Por Sandra Quintela – Economista, Pacs/Jubileu Sul.
Março/2014
A história da América Latina é constituída por processos exógenos que marcaram profundamente sua maneira de ser e estar nesse mundo. Desde o Brasil é tão difícil falar em América Latina. Afinal as coisas acontecem “lá na América Latina”… Ainda mais as ditaduras que aqui passaram e continuam a passar como um espectro que nos ronda sombriamente. E muitas perguntas continuam no ar: Por que existiram essas ditaduras? A quem favoreceram? Serviram para instalar que forma de sociedade? Houve similaridades entre elas? Que grupos econômicos estavam por trás? Que modelos de desenvolvimento norteavam o projeto econômico em curso? Que polícia nós herdamos? Enfim, muitas questões que precisam ser respondidas e estão aos poucos voltando à baila, e no Brasil em particular, tardiamente, neste ano em que o golpe de Estado completa 50 anos.
A história dos golpes latino-americanos não se restringe ao século passado. Na história recente da América Latina podemos lembrar-nos de pelo menos duas tentativas e três golpes de estado foram instituídos em pleno século XXI. Estamos falamos da tentativa de golpe na Venezuela em abril de 2002 e na Bolívia em 2008; o consolidado golpe de Estado no Haiti de fevereiro de 2004; em Honduras, em junho de 2009; e no Paraguai, em julho de 2012. Com todo esse ciclo de novos golpes, com se comporta e atua a esquerda hoje na América Latina? Como se manifesta a solidariedade concreta e permanente? Será que perdemos o sentimento desse internacionalismo socialista? Em plena segunda década do século 21, são poucas as organizações que têm um trabalho, seja ele qual for, de solidariedade concreta com a América Latina e Caribe. Elas existem e atuam, mas, são poucas.
E aí vem uma onda nostálgica. Fico lembrando da minha juventude quando sonhávamos em estar nas montanhas da Nicarágua, colhendo café, apoiando no processo de alfabetização, aprendendo com aquelas mulheres incríveis revolucionárias que tanto nos ensinaram. Em 1979 chegava ao poder a Revolução Sandinista. Imaginem o momento: entrando nos 80s, a famosa “década perdida”. A década do nascimento dos yuppies de Wall Street. Que momento, não? Um país pequeno da América Central resolve enfrentar o império. E logram uma revolução que foi destruída, principalmente, pela ação dos contrarrevolucionários que não deixaram a Nicarágua em paz. Milhões de dólares de financiamento do governo americano através da CIA alimentavam uma guerra sem fim contra as transformações que tomavam o país (reforma agrária, alfabetização, participação popular, etc. etc.).
Nos anos 70 e 80 do século passado vivíamos em nosso cantinho no mundo situações absolutamente dispares. Enquanto a Revolução Sandinista nos fazia sonhar, nessa mesma década de 70 o Cone Sul era sangrado por torturas e mortes. A Argentina com seus mais de 30 mil desaparecidos no último dos seis golpes de Estado que sofreu ao longo do século XX. Essa ditadura começou em 1976 e durou até 1983. O Chile de Pinochet, de 1973 a 1990. Uruguai, de 1973 a 1985. A ditadura do Paraguai, de 1954 a 1989, com Alfredo Stroessner, apresenta características mais especificas, mas, com a Operação Condor resolvem-se, do ponto de vista da ditadura, os possíveis descompassos que houvesse na região. A estratégia-síntese de atuação no Cone Sul – Operação Condor – plantava o terror com sequestros e perseguições.
E nesses anos 70, 80 e até o começo dos anos 90 era forte na esquerda ocidental o sentimento e a prática da solidariedade internacional.
Havia comitês espalhados pelo mundo em apoio à Revolução Sandinista. O exilado político sul-americano podia pedir asilo político na França, na Holanda, no México ao mesmo tempo em que em muitos países eram constituídos comitês de apoio a refugiados. Organizavam-se palestras, exposições, recitais, etc. etc.. Parecia mais real a famosa frase de Che “Se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros”.
Finalizando o século XX na América Latina, vivíamos esses tempos Uma região que estava sendo esgarçada sendo puxada ao norte e ao sul por processos radicalizados que nos fizeram chegar ao século XXI marcados por muita luta, resistência, violência, solidariedade, torturas, desaparecimentos e uma sede louca de nos ver como região e como uma só luta. Ao mesmo tempo, as ditaduras foram acabando e as democracias foram domando as populações pelo consumismo, pela hegemonia ideológica e pelos programas compensatórios.
No Brasil há 50 anos, um golpe duríssimo assolou o país. O primeiro de um ciclo de golpes no Cone Sul. Em 64 não era apenas a ditadura que começava no Brasil. Ali estava sendo gestada uma onda de golpes civil-militares que impuseram um modelo de desenvolvimento ao Cone Sul baseado no favorecimento a grandes grupos econômicos, a um processo de sobre endividamento público que nos faz pagar uma gorda conta até hoje, ao fim de processos de reformas de base; a criminalização sistemática das lutas e movimentos sociais.
Que herdamos como sociedade após cinquenta anos do golpe e 29 anos da redemocratização iniciada em 1985? Redemocratizamos mais a sociedade? Desmilitarizamos a policia? Fizemos auditoria da dívida externa conforme prevê a Constituição de 88, a “Constituinte Cidadã”? Fizemos as reformas de base anunciadas por João Goulart em 13 de março de 1964?
Memória, verdade e justiça! Memória tão importante para sabermos quem somos, de onde viemos, como nos formou, como resistimos, como lutamos, como festejamos, como culturalmente nos expressamos. Resgate das injustiças cometidas, os crimes, pelos os torturadores, pelos grupos econômicos, pelos governantes de então e pelas agências internacionais que apoiavam os ditadores política e financeiramente. Verdade para contar a história de outra maneira. Lamarca, Marighela, Herzog, Rubens Paiva, Zuzu Angel, e tantos e tantas mais são nossas referencias de luta e resistência. Justiça em um país que continua mandando o latifúndio rebobinado pelo agronegócio. Manda quem tem. Manda quem é rico. E isso é tão naturalizado que a polícia militar pode fazer o que quiser na favela. Pode tudo, até um carro da polícia arrastar uma mulher negra mãe de quatro filhos pela rua, como se transportasse um pacote de carne. Um sentimento de impunidade e legitimidade que o Estado outorga a essas criaturas que cometem um ato como esse.
O que herdamos da ditadura civil militar instalada na América Latina?
Não tivemos tantos mortos ou desaparecidos como na Argentina, Paraguai ou Chile. O processo de desnudar e reparar as violações de direitos humanos também se deu de maneira diferenciada. Na Argentina o ex-ditador argentino Jorge Rafael Videla morreu na prisão em 2013 aos 87 anos. Ele cumpria duas penas de prisão perpétua por crimes contra a humanidade cometidos durante o seu período à frente da ditadura argentina (de 1976 a 81) encarcerado em prisão comum.
Tanto a Argentina como o Uruguai parece olhar mais atentamente para o passado, para conseguir seguir a passos mais largos no sentido da democratização de suas sociedades.
Aquele sentimento de solidariedade internacional tão forte que vivíamos nos primórdios da atual fase do capitalismo financeirizado – anos 80, 90 – se torna cada vez mais focado em situações precisas do cotidiano. O transpassar fronteiras e horizontes e olhar nosso mundo com o olho de companheirxs, parece cada vez mais urgente e necessário. Aqui e lá.
A campanha continental contra a ALCA lançada em 2002 no Fórum Social mundial foi um desses magistrais esforços de sermos um só continente com todas as nossas diferenças.
Há uma crescente escalada militarista em toda a nossa região e no mundo. Leis cada vez mais antidemocráticas entram em cena. Aproveita-se de mega eventos para aprovar essas leis. Quem vendia as armas na época da ditadura? Quem vende armas hoje? Quem está sendo fornecedor dessas milionárias compras de armas e equipamentos para a Copa? Só de bolas de borrachas R$30 milhões. Quem as vende?
Nos falta talvez, exercitar mais a solidariedade concreta. Em 2014 não e só o ano da copa. São 10 anos do golpe e consequente ocupação militar no Haiti. O que está sendo feito de concreto para, de maneira sistemática, demonstrar nossa solidariedade concreta com esse povo com o qual temos uma dívida histórica? Eles foram os primeiros a conquistar a liberdade em tempos de colonialismo.
Enfim, muitas perguntas a responder e a pesquisar nesses 50 anos de ditadura no Brasil, já que é sobre América Latina que eu devo discorrer.
As jornadas de junho reinauguraram uma etapa de povo na rua. É necessário seguir no esforço de continuar nas ruas e ter vitórias. Avançar no direito ao território. Avançar nas reformas de base. Avançar na agende de democratização radical do Estado brasileiro.
Ditadura nunca mais!
Solidariedade e Luta: Sempre!