Por Miguel Borba de Sá | Instituto PACS e rede Jubileu Sul Brasil

Após ser eleita em 2010 para a Presidência da República e figurar na capa da revista Forbes em setembro de 2012 como símbolo (capitalista) de mulher em posição de poder mundiali, Dilma Rousseff (PT) tornou-se, em menos de dois anos, alvo de intensa campanha midiática de difamação, cujo objetivo declarado era culpá-la pela suposta “mais grave crise econômica da história do país”ii. Desde sua reeleição em 2014, as oposições de direita ao seu governo dedicaram-se a inviabilizar sua gestão mediante um bloqueio legislativo no congresso nacional, além de pressioná-la pelo judiciário (tradicionalmente elitista) e desestabilizá-la através da imprensa e organizações conservadoras da sociedade civil brasileira. Em maio de 2016 conseguiu-se afastar, temporariamente, a presidenta eleita e um novo governo, encabeçado pelo vice Michel Temer tomou posse, dando início a uma série de cortes de direitos e a reformas econômicas de caráter ultraliberal. Antes festejada pelas elites corporativas, Dilma terminou sofrendo um verdadeiro golpe, ou melhor, três: um de azar, outro de traição e, por fim, também um golpe de ideologia.

dilma forbesO golpe de azar veio com a brusca inversão no comportamento dos preços do petróleo no mercado mundial, ao qual estão atrelados uma série de outros preços importantes para a economia brasileira, em especial o das commodities agrícolas e minérios. A trajetória ascendente das cotações petrolíferas parecia inabalável desde a grande alta iniciada em 2003, concomitante à invasão norte-americana do Iraque, seguida das sanções contra Irã e Rússia e da destruição da Líbia em 2010 – totalizando quatro dos maiores produtores mundiais afastados do mercado, em maior ou menor grau, durante quase uma década. No entanto, os preços que alcançavam U$ 140 por barril às vésperas da crise financeira de 2008 caíram drasticamente e, após uma recuperação tímida, voltaram a baixar com força em 2016, sendo cotados a menos de U$ 30. A economia brasileira refletiu parte dessa queda, experimentando retrações em seu crescimento, assim como a de outros países latino-americanos como Equador, Bolívia e, principalmente, Venezuela, que dependem demasiadamente da renda advinda das exportações hidrocarburíferas e preços a ela cominados. Analistas de relações econômicas internacionais apontam para a sobre-oferta, somada a uma “guerra de preços” iii, atrelada à “guerra cambial” e, sobretudo, transformações geopolíticas de fundo no mapa do Oriente Médio e Cáucaso, como fonte de tamanha alternância para baixo no patamar de preçosiv.

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Tomando este último ponto como particularmente relevante, pode-se entender o golpe de azar sofrido por Rousseff: a manobra geopolítica envolvendo o preço do petróleo (já usada com sucesso contra a antiga União Soviética nos anos 1980) não tinha o Brasil como alvo. O objetivo norte-americano e de seus aliados na OPEP, em especial a Arábia Saudita, era antes de tudo enfraquecer os regimes russo, iraniano e, com sorte, propiciar a conveniente caída do governo bolivariano na Venezuela também. No entanto, tais economias-alvo conseguiram sobreviver aos ataques imperiais, a duras penas, assim como suas lideranças políticas, que nos três casos mencionados também envolveram a aplicação direta de sanções econômicas – o rublo chegou a desvalorizar 50% entre 2014 e 2015v. O resultado desta guerra cambial-petroleira internacional continua indefinido no Oriente Médio e nas bordas da Ásia Menor entre Rússia e Irã mas, na América Latina, seus efeitos colaterais surtiram efeito político imediato: o discurso da “crise econômica” (bem distinto da crise real, por sinal) serviu de substrato para as tentativas de golpe no Brasil, Equador e Venezuela, assim como para a vitória presidencial de um representante direto do empresariado associado ao capital transnacional na Argentina. No caso do Brasil, que não era alvo prioritário desta estratégia, a repercussão da queda brusca dos preçosvi acabou somando-se a outros fatores, em especial uma forte crise na Petrobrasvii que possivelmente reduziu a quantidade de dinheiro disponível para corrupção e gerou, com isso, uma insatisfação generalizada na elite política que gozara desde os anos 1990 de considerável liquidez para seus negócios pessoaisviii. O resultado foi a precipitação da queda de Rousseff, tida como indesejável pela oposição de direita há menos de um anoix.

O segundo golpe foi eminentemente político, o que significa dizer que se tratou de um clássico golpe de traição palaciano: um complô armado no seio do próprio governo, em conluio com setores mais reacionários da oposição de direita ao PT no Congresso, simbolizados pelas “bancadas da bala, da bíblia e do boix, e na sociedade civil, onde se organiza uma “nova direita” nas igrejas e suas empresas associadas, nos círculos militares mais conservadores e, claro na grande mídia corporativa e demais aparatos ideológicos neoliberais. O fato do PT ter se esforçado, desde que chegou ao poder, para agraciar como pudesse os mais variados setores do empresariado nacional e estrangeiro não significa que essa tarefa seja, na prática, realizável: é impossível contemplar a todos os capitalistas ao mesmo tempo, especialmente em tempos de “crise”. O fator petróleo antes mencionado serve como indicador para esta mudança no comportamento do empresariado: gradativamente, um por um, os diferentes setores e associações corporativas transitaram em direção à “solução” para a crise apresentada pelos setores políticos dispostos a tomar de assalto o poder executivo nacional para si: o impeachment de Rousseff e o fim da era PT no governo federal.

A provável retomada dos preços do petróleo até o fim do ano de 2016 (nem os EUA, nem seus aliados podem suportar um preço tão baixo por muito mais tempo) fez com que um desacreditado grupo de políticos, notadamente corruptos, lograsse atrair o apoio das elites econômicas para sua manobra golpista a tempo, ou seja, antes que os preços (e as receitas governamentais) subissem novamente. A permanência e o nível de estabilidade do novo regime puramente neoliberal brasileiro depende, em grande parte de quanto a economia internacional voltará a crescer – e quando. Caso os sinais de reaquecimento (nos EUA e China, especialmente) não voltem a aparecer logo, é possível que a coalizão temporária de interesses que foram reunidos em torno do linchamento de Rousseff se desfaça em meio a uma crise verdadeiramente institucional, cujos desdobramentos ainda não se pode prever, mas já que são prudentes de se temer: diante de um possível “caos” social e da polarização política crescente, ataques de comandos proto-fascistas à militantes de esquerda estão se tornando comunsxi e quando houver uma resistência mais decidida dos movimentos, a escalada de conflitos pode abrir a porta para soluções de força e exceção a fim de desatar o Nó Górdio do impasse político que se avizinha. As gravações do ex-ministro, Romero Jucá, revelam a proximidade de “generais” do Exército com a articulação golpista, em diálogo que se referia nominalmente à ações repressivas já desenhadas contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST)xii.

O terceiro e último golpe sofrido por Rousseff foi o mais grave de todos, pois é o mais profundo e com consequências mais duradouras para a sociedade brasileira, especialmente para sua esquerda política. Trata-se do golpe de ideologia que criou as condições de possibilidade sem as quais o afastamento de uma presidenta da república seria impensável. É este golpe ideológico que deve nos interessar mais, pois é ele que confirma o caráter reacionário da operação política em curso. Uma análise discursiva pode capturar a ideologia do golpe neoliberal como se fosse enunciada da seguinte forma:

  1. O PT é um governo de esquerda que, portando, incha a máquina pública com gastos sociais populistas, com o aparelhamento do governo por seus “companheiros” partidários, sindicais e dos movimentos sociais, Isso causa, invariavelmente, corrupção e ineficiência na gestão.

  2. O Brasil vive atualmente “a mais grave crise econômica de sua história”, com “inflação galopante” e “10 milhões de desempregados”. E a culpa é do governo petista, que não teria sido capaz [neoliberal] o suficiente em sua gestão econômica, ou quando tentou ser (com o ajuste fiscal de Joaquim Levy, em 2015) já era tarde demais. A culpa da crise foi, nessa lógica, o esquerdismo “bolivariano” do PT.

  3. O melhor exemplo que desta conexão esquerda-corrupção-crise seria o caso das “pedaladas fiscais de Dilma”.

  4. A solução para “salvar” o Brasil, portanto, é o afastamento imediato da presidenta (e a asfixia de todo tipo de esquerdismo no governo e na sociedade) abrindo as portas para a implementação de um plano econômico ultra-ortodoxo capaz de recuperar a confiança dos mercados.

  5. A médio e longo prazo a lição que fica é direta: se não quisermos entrar de novo numa grave crise, o único caminho é resistir às tentações do “populismo de esquerda”, simbolizadas no curto prazo por Lula e o PT, mas posteriormente, por qualquer liderança ou movimento político que tenha raízes populares, contra-hegemônicas ou anticapitalistas.

Visto desta perspectiva, o golpe ideológico atinge à toda a esquerda e segmentos em luta. Não fere somente o PT e as esquerdas atuais, mas também as futuras. Não só as brasileiras, como as latino-americanas também, ao redefinir os termos do debate em uma direção firmemente conservadora e identificar no bolivarianismo a fonte de todos os males econômicos e políticos do nosso continente. Ao endossar tão rapidamente o “discurso da crise” propagado pela direita, as oposições de esquerda ao governo de Rousseff acabaram contribuindo para um golpe contra elas mesmas: sem um contra-discurso nítido, unificado e comunicável sobre as verdadeiras raízes capitalistas da crise, termina-se reforçando inadvertidamente o conteúdo da ideologia neoliberal que identifica na falta, e não no excesso, de capitalismo (mercados, privatizações, flexibilização…) a explicação para toda e qualquer crise. Alguns dentre nós o fizeram conscientemente, por mero oportunismo, dada uma situação em que prometia dividendos políticos para quem instrumentalizasse o ressentimento com a “crise da Dilma” para si. Outros o fizeram por despreparo e ingenuidade frente ao ataque ideológico violento que, por sinal, continua sua escalada de discursos e atos de ódio contra tudo o que contenha mínimas referencias à esquerda, ao socialismo, ao feminismo, à negritude, ao amor livre, à natureza, aos direitos humanos… e até à cor vermelha em sixiii.

É certo que nem todos os que defenderam o impeachment se alinham com a totalidade da agenda neoconservadora que está na ofensiva atualmente. Talvez somente os mais fervorosos admiradores de Bolsonaro reúnam todos os ingredientes do discurso de direita que aspira à hegemonia no Brasil hoje. Mas se entendermos que o poder do golpe ideológico que afastou Rousseff depende de certa totalidade discursiva, então fica fácil compreender que qualquer capitulação frente a um dos seus componentes terminou servindo, metonimicamente, como rendição efetiva diante do projeto político ultraconservador como um todo. Era preciso ter denunciado todos e cada um dos tropos do discurso ideológico golpista com firmeza, e sem exceção, enquanto era tempo.

A aceitação passiva da cunhagem escandalosa pela grande mídia de um termo nunca antes utilizado – “pedaladas fiscais” – foi o erro mais grave do PT e da esquerda radical fora do governo. Assim que as “pedaladas” (termo não pertencente ao jargão técnico contábilxiv) firmaram-se como significante-mestre que articula em torno de si os outros componentes do discurso, neste instante, o golpe tornou-se possível, quiçá inevitávelxv. O termo disseminou-se com velocidade incontrolável por capas de jornais, pronunciamentos no Congresso e verbalizações do judiciário, debates televisivos e radiofônicos, conversas cotidianas na rua e até mesmo chegou a constar no pedido oficial de impeachment lido por Eduardo Cunhaxvi ao aceitar o processo na Câmara dos Deputados, em retaliação ao apoio do PT ao processo que pedia a cassação de seu mandato por haver mentido em relação à contas na Suíça (apresentado pela bancada do PSOL, semanas antes). Sobre as contas na Suíça ninguém quis ou conseguiu forjar nenhum neologismo político incriminador (suiçada, por exemplo), como haviam sido as “pedaladas” em relação à presidenta. Resultado: Rousseff caiu; mas Cunha seguiu bem mais resiliente.

Este terceiro golpe continua em curso. E parece que irá se afirmar independente do desfecho do processo de impeachment no Senado Federal. E é contra ele que devemos lutar. Ele se aprofundará caso o governo Temer consiga se afirmar, mas também permanecerá intacto caso Rousseff volte a ocupar o lugar para o qual foi escolhida pelo voto popular. E esta é a dificuldade que o momento coloca: como resistir a um golpe ideológico que não parece encontrar um adversário ideológico de peso, à sua altura. Enquanto a esquerda, moderada ou radical, seguir aceitando os termos do debate impostos pela direita; enquanto o terreno discursivo estiver tomado pelo senso-comum capitalista, é provável que neoliberalização da sociedade brasileira torne-se um processo automático e virtualmente sem-fim à vista.

O grande responsável por este cenário temeroso é o próprio PT, em especial a figura de Lula, que se esforçou durante mais de uma década para impor aos movimentos sociais e setores populares a ideologia do capitalismo em suas mais variadas versões (consumo, crescimento, empreendedorismo, modernização, patriotismo, filantropia) como se fossem os horizontes máximos a que poderíamos aspirar. Foi este edifício ideológico capitalista que desabou, com toda sua ingratidão burguesa, sobre o próprio PT de Lula quando a tarefa de neoliberalização das mentes já estava suficientemente avançada, tornando o petismo descartável em nível de governo federal. O sucesso capitalista de Lula e Rousseff passou para ambos; mas o capitalismo em si permanece mais forte do que antes. Esse é o pior golpe.

Prova disso é que mesmo sem saber o que fazer com o “discurso da crise” até que o PT seja confirmadamente deposto do executivo federal, o empresariado monopolista nacional, dependente e associado ao capital estrangeiro, segue expandindo suas atividades e investimentos no Brasil. Ao contrário do que informa o “discurso da crise” e desafiando os prognósticos de muitos analistas de mercado, alguns megaempreendimentos industriais começam – na contramão da versão ideológica dominante da história recente do país – a dar resultados contábeis favoráveis justamente nesta hora. É o caso do Porto do Açú, no Rio de Janeiro, complexo industrial-logístico idealizado por Eike Batista e agora gerido por um fundo de investimentos norte-americano (Prumo Logística Global), que passou a reportar seus primeiros lucros no segundo semestre de 2015xvii e novamente em 2016xviii. Outro exemplo pode ser visto na postura da ThyssenKrupp, a centenária gigante alemã do ramo do aço e seus derivados. Em entrevista recentexix, Paulo Alvarenga, CEO da subsidiária da empresa no Brasil (ThyssenKrupp Industrial Solutions) revelou que mesmo diante dos transtornos e prejuízos advindos com a problemática Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), no Rio de Janeiro, os alemães continuam acreditando que podem “conseguir bons negócios no país” e que a “companhia está fortalecendo sua área de soluções industriais para trazer ao país as tecnologias oferecidas no exterior”. Para o mercado de óleo e gás, o executivo afirma, entusiasmado, que a empresa “observa as chances de negócio no Brasil” devido às “oportunidades existentes na região”. Trata-se de uma movimentação típica do capitalismo dependente, na qual as empresas monopolistas, especialmente as transnacionais, utilizam a crise econômica para aumentar suas fatias de mercado e seu poder sobre um sistema econômico como um todo.

Para os setores monopolistas estrangeiros e seus sócios-menores brasileiros, “crise” é sempre uma oportunidade (às vezes deliberadamente fabricada) para aumentar o grau de concentração e centralização de capitais em determinados setores e atores-chave. Entender bem esta dinâmica é fundamental para tentar resistir à ela, coisa que não foi bem realizada pelos que depositaram esperança que a “crise econômica” pudesse deter o processo de transformação de alguns territórios (como São João da Barra, no noroeste Fluminense, ou a Baía de Sepetiba, ao sul do estado) em enclaves industriais-exportadores, responsáveis pela expropriação das comunidades locais e a destruição acelerada das condições naturais anteriormente existentes. Portanto, não é a crise capitalista que irá interromper a marcha da modernização conservadora; aliás, pelo contrário, ela tende a induzir novas rodadas, mais frequentes e profundas, de associação dependente no âmbito do capitalismo brasileiro. Os investidores mudam, os projetos seguem.

Diante deste cenário, as esquerdas brasileiras parecem um tanto desorientadas com relação à interpretação dos fatos e à qual tática adotar. Muitos afirmavam até a véspera da votação da câmara (17/Abril) que não havia um golpe em curso. Outros insistem nesta tese até hoje, com maior ou menor timidez, o que é surpreendente diante das revelações dos próprios conspiradores vazadas à imprensa e que confirmam o golpexx, assim como das declarações do próprio presidente interino em sua conta do Twitter a respeitoxxi. A falta de um discurso próprio sobre a economia do país e sobre a verdadeira natureza da crise que assola aos trabalhadores e trabalhadoras está cobrando um preço caro. Ao embarcar na crítica direitista do PT, num processo iniciado com as “Jornadas de Junho de 2013” e repetido novamente em 2015-2016, as esquerdas brasileiras oferecem um serviço gratuito ao imperialismo e ao próprio projeto petista de se firmar como única alternativa possível, já que dentro da ordem, ao neoliberalismo extremado que o governo Temer busca representar. É o espectro político como um todo movendo seu centro de gravidade decididamente para a direita, num movimento que inclui, perigosamente, também a esquerda radical.

Está na hora da esquerda radical (aquela à esquerda do PT) recuperar os termos do seu próprio discurso sobre a realidade, que lhes foram roubados pela ideologia dominante. Não dá para esperar o PT fazer isso, pois ele não irá fazer nenhuma guinada à esquerda. Mas é preciso fazermos algo nós mesmos, deixando de nos escusar eternamente via o bode expiatório petista, sem que tenhamos logrado ao menos articular um discurso que explicasse às massas que o problema do PT foi ter abandonado o socialismo, e não que seu erro foi tê-lo implementado, como o senso-comum reacionário atualmente apregoa com sucesso espantoso. Mas é um sucesso que depende em parte de nós: se o paradoxo de viver em uma sociedade macharthista sem que haja comunismo real não foi desmascarado; se o Olavo de Carvalho influencia a cada dia mais jovens com suas teses esdrúxulas sobre a conspiração comunista mundial que uniria o PT às FARC ao PC chinês (e sabe-se lá mais à qual alucinação), se tudo isso cresce ininterruptamente, em algo estamos errando grosseiramente. Temos que assumir nossas responsabilidades também. Enquanto não aprendermos a criticar o PT sem jogar água no moinho da extrema-direita, melhor seguir criticando apenas a direita que se assume enquanto tal.

Sem isso, parece inútil formar apressadamente “frentes de esquerda” que, não surpreendentemente, mal conseguem se enraizar e cujos atos de repúdio ao governo golpista e às políticas neoliberais têm sido esvaziados. Atos voluntaristas e honrosos, mas vitoriosos apenas no plano puramente estético e que permanecem derrotados na disputa por hegemonia, propriamente dita, nas dimensões política e social. O dilema que persiste é que não basta criticar o PT pra sempre. Menos ainda sem que a crítica tenha um conteúdo inequivocamente anti-capitalista que possa ser comunicável na sociedade de massas. Até lá, como somente as críticas neoliberais ao PT conseguem espaço na “opinião pública”, a tática vacilante da esquerda radical acaba sendo uma em que sua fixação em combater o governismo volta-se contra ela própria na forma de uma critica generalizada à esquerda em si, a tudo na esquerda, todos as/os militantes de qualquer área ou setor, a ponto de nem mesmo lutadores sociais combativos quererem mais assumir tais rótulos (esquerda, socialismo, militantes) para si. O que sobra no senso-comum é que se algo está errado no país, e no mundo, então a culpa deve ser da própria esquerda, um estado ideológico de coisas que bloqueia a formação de blocos históricos contra-hegemônicos e sólidos.

É preciso enfrentar frontalmente esse dilema. Ele não é simples e a resposta não virá toda de uma vez, terá que ser construída na prática. Se não queremos repetir o projeto do PT, qual projeto queremos? O mesmo do PT só que sem corrupção? Isso é o que os próprios petistas falaram durante os anos 90 inteiros, que seu diferencial era a “ética na política”, enquanto iam aos poucos cedendo terreno ideológico para as diversas ‘verdades’ hegemônicas do mundo do capital em tempos de globalização. Não deu certo: não parece ser possível fazer concessões pontuais ao imaginário capitalista sem correr o risco de terminar dominado por este mesmo imaginário algum tempo depois – e pelos poderes materiais que o sustentam política e financeiramente. Diante disso, uma das tarefas da esquerda atual que parece mais urgente, antes de fundar, cindir ou refundar mais organizações, frações ou coletivos, é exercitar a crítica das manifestações contemporâneas da ideologia liberal de forma mais sistemática e atenta. Identificar as operações ideológicas dos agentes da direita é condição necessária para recuperar a “autonomia cultural” que Marx considerava como pré-condição inescapável para não se perder nos labirintos da política burguesaxxii.

Um aspecto que não resolve tudo, mas certamente está fazendo falta, é a incorporação da dimensão internacional em nossas análises da realidade. Quando aparecem, tem sido na forma de traços escolhidos aleatoriamente para confirmar algum argumento pré-concebido, como por exemplo no paralelo tantas vezes feito entre a luta pelo Geizi Park em Istambul com as Jornadas de Junho, em 2013 – sem, no entanto, tratar de NENHUM aspecto da política ou da história turcas além daquele aparente paralelismo. Este método é a senha para estabelecimento de comparações espúrias que não enriquecem as análises. Apenas parecem confirmar a ilusão analítica e as tática duvidosas, que muitas vezes podem estar erradas (como estavam em junho de 2013xxiii). Mas a pior parte não acontece quando se tenta comparar transnacionalmente sem muito rigor, mas quando se permanece ignorando olimpicamente a situação internacional, o que é mais comum. Não se trata de mero fetichismo por este ou aquele “nível de análise”, mas do reconhecimento de que não se pode fazer uma política anti-capitalista hoje sem ter plena noção do que significa e como opera o imperialismo em sua atual fase de expansão global, que supera em muito o que a imaginação de Lênin, Luxemburgo ou Kautsky poderiam conceber há um século atrás.

Um sintoma recorrente desta debilidade analítica e tática que a cada dia mais cobra seu preço é a falta de solidariedade lamentável que a esquerda brasileira continua apresentando em relação às investidas agressivas do imperialismo yankee contra o processo bolivariano na Venezuela. Existe certa vergonha ou timidez que contamina diversos intelectuais, setores e organizações da esquerda quando o tema é a Venezuela. A ignorância acerca do significado geopolítico dos ataques ao chavismo pelos EUA mostra o quanto ainda estamos despreparados para enfrentar o rolo compressor imperial-capitalista de nosso tempo histórico em nosso lugar latino-americano.

Sem a crítica da ideologia imperial-capitalista não produziremos táticas nem estratégias adequadas, uma vez que não estaremos equipados para diferenciar corretamente adversários de possíveis aliados. Não saberemos nem ao certo classificar quem é de direita e quem seria de esquerda em cada momento histórico, um alerta já feito por estudiosos do sistema-mundo há 40 anos atrás:

As lutas políticas de etno-nações ou segmentos de classes dentro de fronteiras nacionais são, certamente, o pão com manteiga diário da política local. Mas seus significados ou conseqüências só podem ser frutiferamente analisados se soletrarmos as implicações de suas atividades organizacionais ou demandas políticas para o funcionamento da economia-mundo. Isso também torna possível, quem sabe, uma avaliação mais racional destas políticas em termos de algum conjunto de critérios de julgamento, como “esquerda” e “direita”.xxiv

Desconhecer seu oponente (o capitalismo em sua fase imperialista) é o primeiro passo para sucumbir frente às suas armadilhas. Não saber ao certo qual política adotar em âmbito internacional traz apenas uma certeza para a esquerda que se pretende radical no Brasil: a da manipulação pelo inimigo. Pois uma verdade que permanece imutável é que quem pratica política mas não sabe ao certo qual objetivo está perseguindo, certamente estará seguindo a política de alguém que saiba.

morte

ii A afirmação é notadamente falsa, como qualquer historiador econômico seria capaz de demonstrar, sem dificuldades. Além de ignorar a Grande Depressão dos anos 1930, a expressão “história do Brasil” faz o leitor se perguntar se os períodos colonial e imperial estariam incluídos neste apanhado histórico que, caso incluídos, tornam a tese ainda mais esdrúxula, diante da crise permanente a que é submetida qualquer economia vítima do pacto colonial. Ver a reportagem da Folha de São Paulo (16/03/2016), que ao tentar endossar essa tese acaba desmentindo-a: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/03/1749299-recessao-economica-atual-deve-ser-a-pior-da-historia-do-brasil.shtml. Ver também a fala de cada senador na votação do impeachment, confirmando que, a fim de dar força à campanha de difamação, fizeram o mesmo discurso propagandístico, que substituiu o rigor da análise da realidade empírica sobre a economia nacional em: http://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachment-de-dilma/noticia/2016/05/saiba-o-que-disseram-os-senadores-na-votacao-do-processo-de-impeachment.html

iii Ver reportagem elucidativa do jornal britânico conservador The Telegraph em 10/02/2016, em: http://www.telegraph.co.uk/finance/12150638/Russian-oil-giant-hits-out-at-Opec-price-war.html. Conferir também notícias da imprensa especializada no setor, em: http://oilprice.com/Energy/Energy-General/Why-Saudi-Arabia-Will-Not-Win-The-Oil-Price-War.html

iv Ver reportagem da rede norte-americana CBS de 01/06/2016, em: http://www.cbsnews.com/news/has-opec-won-the-oil-price-war/. Para uma visão de esquerda sobre o tema, ver a matéria do Socialist Worker de 01/02/2016, em: https://socialistworker.org/2016/02/01/what-you-should-know-about-the-oil-price-war

vi A Petrobras precisa de um preço de U$45 para cobrir os custos de sua produção (break even) da camada Pré-Sal, somente conseguindo auferir lucros se os barris forem vendidos (bem) acima deste patamar. Ver reportagem do Financial Times sobre o tema, que também demonstra a confiança da Shell na recuperação dos preços, em: http://www.ft.com/cms/s/0/e8c07066-d3ec-11e5-969e-9d801cf5e15b.html#axzz4DpWFZY5U

vii A crise na petroleira estatal brasileira não pode ser dissociada das manobras de espionagem industrial envolvendo a empreiteira norte-americana Halliburton, suspeita de roubo de informações sigilosas da camada pré- sal, em 2008. http://www.estadao.com.br/noticias/geral,roubo-de-dados-da-petrobras-foi-espionagem-diz-pf,127128 . Como é sabido, a Halliburton é comandada por Dick Cheney, ex-vice presidente dos EUA durante o governo de George W. Bush, quando invadiram militarmente o Iraque e depois o reconstruíram a partir de contratos exclusivos da empreiteira de Cheney, que lucrou U$ 39 bilhões com a operação. A respeito, ver: http://www.dailykos.com/story/2014/6/18/1307821/-Dick-Cheney-Neocon-War-Profiteer O esquema completo de espionagem acabaria sendo revelado em 2013 por Edward Snowden, ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA, que trouxe à público a intensa manobra de espionagem que, coincidentemente (ou não) veio à tona justamente no mesmo instante em que montou-se a Operação Lava-Jato, da Polícia Federal, que utilizou-se de escutas até então tidas como impensáveis, dos mesmos celulares grampeados pela NSA, incluindo o da própria presidenta da república. Ver: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2013/09/petrobras-foi-espionada-pelos-eua-apontam-documentos-da-nsa.html

viii O Brasil pode não ser totalmente dependente de preços de petróleo assim, mas a Petrobras certamente é, como todas as petroleiras, o que certamente diminuiu o dinheiro disponível para corrupção e causou desarranjos na elite política.

ix Conferir as declarações do senador tucano Aloísio Nunes, em seminário do iFHC, em março de 2015, reproduzidas em reportagem do jornal Valor Econômico de 15/03/2015, disponível em: http://www.valor.com.br/politica/3944096/nao-quero-o-impeachment-quero-ver-dilma-sangrar-diz-tucano

x Ver reportagem do Estado de S. Paulo em 25/04/2016: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bancadas-da-bala–da-biblia-e-do-boi-pressionam-temer,10000027834; Ver também reportagem da revista Carta Capital, de 14/04/2015, disponível em: http://www.cartacapital.com.br/revista/844/bbb-no-congresso-1092.html

xi Em 17 de Junho de 2016, um comando proto-fascista camuflados com capuzes e roupas militares invadiu o campus da Universidade de Brasília munidos de bombas e outras armas, além de entoarem cantos racistas, homofóbicos. Seu alvo era uma confraternização estudantil que ocorria no centro acadêmico de sociologia. da universidade: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2016/06/18/interna_cidadesdf,536839/unb-investiga-protesto-com-ataques-homofobicos-e-racistas-no-campus.shtml. No início de Julho de 2016, um estudante negro, LGBT, bolsista, de esquerda e imigrante da região norte do país foi morto a pauladas dentro do alojamento estudantil da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O assassinato fora premeditado e executado conforme um email de ameaças enviado ao estudante dias antes do crime. Ver reportagem do jornal O DIA, que reproduz na íntegra o email dos suspeitos do assassinato: http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2016-07-04/email-para-estudantes-da-ufrj-ameaca-vamos-comecar-por-um-certo-aluno.html

xii O trecho da gravação é o seguinte: “JUCÁ – [Em voz baixa] Conversei ontem com alguns ministros do Supremo. Os caras dizem ‘ó, só tem condições de [inaudível] sem ela [Dilma]. Enquanto ela estiver ali, a imprensa, os caras querem tirar ela, essa porra não vai parar nunca’. Entendeu? Então… Estou conversando com os generais, comandantes militares. Está tudo tranquilo, os caras dizem que vão garantir. Estão monitorando o MST, não sei o quê, para não perturbar.”, disponível em: http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2016/05/em-gravacao-juca-sugere-pacto-para-deter-lava-jato-diz-jornal.html Além disso, mal havia sido confirmado o afastamento de Rousseff, os ruralistas já pediam uso do exército contra os movimentos camponeses, novamente mencionando o MST. Ver: http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/ruralista-vai-propor-a-temer-para-exercito-atuar-contra-mst

xiii Ver matéria do Globo (s/d) sobre polêmica envolvendo uma escola de Brasília que pediu para os alunos usarem vermelho por um dia, em meio a uma atividade contra o mosquito da Aedys Egypt, mas que causou reação dos pais, que acusaram a escola de politizar seus filhos em favor do PT. Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/bilhete-pedindo-que-pais-mandem-filhos-vestidos-de-vermelho-para-escola-gera-polemica-1-19058810

xiv De onde vem, então, o termo “pedalada”? A única resposta que existe é: do hábito da presidenta Rousseff, registrado pela imprensa diariamente, de andar de bicicleta a fim de exercitar-se pelas manhãs. As fotos de uma mulher em posição de poder (recordar da capa da FORBES) divertindo-se, fora de casa, tornou-se insuportável para o senso-comum machista brasileiro, que automaticamente associou a “crise econômica” ao desleixo ou ao prazer feminino de Rousseff, que seria supostamente culpada pela crise exatamente por preferir divertir-se na rua do que ficar “recatada e no lar”, cuidando da família brasileira. Trata-se, portanto, de um dispositivo discursivo que conquistou rápida aderência e difusão justamente por contemplar os instintos patriarcais característicos da sociedade brasileira.

xv Para uma explicação pormenorizada do conceito de “significante-mestre” e de sua importância para uma análise discursiva da ideologia, ver: LACLAU, Ernesto. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005. (especialmente pp.163-197)

xvi O termo já aparece sem sequer estar acompanhado por aspas indicativas de sentido conotativo em matéria d’O Globo, do mesmo dia, sobre a abertura de processo por Cunha. Ver: http://oglobo.globo.com/brasil/cunha-aceita-pedido-de-impeachment-contra-dilma-18202665

xviii Conferir a página virtual da própria empresa, no endereço: http://prumo.riweb.com.br

xx JUCÁ, Romero. Op. Cit., nota nº 11.

xxi A frase de Temer no Twitter foi uma tentativa de explicar seu veto à utilização por Rousseff do avião presidencial durante a tramitação do processo de afastamento no Senado: “Ela não está no exercício da presidência, portanto não tem atividades de natureza governamental”; “E ademais disso, pelo que sei, a senhora presidente utiliza o avião, ou utilizaria, para fazer campanha denunciando o golpe”. Conferir matéria da UOL Notícias, de 22/06/2016, disponível em: http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/06/22/dilma-utilizaria-o-aviao-para-fazer-campanha-denunciando-o-golpe-diz-temer.htm

xxii ENGELS, Friedrich; MARX, KARL. “Mensagem ao Comitê Central à Liga dos Comunistas”. In: karl marx e friedrich engels. Textos. São Paulo: Edições Sociais/Editora Alfa-Ômega, 1977 (pp.83-92).

xxiii Para uma visão do autor sobre as (hoje nem tão reivindicadas assim) Jornadas de Junho, ver artigo publicado em: http://jubileusul.org.br/nota/2058. Uma crítica similar, porém mais sofisticada teoricamente, pode ser lida no artigo de Felipe Demier, disponível em: http://blogconvergencia.org/?p=2805

xxiv WALLERSTEIN, Immanuel. “ The Rise and Future Demise of the World Capitalist System: Concepts for Comparative Analysis”. In: Comparative Studies in Society and History, vol. 6, nº 4, 1974 (p.406) – Tradução livre. [Original em inglês disponível em: http://bev.berkeley.edu/ipe/readings/Wallerstein.pdf]

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