Indígenas do Mato Grosso do Sul são as principais vítimas desse tipo de violência. “É onde a gente faz nossa reza espiritual. É uma casa sagrada”

Casa de reza em Kunumi Verá era resultado de uma força tarefa que uniu homens e mulheres da comunidade – Aty Guasu

Carolina Bataier – Brasil de Fato SP

Em menos de um ano, os indígenas Guarani Kaiowá do território retomado de Kunumi Verá, na cidade de Caarapó (MS), perderam duas Oga Pissy – em português, casas de reza. “Botaram fogo e a gente não conseguiu apagar”, conta Simão Kaiowá, liderança da Aty Guasu, a Grande Assembleia dos povos Guarani Kaiowá.  

O incêndio mais recente foi em fevereiro de 2024. A casa era resultado de uma força tarefa que uniu doze pessoas, entre homens e mulheres da comunidade, no trabalho de construção. Até hoje, os indígenas não conseguiram reerguer o espaço. 

“É onde a gente faz nossa reza espiritual. É uma casa sagrada”, lamenta.  

Entre 2019 e 2023, pelo menos 13 casas de reza foram destruídas em Terras Indígenas (TIs) e territórios de retomada nos estados do Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, conforme dados dos relatórios de Violência Contra Povos Indígenas do Brasil organizados pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). 

Embora levem o nome de casas de reza, esses grandes espaços circulares, construídos com sapé e madeira, têm outras funções além da espiritual, conforme explica o pesquisador e agente do Cimi Matias Benno Rempel, que acompanha os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul na luta pelo direito ao território. “É um ponto fundamental de organização social, na qual desde sempre as macro-famílias se reúnem para debater os seus pontos”, diz. 

Nesse sentido, as casas de reza funcionam como ponto de encontro da comunidade para celebrações e tomadas de decisão. “Também é um comitê político, um espaço onde as pessoas se encontram para falar sobre as suas vidas”, ressalta o pesquisador.  

E é justamente a dimensão política das casas de reza que instiga os fazendeiros a agirem com violência. “Eles identificam esses espaços como espaços de organização, vão lá e queimam”, explica Rempel.  

Em março de 2022, um grupo de pessoas não indígenas, acompanhado de Policiais Militares, invadiu a TI Tarumã, em Araquari (SC), destruindo, além da casa de reza, moradias e instrumentos de trabalho dos Guarani. De acordo com informações do relatório do Cimi, “o grupo invasor alegou estar cumprindo uma ordem judicial de reintegração de posse – sem, contudo, apresentar qualquer mandado judicial”.

O território sofre investidas de grileiros, desmatadores e madeireiros. Em 2019, outra casa de reza da TI Tarumã foi incendiada por homens encapuzados e armados. Também em 2019, moradores da TI Morro Alto, em Araquari, perderam sua casa de reza para as chamas. Os responsáveis pelo incêndio seriam pessoas contrárias à demarcação das terras indígenas, segundo as informações colhidas pelo Cimi junto à comunidade.  

Massacre no MS

Mas a maioria dos registros desse tipo de violência está no Mato Grosso do Sul, onde os Guarani Kaiowá lutam para voltar ao território onde viveram os seus ancestrais e, agora, está dominado por fazendeiros. “Não há conflito no Mato Grosso do Sul, há um massacre contra esse povo”, alerta Rempel. Dos 13 casos de destruição de casas de reza identificados pela reportagem, nove foram registrados no estado.  

Na TI Rancho Jacaré, no município de Lagoa Carapã (MS), os rezadores estão fazendo os encontros nas suas moradias, já que a casa de reza foi incendiada duas vezes em 2021. “Foi incentivado por disputa religiosa”, revela Vanderleia Rocha, moradora da comunidade. “E aí a gente teve que dialogar com os pastores para falar na igreja para respeitar a casa de reza, mas foi um início bem conturbado”, relata. Em um dos incêndios naquele local, o rezador Cassiano Romero, de 92 anos, perdeu objetos sagrados, documentos e outros pertences. A casa de reza era também o lar dele. 

Rempel explica que, ao retomar um território ancestral, uma das primeiras obras erguidas pelos Guarani Kaiowá é a casa de reza. “É o elemento que unifica os mundos, do concreto, do chão, e o mundo dos encantados que permanece fazendo com que os Kaiowá tenham uma esperança no amanhã”, diz. Por isso, a destruição desses espaços extrapola a violência patrimonial, representando um gesto cruel de destruição da cultura de um povo.  

“São muitas as dores destes crimes. No sentido patrimonial, em alguns casos, perderam-se, com as casas, artefatos seculares do povo”, ressalta. “Itens mágicos protegidos por rezadores e guardiões ao longo do tempo, que protegiam os destinos e garantiam a harmonia do mundo.”

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