“A dívida brasileira alcançou R$ 3,6 trilhões ou 82% do PIB”, diz a auditora fiscal

O endividamento público de vários países gerou o que Maria Lúcia Fattorelli denomina de “sistema da dívida”, ou seja, a “utilização do endividamento público às avessas; em vez de servir para aportar recursos ao Estado, o processo de endividamento tem sido um instrumento de contínua e crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados principalmente ao setor financeiro privado”. Segundo ela, a dívida pública é, atualmente, “um dos principais alimentos do capitalismo, especialmente na atual fase de financeirização global, e favorece a concentração de renda no setor financeiro, aumentando ainda mais o seu poder”. E dispara: “O Sistema da Dívida opera de modo similar nos diversos continentes, fundamentado no enorme poder do setor financeiro, em âmbito mundial, o que lhe possibilita exercer seu controle sobre as estruturas legais, políticas, econômicas e de comunicação de países, gerando diversos mecanismos que viabilizam esse esquema”.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, a auditora fiscal também comenta a dívida dos estados brasileiros, a qual foi gerada de “forma espúria” e “passou a crescer em escala exponencial devido à extorsiva remuneração nominal cobrada pelo governo federal, correspondente à incidência de atualização monetária mensal automática calculada com base na variação do IGP-DI, cumulativa com a incidência de juros de 6 a 9% ao ano”.

De acordo com ela, a remuneração nominal tem sido abusiva e levado os estados a contraírem junto ao Banco Mundial e bancos privados. “Uma verdadeira aberração e ofensa ao Federalismo, além do risco de transferir a crise financeira para o interior do país. Isso porque tais bancos internacionais exigem, entre outras condicionalidades, a transformação do sistema previdenciário estadual para a modalidade de fundos de pensão de natureza privada, que investem fortemente em derivativos – papéis podres que provocaram a crise financeira nos Estados Unidos e na Europa”, esclarece.

maria-lucia-fattorelliMaria Lúcia Fattorelli ainda chama a atenção para as implicações sociais da dívida pública dos Estados. “O custo da dívida pública é transferido diretamente para a sociedade, em particular para os mais pobres, tanto por meio do pagamento de elevados tributos incidentes sobre tudo o que consomem, quanto pela ausência ou insuficiência de serviços públicos a que têm direito – saúde, educação, assistência social, previdência – e, ainda, entregando patrimônio público mediante as privatizações e a exploração ilimitada de riquezas naturais, com irreparáveis danos ambientais, ecológicos e sociais. O custo social é imenso”. Segundo ela, a dívida externa brasileira explica o “paradoxo inaceitável que existe em nosso país: sétima economia mundial e um dos países mais injustos do mundo, desrespeitando direitos humanos fundamentais, como denuncia a inaceitável classificação em 85º lugar segundo o IDH medido pela ONU”.

Maria Lúcia Fattorelli é auditora fiscal e coordenadora da organização brasileira Auditoria Cidadã da Dívida. Foi membro da Comissão de Auditoria Integral da Dívida Pública – CAIC no Equador em 2007-2008. Participou ativamente nos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a dívida realizada no Brasil. É autora de Auditoria Da Dívida Externa. Questão De Soberania (Contraponto Editora, 2003).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é Sistema da Dívida? Como e por que ele se reproduz em vários países do mundo?

Maria Lúcia Fattorelli – Escolhemos o tema “Sistema da Dívida” para nortear todos os debates do seminário internacional que realizamos na semana passada devido à importância da percepção da atuação desse esquema em vários países.

O “Sistema da Dívida” corresponde à utilização do endividamento público às avessas, ou seja, em vez de servir para aportar recursos ao Estado, o processo de endividamento tem sido um instrumento de contínua e crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados principalmente ao setor financeiro privado.

Esse esquema funciona por meio de diversos mecanismos que geram dívidas, na maioria das vezes sem qualquer contrapartida, e promovem seu contínuo crescimento. Para operar, tal sistema conta privilégios legais, políticos, econômicos e também com a grande mídia, além de contar com o suporte dos organismos financeiros internacionais para impor medidas que favorecem a atuação do “Sistema da Dívida”.

O livro “Auditoria Cidadã da Dívida: Experiências e Métodos”, que lançamos durante o seminário internacional, detalha tais mecanismos, cabendo ressaltar os esquemas de “salvamento de bancos”, a transformação de dívidas privadas em dívidas públicas e a aplicação de “Planos de Ajuste Fiscal”, que se fundamentam em cortes orçamentários, privatizações e demais reformas liberais para destinar os recursos ao “Sistema da Dívida”.

IHU On-Line – Como o Sistema da Dívida funciona internacionalmente? Todos os países são afetados por esse sistema?

Maria Lúcia Fattorelli – As experiências de auditoria já realizadas têm demonstrado que o “Sistema da Dívida” segue um modus operandi semelhante em diversos países, passando por fases permeadas de fatos graves, tais como:

• geração de dívidas sem contrapartida alguma ao país ou à sociedade;

• aplicação de mecanismos meramente financeiros (taxas de juros abusivas, atualização monetária automática, cobrança de comissões e taxas etc.), que fazem a dívida crescer continuamente, também sem qualquer contrapartida real;

• refinanciamentos que empacotam dívidas privadas e outros custos que não correspondem a entrega de recursos ao estado, provocando elevação ainda maior no volume do endividamento e beneficiando unicamente o setor financeiro privado nacional e internacional;

• utilização do endividamento gerado dessa maneira como justificativa para a implementação de medidas macroeconômicas determinadas pelos organismos internacionais (principalmente FMI e Banco Mundial) contrárias aos interesses coletivos e que mais uma vez beneficiam unicamente o mesmo setor financeiro, tais como privatizações, reforma da previdência, reforma trabalhista, reforma tributária, medidas de controle inflacionário, liberdade de movimentação de capitais etc.

A dívida pública é um dos principais alimentos do capitalismo, especialmente na atual fase de financeirização global, e favorece a concentração de renda no setor financeiro, aumentando ainda mais o seu poder. Por isso, o endividamento é um problema presente em quase todos os países capitalistas. Além de atentar para o volume da dívida, é preciso observar o valor dos juros que dirão o peso dessa dívida para cada país. Nesse sentido, o endividamento brasileiro é o mais oneroso do mundo, devido às elevadíssimas taxas de juros.

IHU On-Line – Qual a situação da dívida pública brasileira? Que percentual do orçamento federal é destinado ao pagamento da dívida?

Maria Lúcia Fattorelli – Os números da dívida pública brasileira indicam que já estamos em situação de crise da dívida. Em 31/12/2012, a Dívida Externa alcançou US$ 442 bilhões (R$ 884 bilhões a R$2,00). É verdade que a maior parte dessa dívida é privada, porém, possui a garantia do governo brasileiro e, dessa forma, constitui uma obrigação que deve ser computada em sua integralidade.

Por sua vez, a chamada Dívida Interna atingiu o patamar de R$ 2,8 trilhões em 31/12/2012. A maior parte dessa dívida está nas mãos de bancos nacionais e internacionais. Dessa forma, a dívida brasileira alcançou R$ 3,6 trilhões ou 82% do PIB.

Diversos artifícios são utilizados para “aliviar” o peso dos números, tais como:

• Dívida “Líquida”;

• Juros “reais”;

• Parte dos juros nominais contabilizada como se fosse Amortização;

• Exclusão da Dívida Externa “Privada”;

• Comparação Dívida Líquida-PIB.

O gráfico a seguir mostra o impacto da dívida no orçamento federal:

ORÇAMENTO DA UNIÃO EXECUTADO EM 2012

VALOR TOTAL: R$ 1,712 TRILHÃO

IHU On-Line – Como essa dinâmica ocorre internamente entre os estados brasileiros e a União? Qual é o estado brasileiro mais endividado?

Maria Lúcia Fattorelli – O Sistema da Dívida se reproduz também internamente, tendo em vista que, no caso dos estados, quase toda a dívida não possui contrapartida real e cresce a partir de mecanismos meramente financeiros.

A maior parcela da dívida dos estados corresponde ao refinanciamento feito pelo governo federal a partir do final da década do 1990 (com base na Lei 9.496/97). Esse refinanciamento englobou passivos de bancos estaduais que seriam privatizados (PROES), ou seja, transformou parcelas de diversas naturezas em dívida pública dos estados. Tal fato evidencia a ausência de contrapartida de tais “dívidas” que foram geradas em processo não transparente e questionável sob todos os aspectos e comprova a atuação do “Sistema da Dívida”. Além disso, existem vários questionamentos acerca da origem da dívida refinanciada, conforme detalhamos no livro “Auditoria Cidadã da Dívida dos Estados”, que lançamos em maio deste ano.

Além de gerada de forma espúria, essa dívida passou a crescer em escala exponencial devido à extorsiva remuneração nominal cobrada pelo governo federal, correspondente à incidência de atualização monetária mensal automática calculada com base na variação do IGP-DI, cumulativa com a incidência de juros de 6 a 9% ao ano.

Essa remuneração nominal tem sido tão abusiva que diversos entes federados estão contraindo empréstimos junto ao Banco Mundial e bancos privados internacionais para pagar ao governo federal. Uma verdadeira aberração e ofensa ao Federalismo, além do risco de transferir a crise financeira para o interior do país. Isso porque tais bancos internacionais exigem, entre outras condicionalidades, a transformação do sistema previdenciário estadual para a modalidade de fundos de pensão de natureza privada, que investem fortemente em derivativos – papéis podres que provocaram a crise financeira nos Estados Unidos e Europa. O estado brasileiro mais endividado é São Paulo.

IHU On-Line – Em que consiste o projeto do Senado em relação à dívida dos estados?

Maria Lúcia Fattorelli – O PLP nº 238/2013 não enfrenta devidamente o problema das dívidas públicas de estados e municípios, constituindo leve paliativo. Limita-se a modificar o cálculo da REMUNERAÇÃO NOMINAL cobrada pela União e o ESTOQUE das dívidas dos estados e municípios de forma insuficiente, conforme resumido a seguir:

Novo relatório do PLP 238: A partir da aprovação do PL-238, a remuneração nominal cobrada pela União passaria a ser composta pelas seguinte parcelas:

JUROS REAIS: “calculados e debitados mensalmente, à taxa de quatro por cento ao ano, sobre o saldo devedor previamente atualizado”.

ATUALIZAÇÃO MONETÁRIA: “calculada e debitada mensalmente com base na variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Ampliado – IPCA”.

O estoque das dívidas será recalculado desde a assinatura dos contratos com base na taxa Selic até 2012.

Críticas: Manutenção do privilégio de atualização monetária mensal. Tal atualização é acumulada mês a mês ao estoque da dívida. Trata-se de ilegitimidade que vem sendo perpetuada desde o início dos acordos de refinanciamento, pois foi abolida a indexação automática no País.

A remuneração proposta ainda é extorsiva, especialmente se comparada com as benesses concedidas pelo BNDES a empresas privadas, mediante contratos que cobram remuneração nominal fixa inferior a 6% ao ano (sem atualização monetária), ou apenas a TJLP (sem atualização monetária), que atualmente se encontra em 5% ao ano. Externamente, o governo empresta aos Estados Unidos a juros praticamente nulos.

Embora reconheça a necessidade de rever o cálculo desde o início da vigência dos acordos de refinanciamento com a União, a proposta de aplicação da taxa Selic corresponde à cláusula onerosa prevista nos acordos celebrados, ou seja, era considerada uma penalidade na época da celebração dos referidos acordos.

Tal proposta deixa as dívidas da maioria dos estados e municípios praticamente inalteradas. Nos estados em que o acordo prevê remuneração nominal de IGP-DI + 6%, a nova proposta seria ainda mais onerosa, já que a variação da Selic superou tal remuneração. Dessa forma, tais entes não terão benefício algum com esse recálculo do estoque.

No caso de MG (cujo acordo prevê remuneração nominal de IGP-DI + 7,5% de juros), a taxa acumulada de 1998 a 2012 cairia de 968% para 859%. Tal redução é ínfima, se compararmos com a revisão que deveria ser feita: caso aplicado juros fixos de 6% (critério concedido pelo BNDES ao setor privado), a dívida de MG já estaria totalmente paga desde 2011.

Um dos poucos beneficiados com essa proposta será o município de São Paulo, cujo acordo prevê remuneração nominal de IGP-DI + 9% de juros).

IHU On-Line – Quais são os impactos sociais e econômicos do Sistema da Dívida?

Maria Lúcia Fattorelli – Como antes mencionado, o Sistema da Dívida opera de modo similar nos diversos continentes, fundamentado no enorme poder do setor financeiro, em âmbito mundial, o que lhe possibilita exercer seu controle sobre as estruturas legais, políticas, econômicas e de comunicação de países, gerando diversos mecanismos que viabilizam esse esquema.

Ao final, o custo da dívida pública é transferido diretamente para a sociedade, em particular para os mais pobres, tanto por meio do pagamento de elevados tributos incidentes sobre tudo o que consomem, quanto pela ausência ou insuficiência de serviços públicos a que têm direito – saúde, educação, assistência social, previdência – e, ainda, entregando patrimônio público mediante as privatizações e a exploração ilimitada de riquezas naturais, com irreparáveis danos ambientais, ecológicos e sociais. O custo social é imenso.

O gráfico do orçamento federal evidencia que, na medida em que absorve quase a metade dos recursos, todas as áreas sociais ficam prejudicadas, o que explica o paradoxo inaceitável que existe em nosso país: sétima economia mundial e um dos países mais injustos do mundo, desrespeitando direitos humanos fundamentais, como denuncia a inaceitável classificação em 85º lugar segundo o IDH medido pela ONU.

É necessário conhecer que dívidas os povos estão pagando. A AUDITORIA é a ferramenta que nos permite conhecer e documentar este processo. O papel da cidadania é de suma relevância, pois além de conhecer o processo, deve procurar incidir nessa realidade. Não pode estar passiva diante do contínuo e crescente escoamento de recursos públicos orçamentários, acompanhado da entrega de riquezas nacionais de forma infame. É necessário fundamentar – com documentos e provas – as denúncias desse vergonhoso esquema que tem submetido países e povos a uma escravidão incompatível com a situação econômica real, suficiente para garantir vida digna e abundante para todas as pessoas.

Assim, a auditoria cidadã se converte em uma ferramenta de luta social. Convido a todos a acompanhar nossas páginas clicando aqui e aqui, ler e divulgar nossas publicações e participar dos Núcleos da Auditoria Cidadã.

Fonte: IHU

Foto: http://bit.ly/fEaLGm

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