico sustentável, inclusivo e equitativo”.[i] Mas a proposta trazida pela Argentina indica diretamente o interesse em evitar que “um pequeno núcleo de fundos altamente especulativos e litigiosos tramem estratégias abusivas com o fim de cobrar lucros extraordinários ao bloquear os esforços legítimos de Estados soberanos para encontrar soluções eficientes, equitativas, legais e sustentáveis para suas crises de dívida”. [ii]
Com essa expectativa, o Comitê criado para redigir o novo marco jurídico, integrado por todos os Estados interessados, realizou sua primeira reunião de 3 a 5 de fevereiro, em Nova Iorque. [iii]Se projetam mais duas reuniões, uma para fim de abril e outra para julho, antes de buscar aprovação de parte da Assembleia Geral e iniciar o processo posterior de ratificações.
Enfrentar o sistema de endividamento, encarando sua ilegitimidade
O Diálogo 2000, junto à rede Jubileu Sul Américas, respondeu ao convite para fazer chegar suas considerações e propostas, enfatizando a necessidade de que um novo marco jurídico contribua para fortalecer a capacidade de ação dos povos e países que querem enfrentar a perversa lógica e consequências do sistema de endividamento em seu conjunto. [iv] Sobre possíveis falhas, alertam do perigo que o esforço sirva simplesmente para agilizar o funcionamento de um sistema que, pior que os fundo abutres, signifique o saque permanente e violação dos direitos dos povos a partir da cobrança de lucro e usura, e o pagamento contínuo de dívidas ilegítimas que raramente beneficiam a quem são obrigados a servi-las.
As duas entidades destacam que toda gestão da dívida pública deve se basear na primazia dos direitos humanos acima de qualquer contrato e chamam a atenção sobre a ausência de referência deste requisito na resolução estabelecida pela negociação que já foi iniciada. Propõem que se tome como ponto de partida os Princípios Reitores sobre Dívida Externa e Direitos Humanos, [v] aprovados em 2012 pelo Conselho de Direitos Humanos, recomendação também formulada pelo atual Especialista Independente das Nações Unidas sobre Dívida e Direitos Humanos, o argentino Juan Pablo Bohoslavsky. [vi]
Em linha com os Princípios Reitores, da recomendação feita para a Argentina pelo Especialista anterior, Cephas Lumina, depois de sua Missão ao país em novembro de 2013, [vii]Diálogo 2000 e Jubileu Sul Américas reivindicam no novo marco a incorporação de um mecanismo participativo e integral para determinar a legitimidade dos reclamos e pedem a exclusão de futuros pagamentos ilegítimo ou ilícito
Defendem a centralidade desta investigação ou auditoria ao reconhecer que as dívidas cobradas aos povos, sobretudo no Sul, em geral têm pouco ou nada a ver com a entrada prévia de recursos. “Tem sido geradas, em sua maioria, sem contrapartida alguma em bens ou serviços para os povos…, (respondem) aos interesses dos prestadores…, os povos costumam não só não ter voz nem voto a respeito, como suas expressões de protesto ou rechaço são ignorados ou pior ainda, reprimidas e criminalizadas”, agregam.
Por isso, as duas entidades enfatizam que “deveria ser prioritário para as Nações Unidas fortalecer a vontade e capacidade dos povos e seus Estados para investigar e denunciar a ilegitimidade e ilicitude das dívidas, antes de continuar comprometendo seu presente e futuro com novas modalidades e termos de pagamento”. [viii] Afirmam também, no texto colocado para consideração dos Estados, que “reestruturações de dívida que não se baseiam na identificação e exclusão dos reclamos de cobrança viciada, como se tem visto reiteradamente na Argentina e em tantos outros países só favorecerão a continuidade do sistema de roubo contra os direitos e interesses daqueles que mais demandam a proteção do marco jurídico internacional”.[ix]
Experiências concretas como a da República do Equador demonstraram a possibilidade e o valor de auditar os requerimentos da dívida. Na Argentina é uma reivindicação antiga, sustentada em decisões judiciais como a Decisão Olmos do ano 2000, que comprova a fraudulência de grande parte da dívida que o povo continua sendo obrigado a pagar. Mas recentemente foi aprovada com a formação da Assembleia Geral pela Suspensão de Pagamentos e Investigação da Dívida e pela Defesa do Patrimônio Nacional e Bens Comuns, [x] um espaço multissetorial que, entre outras demandas, pede ao Congresso da Nação o funcionamento da Comissão Bicameral Investigadora da Dívida, cuja criação se aprovou em setembro, mas sem estimativa de continuidade.
Dar fim à impunidade
Ao concluir sua apresentação, o Diálogo 2000 e Jubileu Sul Américas referem ao Comitê o desafio de desandar a arquitetura da impunidade corporativa construída nacional e internacionalmente ao longo das última décadas de hegemonia neoliberal, muitas vezes através do poder extorsivo do próprio endividamento ilegítimo e injusto.
Enfatizam a necessidade de reverter, por exemplo, os limites para a soberania popular e nacional estabelecidos por instrumentos tais como a Lei da Imunidade Soberana Estrangeira dos EUA, os tratados de livre comércio e de proteção aos investimentos e a aceitação de jurisdições estrangeiras e foros assimétricos como o CIADI. Propõem vincular as negociações a um novo marco para a reestruturação de dívidas, ao processo já iniciado no Conselho de Direitos Humanos para redigir um convênio multilateral para submeter aos grandes atores privados do sistema internacional econômico – incluindo os bancos, fundos abutres e outras transnacionais financeiras – ao cumprimento dos direitos humanos. [xi]
Por certo, ambos processos têm agora um futuro aberto. Ter conseguido que o debate aconteça nas Nações Unidas e não nos “foros especializados” com o FMI ou o Banco Mundial, pode ser considerado um avanço. Mas a ausência nesta primeira reunião de representações dessas instituições e dos países centrais como EUA, União Europeia, Japão e Canadá, os mesmo que já votaram contra as negociações e que são os principais protetores dos fundos abutres, das corporações transnacionais e de toda a gama de políticas e instrumentos constitutivos do sistema de endividamento e espoliação aos quais os povos são submetidos, a natureza e a qualquer governo que busca romper com sua lógica, no melhor dos casos abre uma grande interrogativa sobre as consequências práticas do esforço.
Na apresentação de sua proposta ao Comitê – disponível somente em inglês – o governo da Argentina afirma que reestruturar a dívida é um direito e uma decisão soberada de todo Estado. Propõe a criação de um “Mecanismo Multilateral de reestruturação de dívidas soberanas (sic)”, supervisionado por um “Comitê de Verificação” integrado por três Estados: um escolhido pelo Estado reestruturante eos outros dois pelo conjunto de Estados-parte do convênio. Propõe ainda que o Estado reestruturante estabeleça um procedimento para a verificação e registro de requerimentos – algo que o governo argentino se negou a realizar – mas remete tal verificação à possibilidade de identificar possíveis conflitos de interesses à raiz da posse simultânea de requerimentos de dívida e de instrumentos de cobranças vinculadas à eventualidade de uma situação de não-pagamento.
Soberania e direitos vs. Sustentabilidade do pagamento
Se limita, em poucas palavras, a uma proposta que continua se esquivando do problema de fundo do sistema de endividamento que é a dominação e saque permanente que exerce. Seu objetivo, continuar sendo “pagador serial”, como colocou a presidenta argentina, de uma dívida cuja legitimidade não está disposta a ser questionada para que seja possível se continuar endividando fora do país.
Explica que o Estado reestruturante deve garantir a “representação genuína e eficaz” dos interesses daqueles que se identificam como credores, mas em nenhum momento se refere à defesa dos insteresses – e muito menos da participação – daqueles que estão ou serão afetados em seus direitos pela geração as dívidas reclamadas e seu pagamento. Ou seja, continua priorizando “a sustentabilidade do pagamento” por sobre os direitos dos povos, os únicos credores legítimos.
Reestruturar dívidas não é sinônimo de resolver a crise do sistema de endividamento. Hoje se vê isso com toda clareza na Grécia, como nos anos 80 e 90 se via em todas partes do Sul. Os ajustes, privatizações, concessões e nova dívida produto dessas reestruturações, seguem gerando consequências cada vez mais graves para a soberania e bem viver desses povos. Por isso, é necessário fortalecer o protagonismo popular, recuperar e atualizar importantes fontes de direitos como as Doutrinas Calvo, Drago e Espeche e a Doutrina da Dívida Odiosa, entre outras, que colocam limites ao poder dos prestamistas e estabelecem a não obrigação de pagar dívidas contraídas sem o consentimento dos povos e contra seus interesses. Só assim se poderá reverter os supostos direitos do mercado e de todos os prestadores, cujo único propósito é continuar cobrando e acumulando o que os povos necessitam para viver.
Beverly Keene, Diálogo 2000/Jubileu Sul Argentina -Buenos Aires, 20/2/15.
Tradução: Rogéria Araujo, Rede Jubileu Sul Brasil